O Corvo é um filme peculiar em essência e até em exploração de gênero. Lançado em 1935, na mesmo época em que a Universal Pictures produzia uma série de filmes de monstros, reúne duas figuras clássicas dos filmes de horror da época, os atores Boris Karloff e Béla Lugosi.
O filme de Lew Landers (que assinava como Louis Friedlander) tem roteiro de David Boehm e produção executiva (não creditada) de Stanley Bergerman. A união desses profissionais resultou em um produto original, criativo e curioso na abordagem narrativa.
A trama parte da experiência de vida de um cientista e cirurgião fã de Edgar Allan Poe, que manipula e mexe com expectativas sentimentais das pessoas a sua volta.
A história é densa, fala sobre um titereiro de um drama maldito, mostrando pessoas vivendo em uma miséria existencial tremenda, com quase todos eles manipuladas por Richard Vollin, o personagem vilanesco, interpretado pelo astro húngaro. O longa-metragem foi todo rodado em área interna no Stage 28, dentro do estúdio 100 Universal City Plaza, localizado em Universal City na Califórnia.
Lugosi tem uma performance verdadeiramente obcecado, fazendo um médico aficionado pela carreira do contista que escreveu o poema O Corvo. As semelhanças com a mitologia de Allan Poe se resumem a citação que dá nome ao filme, além de alguns elementos de cena, que remetem ao ideal gótico das historietas do escritor.
Apesar do fato de ser fã de literatura ter um peso como traço de personalidade do doutor, há outras obsessões mais mundanas da parte dele, entre essas, há o desejo por se aproximar de uma moça que ele salvou de um acidente de carro.
Essa é Jean Thatcher, personagem de Irene Ware) a filha de um juiz, interpretado por Samuel S. Hinds e para manter a garota perto, ele utiliza o cenário de seu castelo como uma espécie de gaiola disfarçada, já que serve primeiro como abrigo para ela e para o pai após o incidente, mas também para trechos onde a intenção maléfica de Vollin fica mais escancarada, já que toda a decoração dos quartos se assemelha a celas de prisão.
No esforço de convencimento do dono do castelo há um auxiliar curioso, que tem suas intenções descortinados logo depois de sua apresentação. Ele é o fugitivo Edmond Bateman, personagem de Karloff, um sujeito de passado sujo e criminoso, que é desejoso por se consertar.
Ele aparece buscando uma intervenção cirúrgica, para esconder o seu rosto, mas é um sujeito tão ingênuo e simples que acredita que se mudar suas feições, automaticamente terá mais sorte.
Desejoso por mudança, o homem acredita em promessas vazias de Vollin, que promete que o tornará em um homem belo, podendo assim se tornar enfim uma pessoa boa, já que Bateman acredita que a sua feiura é a raiz de sua maleficência.
Todo o entorno do personagem central é peculiar. No consultório médico há um grande corvo empalhado, na mesa de recepção, sendo exibido aos olhos de quem quer que entre ali em destaque. A intenção da direção é demarcar isso como um objeto de importância.
Esse é o segundo filme onde Lugosi e Karloff atuam juntos. Um ano antes a dupla fez outro longa inspirado em Poe, no caso, Gato Preto, de Edgar G. Ulmer. Referências à parte, a maior riqueza desse O Corvo certamente reside na atuação de ambos.
O interprete de Dracula acaba sendo um personagem melodramático, enquanto Karloff consegue fazer um sujeito carente e dependente da aprovação de terceiros o tempo inteiro, tão necessitado que acaba vestindo a máscara de alguém malvado por tabela.
O doutor não tem qualquer receio em parecer um sujeito macabro ou mórbido, ao contrário de Bateman. Vollin se sente bem em exibir elementos de decoração que referenciavam o medo. Na prática, não havia em si um olhar autocritico, não se enxergava como alguém errado.
Apesar da predileção do cientista pelos contos de Poe ganhar espaço em tela, são os atos ruins do personagem que mais chamam atenção, uma vez que diante da intimidade do seu covil, não há qualquer receio em parecer maligno.
Vollin é um vilão clássico e isso é perceptível no primeiro momento. É até esperado que ele seja misógino e persiga a mocinha - afinal nessa época, mesmo os mocinhos tinham um comportamento que passava pelo machismo - no entanto, não há muita necessidade de ele ser tão sádico com Edmond.
Prometer que vai deixar o homem bonito e logo depois deformar o sujeito deliberadamente é puro sadismo, ainda mais se considerar que o sujeito acredita que pessoas feias são necessariamente malvadas.
Não há como amenizar seus atos, nem há como considerar ele vítima das circunstâncias. Sua essência e caráter são sujos e corruptos, de uma forma caricatural e até teatral. Como o foco é todo nele, é difícil não achar ele um sujeito interessante, especialmente graças a sua postura macabra a troco de nada.
Se ele desejar assustar as pessoas, ele o fará e não há o que impeça e essa personalidade é tão expansiva que quase ameniza o desenrolar dos eventos, que ocorrem de maneira abrupta na maior parte das vezes.
A equipe de produção fugia um pouco da exploração de cinema de gênero e de horror, embora nessa época a distinção entre os tipos de temática não fosse tão demarcada. Landers vinha da experiência de fazer seriados de westerns diretos para o cinema, como O Cavaleiro Vermelho (1934) e Os Bandoleiros do Velho Oeste (1935). Foi um diretor bastante experiente, tem mais de 100 créditos de direção inclusive em sucessos da tv como As Aventuras de Rintintin, Maverick e Bad Masterson nos anos 1950-60.
Já Boehm escreveu Negócio é Negócio (1933) e alguns outros filmes, como Moleque de Circo (1938), A Cidade de Pólvora (1942) e Dois no Céu (1943). Teve o seu argumento de Além da Eternidade (1989), rodado após a sua morte. Já Stanley Bergerman produziu Luar e Melodia, O Sonho Cor de Rosa e O Anel Chinês.
A história se desenrola velozmente, é tudo é bem rápido, até se espera certa celeridade de um filme de 61 minutos, mas fica bastante claro que ele tem uma forma de pensar não normativa, insana em essência.
Boa parte da exibição se dá sem trilha sonora e a ausência de música ajuda a demarcar as atuações, valorizando o caráter misterioso de Vollin, especialmente e o vazio de alma de Bateman.
Quando os temas compostos por Clifford Vaughan finalmente aparecem se sente um grandíssimo impacto. A utilização é inteligente e parcimoniosa. Como ela é rara, ajuda a construir uma atmosfera diferenciada para os trechos que tem orquestra.
Edmond procura Vollin com uma intenção bem definida, mas a crença de que modificar o seu rosto o fará parar de cometer atos criminosos é infundada, não havia nenhum indício nem dentro e nem fora da história que provasse isso. Sua mentalidade parte de um princípio infantil e tolo, mas que conversa com a sabedoria popular de épocas não tão distantes da década de 1930.
Ainda assim é perceptível que a ingenuidade de Bateman depõe contra ele. Se ele tivesse proximidade com qualquer pessoa mais instruída, certamente não seguiria pensando assim. Mas sua sina o condena a ser sozinho, tanto que Vollin não hesita em engana-lo.
A tal operação ocorre, mas o médico ao invés de embelezar o sujeito, trabalha no sentido inverso. Ao final da intervenção, o fora da lei sai deformado. A ideia do médico era colocar a teoria do sujeito simples em estado probatório, ao menos aos olhos do próprio, já que Vollin nunca acreditou nessa teoria.
Após descobrir como ficou, o paciente se culpa, age de maneira dramática e a música o acompanha, aumentando seu volume de maneira surpreendente, acompanhando a suposta monstruosidade dele.
Como ele é um sujeito que foge das autoridades, não teria a quem recorrer ou a quem reclamar e mesmo que tivesse, ele está tão envolvido com Vollin que dificilmente se voltaria contra ele. O personagem então segue sua lógica interna, comete crimes, ainda que o faça se submetendo ao mestre malvado.
A esperança dele é a de aceitar obedientemente seu amo, para que ele se compadeça e conserte a sua face, mesmo que o médico não revela nenhum sinal de bondade. Até se verbaliza uma promessa nesse sentido, mas é bem fácil notar que ela é uma mentira, algo infundado.
A rejeição do personagem a própria imagem é tão grande que ele saca uma pistola e atira nos vidros e espelhos que refletem suas feições na sala de cirurgia.
A cena é exagerada, dramática e sensacionalista, mas serve bem ao serviço do cinema de horror que estabelecia sua cena após os filmes de horror da própria Universal.
Vollin admira Poe por ele falar abertamente sobre temas como medo e dor. Para ele, esses são os dois aspectos que mais fascinam os médicos, naturalmente. Toda essa questão é discutida em uma noite de eventos sociais em que o doutor recebe visitas em sua casa.
Ele faz questão de chocar os convidados, não só com os assuntos mórbidos, mas também com a presença de Bateman, que o longo do filme, se torna mordomo do mesmo.
É curioso que ele faça esse papel, certamente foi uma boa referência para Tropeço da Família Addams, já que o serviçal do clã é uma versão da criatura de Frankenstein, tal qual Karloff, que faz uma versão mais suavizada do monstro morto-vivo. Em comum entre os personagens há a movimentação, com passos duros e postura enrijecida.
Como O Corvo é uma obra obscura, fica difícil inferir que a referência é certeira, mas há semelhanças sim, indiscutivelmente.
O criado dá sinais de rebeldia, até tenta um pequeno revide, já que coloca o patrão em uma armadilha, o prende numa plataforma, com um pêndulo em cima, parque obviamente, faz referência a outro texto de Poe, no caso, O Poço e o Pêndulo. Mas não demora para Bateman voltar a obedecer ao mestre, o solta e volta a seguir ele cegamente.
Até há interações entre outros personagens, que se hospedam na enorme casa de Vollin, mas a realidade é que quase nenhuma das ações dessas pessoas tem peso. O mal real é o elegante médico, que manipula situações e pessoas para praticar seus atos cruéis.
Ele é a prova viva de que a teoria de Bateman é errada, já que ele mesmo com o cientista tendo um bom semblante, boa aparência e vestuário, não há qualquer possibilidade de a sua índole ser positiva.
As atuações nesse não são grandiosas, excetuando claro as performances de Lugosi e Karloff. Os personagens periféricos se resumem a praticar reações exageradas, com muitas caras e bocas.
O diferencial no texto é a sordidez das ações de Vollin, que é tão calculista e escroto que espalhou pela casa várias armadilhas, até mesmo com um elevador no quarto onde Jean dorme. Ele faz dela refém basicamente por que pode. É sádico e ardiloso. O astro húngaro concebe uma interpretação caricata e absurda, aprontando um personagem tão malvado que parece uma caricatura.
É puro exagero, tão irrealmente maléfico que até o seu humilde criado se vira contra ele no final, fazendo assim a justiça poética imperar, como era bastante comum nos contos de Edgar Allan Poe.
O Corvo é uma história sobre um médico insano e tem seu maior tento no fato de registrar esse clichê em uma época em que esse tipo de abordagem ainda não era moda. Mesmo tendo alguns problemas e um final piegas, o que se nota é uma grande vontade de contar uma história reverencial a literatura de Edgar Allan Poe, contendo ainda algumas boas surpresas na abordagem, além de ter atuações muito dignas de elogio, sobretudo de Bela Lugosi.