Em uma carreira artística longa, é natural que hajam muitos acertos e alguns erros, mesmo entre mentes geniais, como foi com William Friedkin. Dono da régia de grandes clássicos do cinema, que infelizmente nos deixou, na última segunda-feira, dia 7 de Agosto.
Nascido em 29 agosto em Chicago-Illinois, o artista que estava prestes a completar 88 anos deixou o mundo sem muito aviso, as vésperas de estrear uma nova obra, The Caine Mutiny Court-Martial, que chegará no próximo Festival de Veneza.
Sua origem foi humilde, ele era filho de um marinheiro mercante e vendedor de roupas masculinas com uma enfermeira. Ambos eram imigrantes judeus da Ucrânia, a família dele inteira fugiu do país durante um pogrom (termo utilizado para determinar uma perseguição de um grupo étnico ou religioso, aprovado ou tolerado pelas autoridades locais) antijudeu em 1903.
Bill teve sua carreira reconhecida, foi premiado algumas vezes pela Academia, até recebeu a lembrança de uma estrela na Calçada da Fama, no Hollywood Boulevard. Teve polêmicas no set, assustando atores com tiros para o alto, com corridas de carros clandestinas e sem qualquer licença junto as autoridades. Recebeu um Oscar de melhor direção alegando que era mais novo do que realmente era, foi desmascarado depois... era um sujeito difícil, genial, temperamental e genioso.
Sua carreira tem como marca belos filmes, que registravam uma América triste, melancólica e desesperançosa, mesmo quando ele não falava do horror. Em breve voltaremos com análises mais aprofundadas sobre alguns desses exemplares, abaixo você lê algumas palavras sobre alguns dos seus melhores filmes.
Também separamos o nosso podcast sobre Operação França, feito nos primórdios do Cine Alerta, além do episódio sobre O Exorcista, o seu clássico dentro do gênero horror.
Confira aí:
Possuidos (Bug) - 2006, de William Friedkin
Apesar do nome infame, Possuídos não tem absolutamente nada a ver com a temática de O Exorcista. A distribuidora brasileira tentou embarcar a referência, fato que fez confundir muita gente. Trata-se de um drama sobre uma mulher que quase morre nas mãos do marido. Anos depois ela se envolve com um sujeito estranho, mostrando que o seu destino passa pela sina de encontrar homens terríveis.
O filme conta com atuações soberbas de Ashley Judd, que faz a protagonista Agnes White, além de Michael Shannon, ainda não tão conhecido do público em geral. Aqui se percebe uma reflexão sobre os problemas mentais dos veteranos de guerra dos Estados Unidos, obsessões mil, questões pontuais ligadas a medos como a claustrofobia, além da falta de segurança para mulheres na intimidade e rotina da vida do norte-americano.
Esse é um bom exemplar de como Friedkin estava afiado nos anos 2000. É uma obra amedrontadora, tensa, com atuações sensacionais. Conta com uma câmera nervosa, que registra bem o incômodo de ter a intimidade invadida por seres abjetos, no caso, os insetos do título original.
Blue Chips (1994) de William Friedkin
Embora seja uma obra conhecida entre os fãs de esporte, normalmente é esquecida do público em geral. Trata-se de um drama sobre um técnico de basquete universitário que decide se aventurar em uma manobra arriscada e ilegal para tentar vencer o torneio da NCAA, que vem a ser o campeonato entre faculdades.
O personagem central é Pete Bell, interpretado magistralmente por Nick Nolte. Sua atuação prevê uma série de outros filmes sobre treinadores excêntricos, especialmente Coach Carter. Mas aqui a coisa é bem menos piegas e cafona, uma vez que o protagonista é um homem visceral e insano, não restando muito espaço para uma abordagem positivista e de autoajuda.
De quebra o filme ainda foi responsável por reunir Shaquille O'Neal, pivô campeão quatro vezes da NBA e um dos maiores nomes da história do esporte, com Penny Hardaway, figura lendária do Orlando Magics, que junto a Shaq, formaria a dupla do maior time da história franquia da Florida. O entrosamento foi tanto que Shaq exigiu que o Magics escolhesse Hardaway no Draft, que ocorreu após a gravação desse longa-metragem.
Aqui interpretam atletas prospectos, jogadores bem jovens contratados por Bell para o seu time, ainda contracenam com um jovem Kevin Garnett, que também seria jogador anos depois, que além de ser campeão, ainda estrelaria Joias Brutas no cinema, junto a Adam Sandler.
Friedkin faz um épico do esporte, que resulta em uma reflexão sobre as contradições do American Way of Life. Faz isso de maneira sincera, intensa e sem receio de se expor.
O Exorcista / The Exorcist (1973), de William Friedkin
Essa é uma referência em matéria de cinema, tão alardeada e louvada que quase dispensa apresentações. Para muitos especialistas e apreciadores da sétima arte esse é o clássico máximo do gênero horror e terror, e não à toa.
Friedkin coloca aqui toda a sua formula de suspense, muito bem empregada em Operação França e acrescenta a tristeza de uma família que vê seu membro mais frágil ser possuído por uma entidade maligna.
De quebra, o texto do roteirista e escritor William Peter Blatty ainda discute ceticismo, a tristeza e rancor de figuras religiosas, além é claro de fazer uso e exploração da figura do demônio, sempre com um olhar muito reverencial a fé cristã.
É um filmaço, que mistura elementos de sustos, gore, que conta com uma maquiagem sensacional, com efeitos especiais avançados, que tem boas atuações e uma trilha sonora inspirada e bem pontuada.
Operação França / The French Connection (1971), de William Friedkin
Filme mais premiado do artista, possui uma história simples e engraçada sobre policiais de Nova York que investigam um comerciante que tem mais dinheiro do que aparentemente deveria ter.
A trama desses policiais acaba se cruzando com a de um assassino profissional e a partir daí começa uma trama de perseguições frenéticas de carro, todas filmadas in loco, além de um sem número de sequências de ação absurdamente bem orquestradas.
O filme ganhou muitos prêmios e conta em seu elenco com figuras que se tornariam lendárias, como Gene Hackman e Roy Sheider. É tecnicamente impecável. Mesmo que não fosse a sua intenção, ajudou a pavimentar toda a linha de filmes policiais bem-humorados, como Duro de Matar, Máquina Mortífera, A Hora do Rush entre tantos outros.
Friedkin Uncut (2018), de Francesco Zippel
Durante as filmagens de O Diabo e o Padre Amorth - documentário de gosto duvidoso, lançado por Friedkin em 2018 - o documentarista Francesco Zippel acompanhou o famoso diretor, registrando algumas das suas ideias, com uma câmera de mão.
Na sala de edição ele reuniu essas filmagens a um texto ensaio maravilhoso, acompanhado de imagens da carreira do biografado. É um trabalho simples e emocionante, que retoma um pouco da jornada do menino de 16 anos que começou trabalhando em uma sala de correspondência na WGN-TV e que venceu o Oscar de melhor filme e direção por Operação França, além de ter sido indicado por O Exorcista.
Recentemente o documentarista também fez um filme sobre o mestre do Western Spaghetti, em Sergio Leone - L'italiano che inventò l'America.
Zippel poderia só se debruçar sobre a carreira e os feitos de Bill Friedkin, mas não. Ele faz um registro bonito, que beira a poesia, que valoriza a paixão e a entrega de um outsider da indústria de cinema dos Estados Unidos, mostrando ele como um personagem rebelde, que conseguiu contar as suas histórias.
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Fazemos menções honrosas a A Arvore da Maldição, filme de horror lado B lançado em 1990, ao thriller policial Viver e Morrer em Los Angeles de 1985, que conta com um grande elenco, o surpreendente violento e nauseante Killer Joe: Matador de Aluguel estrelado por Matthew McConaughey, Parceiros da Noite, polêmico em essência, brilhantemente estrelado por Al Pacino, além do clássico máximo Comboio do Medo, drama sensacional da década de 1970, que serviria para sacramentar Friedkin como uma das figuras centrais da Hollywood melancólica da segunda metade do século XX.
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