Trash Náusea Total: A estreia de Peter Jackson no cinema

Trash Náusea Total: A estreia de Peter Jackson no cinemaTrash: Náusea Total é um filme singular, tanto em abordagem quanto em narrativa. O primeiro longa-metragem de Peter Jackson brinca com chavões de invasão alienígena, violência extrema e muita nojeira, com um gore insanamente bem utilizado.

O início é estranho, mostra uma gravação em áudio, um telefonema de uma cidade pequena, que reporta uma invasão de gente de fora. Residentes de pequenas comunidades do campo acreditam que seriam extra-terrestres, alienígenas em busca de alimento, de carne humana, que mais tarde se confirmaria como a extração de matéria prima para uma rede de restaurantes interplanetária.

Jackson demonstra nessa estreia algumas das características que fariam dele um diretor conhecido como um guerrilheiro do cinema. Se notam características de filmes B tanto no elenco, repleto de conhecidos, não atores ou gente sem dotes dramáticos, como também nos penteados incomuns em produções ocidentais com quase todas as pessoas descabeladas.

Os figurinos também denunciam isso, já que aparentam ter saído dos restos de seriados pobres da televisão. O que também se percebe é o aproveitamento das mesmas pessoas em todos os aspectos da produção, incluindo o elenco, já que atores fazem mais de um papel.

Além disso, se usa muito, mas muito sangue, fato que ajuda a chocar o público não acostumado a fitas de horror, mas também está lá para esconder possíveis pobrezas da produção.

Trash Náusea Total: A estreia de Peter Jackson no cinema

A falta de investimento é vista facilmente, dá para notar o caráter amador em tudo, mas há também uma demonstração de que aquele esforço era feito por uma equipe de gente diferenciada, com audácia e ambição.

Há também uma vontade de referenciar o humor nonsense das comédias inglesas, embora não haja só referência ao paupérrimo que era comum ao programa Monty Python Flying Circus. Boa parte das piadas é de um humor pastelão, que lembra o seriado Mister Bean, onde se faz troça com pancadas e questões físicas.

Paralelo a isso, há um trabalho árduo em mostrar gente deformada da maneira mais nojenta e realista possível, e ainda assim, sempre dentro do escopo de filmes de horror baratos. Há outras demonstrações de escatologias, como personagens babando, ou sujos por conta de comida, mas é na sanguinolência que Náusea Total ganha.

O roteiro de Jackson, que conta com breves adições de Tony Hiles e Ken Hammon, é bem simples, não se preocupa com mensagens profundas ou com subtextos. A maior riqueza são as referências bem encaixadas, como o momento em que um motorista passa por uma encruzilhada entre duas cidades, a Kaihoro, onde a história se passa, e outra, chamada Castle Rock, que é um lugar, uma cidade nos livros do mestre do terror Stephen King.

A produção é quase toda formada por amigos e chegados de Peter Jackson, desde os atores até gente da equipe técnica, incluindo os que no futuro formariam a Weta, especialista em efeitos visuais, que foi responsável pelo visual da trilogia Senhor dos Anéis.

Mesmo sem saber, o diretor acabou inaugurando uma moda, que é a de cineastas de cinema de gênero, sobretudo do terror, migrarem para obras de cunho fantásticos, de orçamentos grandiosos.

Exemplos não faltam especialmente no subgênero de filme de super-herói. Shazam, Dr Estranho, Homem Aranha, Adão Negro e Aquaman são obras atuais que demonstram essa moda, e nenhuma delas foi uma ação tão ousada e exitosa quanto a aposta dos estúdios em dar A PJ a tarefa de adaptar uma série de três livros até então considerados como não adaptáveis.

Foi um grande risco e um enorme acerto, e foram produções paupérrimas como esse Bad Taste colaboraram para formar o diretor que brilharia na traduções cinematográficas da obra J. R. R. Tolkien.

Jackson brincou, experimentou, se divertiu e pavimentou suas ambições aqui, entendeu como funcionava a diferença entre um uso de efeitos práticos, compreendeu que utilizar isso dava uma consistência maior, o que acaba resultando posteriormente até num envelhecimento melhor da obra, afinal, é mais do que dado que esses efeitos seguem mais verossimilhantes anos após o lançamento do que o empregado em computação gráfica.

É fácil achar o filme com o nome Trash ou somente Náusea Total, tanto em releases pela internet quanto em mídia física, já em Portugal o título é mais direto e imersivo "Carne Humana, Precisa-se", e essa alcunha traduz bem outro aspecto do longa, que é a total desimportância dos arcos humanos.

Os personagens são apenas arquetípicos, se destacando por seu visual e comportamento. O mais lembrado entre eles é o insano Derek, interpretado por Peter Jackson, que está irreconhecível sem barba e seu amigo calveludo Barry (Pete O'Hearn), já os outros introduzidos depois - Ozzy, Giles, Barry, Frank - são secundários, quase terciários, sem grandes variações dramáticas entre si, os perfeitos heróis, montados para uma aventura escapista.

Trash Náusea Total: A porca estreia de Peter Jackson como diretor de longas

Curiosamente, acusam a literatura de Tolkien de fazer personagens muito parecidos entre si, evento esse driblado por Jackson em sua versão. Gimli, Légolas e Aragorn são bem diferentes no cinema, para além de suas aparências.

Já aqui, os homens que combatem a invasão são exatamente iguais, sendo pessoas que só usam frases prontas, completamente imunes a humanidade, sem defeitos quanto se precisa deles.

O tom do cinema de Jackson na época se inspirava demais no humor escrachado de Uma Noite Alucinante 2, na violência gráfica e caricata que causa risos, como também na sensação de que eventos apocalípticos são tão catárticos que soam irônicos.

Fora isso, o modo de filmar é moderno, e a edição é igualmente diferenciada, as mudanças de tomadas e ângulos são rápidas. Jackson improvisou uma steadcam, gastando 15 dólares, visto que precisava utilizar em uma cena. O apreço pelo mau gosto, pelo grotesco e pela nojeira também é bastante notado, em outra referência ao cinema de horror.

Não se economiza em sangue falso, e por mais caricato que pareça, as cenas de braços e pernas cortadas tem um visual único, com textura. Podem não parecer tão reais, mas certamente chocam quem não está acostumado.

Nota-se também que o sangue em um vermelho muito claro conversa com o que Tom Savini utilizou em Dawn of the Dead: O Despertar dos Mortos, do mestre e pai dos Zumbis George A. Romero, onde ambos referenciam aos quadrinhos de horror antigos da editora EC Comics.

Jackson teve vários problemas. Consta que ele começou filmando em 16mm, e sem som, a medida que as gravações começaram a produção conseguiu arrecadar dinheiro junto a comissão de filmes da Nova Zelândia. Essa verba foi utilizada para comprar outra câmera, e para estender as gravações, mas ainda assim o áudio seguiu ruim, então foi tudo dublado na pós-produção.

Curiosamente o longa foi exibido no tradicional festival de Cannes e foi elogiado por seu humor ácido e pelas imagens sensacionais. O nome do cineasta passou a ser conhecido para além das fronteiras da Oceânia.

Peter Jackson se multiplicou, exerceu diversos trabalhos atrás das câmeras como produção, fotografia, montagem (com Jamie Selkirk), maquiagem (com auxílio de Cameron Chittock), fora os papeis que fez.

Nos momentos finais há lutas mais agressivas, contra as faces reais dos alienígenas. Esses momentos lembram a estética que Robert Rodriguez empregou em El Mariachi cinco anos depois. Aparentemente, havia uma efervescência no cinema autoral underground, que movia as cabeças para a mesma direção.

Outro fator que impressiona é o visual dos aliens. Eles são seres monstruosos, feios, mas com uma personalidade única, distante da visão boazinha que Steven Spielberg instituiu em ET: O Extra-Terrestre,

Trash Náusea Total: A estreia de Peter Jackson no cinema

O final é uma completa insanidade. Personagens utilizam de uma motosserra para contra-atacar a invasão, vítimas humanas decolam no ar como se fossem naves, há desmembramento dos antagonistas, uma luta encarniçada.

Peter Jackson faz uma obra que resulta em uma ode ao mau gosto, mas também apresenta inúmeras características elogiáveis, as mesmas que credenciaram ele a não só fazer um cinema comercial exitoso, como também o colocaria como um pioneiro em matéria de efeitos visuais.

Se sobram piadas terríveis, como Derek recolhendo seu cérebro e colocando no buraco aberto em seu crânio, também se faz uma crítica tosca e trash ao cinema norte-americano, embora também preste reverência ao gênero fantástico e especulativo.

Trash: Náusea Total ganhou fama depois do lançamento da trilogia Senhor dos Anéis, onde relançaram para fora das fronteiras da Nova Zelândia os filmes do diretor. Demorou quatro anos para ser finalizado, mas resultou em uma bela estreia para Peter Jackson, que evoluiria em sua exploração do grotesco em Fome Animal, e seguiria sempre fiel as suas raízes dentro do especulativo e do fantástico.

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