Com um primeiro filme lotado de boas ideias que se perdiam na tentativa de arrancar suspiros do público, a franquia Jogos Vorazes começou a se encontrar mesmo em seu segundo exemplar, que torna quase desnecessário o conhecimento prévio da trama, repetindo elementos do anterior e adicionando a prometida rebelião contra o sistema de governo totalitário da fictícia Panem. Chega então A Esperança – Parte 1, o desfecho da história que precisou ser divido em dois filmes para amarrar as pontas e desenvolver seus inúmeros personagens.
E é exatamente isso que o novo longa faz. Se no segundo, o tempo investido em mais jogos fez a produção soar como repetição de fórmula, desta vez o foco é diferente e surpreendentemente corajoso, trazendo uma abordagem necessariamente intimista, muito mais preocupada em tornar palatáveis ao espectador, os dilemas da protagonista Katniss Everdeen (Jennifer Lawrence). E são vários.
A trama de A Esperança – Parte 1 continua exatamente de onde o anterior termina, com a heroína chegando no 13º Distrito e tomando conhecimento do que aconteceu no período em que disputou o Massacre Quaternário. Reencontros e novos personagens surgem, como a Presidente Coin (Julianne Moore), que quer usar Katniss como propaganda para derrubar o governo do Presidente Snow (Donald Sutherland).
Diferente dos anteriores, em que o senso de urgência era maior devido à natureza dos Jogos Vorazes do título, este novo filme parte da ideia de uma guerra travada, sim, em campo, mas cuja decisão parece cair nas mãos de quem controla os meios de comunicação. Tanto que uma das subtramas é exatamente fazer as transmissões da resistência, contendo os bem montados vídeos da jovem “Mockingjay”, chegar ao conhecimento do maior número possível de Distritos. Ao mesmo tempo, na Capital, Snow e sua equipe usam a imagem de Peeta Mellark (Josh Hutcherson) para convencer a população a não entrar em guerra.
Assim, usando a batalha midiática como pano de fundo (em momentos que chegam a lembrar a sátira das obras de Paul Verhoeven), traz à tona temas que vão muito além da luta por direitos civis ou pela democracia e fazem esse novo capítulo soar mais maduro em suas idéias. Como distopia, o mundo da série Jogos Vorazes lembra muito 1984, de George Orwell, mas há elementos em A Esperança que parecem prever uma reviravolta de outra obra do influente autor inglês: A Revolução dos Bichos.
Por mais bem intencionado que seja o ideal do 13º Distrito, a forma como tenta usar Katniss como fantoche traz a dúvida do quão diferente esse governo rebelde pode ser do opressor, que usa táticas semelhantes em nome de sua manutenção. Claro que algumas dúvidas são diluídas no terceiro ato, mas não deixa de ser interessante o roteiro fazer o espectador pensar nessas possibilidades (pelo menos os que desconhecem a trama da trilogia de Suzanne Collins).
O enfoque na batalha que não se vê é uma das boas características do texto, e uma das mais corajosas também, levando em conta o público-alvo da obra. Adolescentes tendem a ser impacientes e é admirável que os realizadores confiem em uma abordagem que não seja voltada para ação desenfreada, gerando momentos de pura introspecção dos personagens e sequências de forte apelo dramático, dando o tempo certo para introduzir uma batalha aqui ou ali, sem jamais deixar os elementos de aventura subtraírem os de desenvolvimento da trama individual dos protagonistas. Não se render a vícios narrativos “da moda” é um dos passos para criar uma obra que transcenda o que está estabelecido e surpreenda o público, algo tão difícil hoje em dia no cinema de massa.
Mas A Esperança – Parte 1 não se destaca apenas na forma como aborda sua trama. O diretor Francis Lawrence faz, talvez, seu melhor trabalho e comanda com mãos seguras o filme. Seja com a câmera solta por entre trincheiras e escombros de Distritos destruídos pela guerra ou com as sequências nos claustrofóbicos corredores do subterrâneo esconderijo da resistência, o cineasta consegue ditar o ritmo, dando agilidade nas cenas de ação e trazendo um suspense crescente com a ideia do perigo constante em um lugar sem janelas para o exterior, já que está debaixo da terra. Aliás, a tensão no terceiro ato é um dos grandes momentos filme, com uma montagem paralela extremamente eficiente que intercala entre uma incursão de soldados e um discurso de Finnick Odair (Sam Claflin). A montagem de Alan Edward Bell e Mark Yoshikawa, aliada ao comando de Lawrence, cria aquela que poderia muito bem entrar em uma lista de boas cenas do cinema em 2014.
A direção de arte também traz novidades ao criar o visual do 13º Distrito que passa longe do glamour da Capital, mas une a decadência das regiões mais pobres, vistas nos longas anteriores, com uma tecnologia nitidamente ultrapassada, mas cuja natureza militar evoca muito a funcionalidade em detrimento do design. Da mesma forma, o figurino uniforme passa a ideia de uma sociedade igualitária, teoricamente a base ideológica da comunidade comandada por Coin.
Acima de tudo, Jogos Vorazes: A Esperança – Parte 1 é um filme que demanda do espectador sempre algo mais. Ele precisa ser assistido sem os preconceitos que acompanham obras para jovens e sem a barreira da superficialidade. A experiência dessas adaptações da obra de Collins só é completa a partir de uma leitura em camadas, analisando cada tema, cada decisão dos personagens e cada reviravolta sempre como algo mais. Se o primeiro filme é louvável por tentar incutir críticas sociais que quase não funcionavam por conta de uma equivocada abordagem, beirando o folhetim, este terceiro merece todos os elogios por, enfim, conseguir seus objetivos. Mesmo o romance, inicialmente um obstáculo para o público, encontra agora uma função. Ao final da projeção fica a promessa de uma segunda parte que deve focar mais em grandes revoltas. A mensagem embutida nesta primeira metade, no entanto, já é suficiente para que o desfecho surja forte, graças ao tempo dado para os personagens até agora. Fica a esperança de um final tão relevante quanto a jornada de Katniss rumo aos bastidores do poder.
Aqui você foi bem feliz :
"…é um filme que demanda do espectador sempre algo mais. Ele precisa ser assistido sem os preconceitos que acompanham obras para jovens e sem a barreira da superficialidade."
É isso mesmo. Ótima review, achei o filme bem mais maduro que os anteriores e assim, acho que muita gente não irá gostar.