Na esteira de outros filmes que usam a internet e seus acessórios como fonte de medo, Grimcutty adapta uma lenda urbana moderna, parecida com uma história bizarra da boneca Momo que supostamente mataria crianças ou causaria nelas atos suicidas. Esse suposto evento causou (e possivelmente ainda causa) a desmonetização de sites e canais, ou meramente avisos de que a postagem que cita esse causo e o da Baleia Azul falam de automutilação, quando claramente não é isso que ocorre.
Temos temor de ocorrer esse tipo de bloqueio nesse texto analítico, mas vamos lá.
No Brasil o filme foi veiculado no streaming Star+ e recebeu o nome sugestivo de O Meme do Mal. A trama se inicia com uma criança, que espera chegar a noite e após fingir estar dormindo, desperta e percebe do lado de fora de sua casa uma criatura estranha, tendo a ação cortada de maneira brusca, e a ser resolvida somente na meia hora final.
O filme é dirigido e escrito por John Ross, cineasta especialista em filmes B de horror e segue o estilo de outras obras que usam a Internet como catalisador do medo e do mal, tal qual Amizade Desfeita, que explora um chat assassino, Slender Man que narra a história de um monstro de creepypastas e A Hora da Sua Morte que mostra um aplicativo assassino atrás de jovens.
Aqui há um agravante, já que a tal criatura malvada provoca nas crianças atos violentos, que variam entre possibilidade de matricídio e autoflagelo, em atenção a já citada corrente conhecida como Desafio da Baleia Azul.
A criatura é interpretada pelo ator Joel Ezra Hebner, e foi pensada por Andrew Clement, cuja experiência maior é com maquiagens e protéticos em filmes com Deadpool, Kung Pow e O Artista do Desastre, trabalho com animatrônicos em Família Dinossauros, além de ter feito os efeitos visuais de produções nos anos 1990 e 2000 como Blade: O Caçador de Vampiros, e as séries Xena A Princesa Guerreira e Hércules.
Após a cena do epílogo, a narrativa foca em Asha Chaudhry (Sarah Wolfkin), uma menina jovem, que sonha em fazer sucesso com vídeos ASMR, mas não tem muito sucesso e visualizações.
Ela vive com seus pais Amir (Usman Ally), sua mãe Leah (Shannyn Sossamon) e seu irmão Kamram (Callan Farris), e é como qualquer outra menina da Geração Z, conectada sempre que pode.
Os Chaudhry são uma família étnica nos Estados Unidos, são descendentes de árabes, mas isso jamais é um fator que os diferencia, já que vivem como estadunidenses médios, como pessoas comuns e normais, com os pais sendo preocupados demais com os rumores ditos na rede on-line, e com os filhos desejando ser apenas crianças com suas pequenas telas a disposição.
Boatos correm entre pais, de que crianças agridem umas às outras, se mutilam e até matam tal qual é sugerido na cena inicial.
Não fica claro se essas situações são reais, se é mais um fruto dos tempos de pós verdade ou se é de fato um receio digno de preocupação.
O roteiro de Ross é curioso, já que mostra os pais Chaudhry preocupados com o mito de Greamcutty, mas também demonstra que simples conversas entre pai e mãe se dão on-line, por chats, e não cara a cara, mesmo com os dois estejam no mesmo cômodo.
Aparentemente ambas gerações são viciadas em estar on-line, com os personagens mais velhos julgando os mais moços por praticarem os exatos mesmos pecados que os seus.
O texto usa o velho método de busca e recompensa para explorar seu drama. Aparentemente, a entidade Grimcutty se alimenta do medo dos pais, e só se aproxima das casas e das famílias quando os parentes mais velhos embarcam na paranoia.
Os adultos (incluindo pais e policiais) creem que os jovens fingem estar sendo atacados. Acreditam que eles combinam o ato de desespero como parte de uma etapa de um suposto desafio. Essa é uma clara imitação da preocupação e desconfiança que pais tem com filhos em filmes de horror juvenil.
Nesse ponto se enxerga bastante semelhanças com o clássico de Wes Craven, A Hora do Pesadelo., uma vez que Nancy e seus amigos eram igualmente ignorados pela parte adulta do elenco. Asha sofre da mesma forma, e como a preocupação e desconfiança dos pais alimenta o bicho, o perigo para os meninos e meninas aumenta.
As manifestações do monstro ocorrem também em momentos de stress, e sempre se ligam a alguma ação dos membros mais velhos das famílias. A intenção claramente é apelar para um tom de denúncia.
O longa teria mais êxito se estivesse se levando pouco a sério. Asha se mete a fugir de casa enquanto faz uma tele chamada com as amigas, e se equilibra com o celular na mão enquanto se filma, além de estar fugindo, primeiro dos seus pais, já que ela resgatou um celular de um esconderijo deles, depois do monstro, que ao ver uma brecha, vai ao ataque.
Fora isso, Grimcutty é bem estranho. Sua movimentação é mecânica, ele é um boneco de computação gráfica que não convence, muito por conta de configuração e corpo.
O digital já nasceu velho e caricato, a mistura de efeitos práticos com computação não ajuda o personagem a parecer crível, tampouco assustador. Ele é só grotesco, de uma maneira tosca.
Além de não lembrar a tal "Momo", ele ainda parece um misto de criaturinha fofa de filmes infantis retirado de uma animação de Henry Selleck (especialmente James e o Pêssego Gigante), com o rosto desnecessariamente parecido com o vampiro vivo Morbius, que protagonizou um filme recente com Jared Leto.
Não dá para entender exatamente como são os métodos da criatura. As vítimas agem de modo estranho na eminência de serem atacados, aparentemente ele descontrola as crianças, e as faz se esfaquearem ou algo que o valha, já que ocorrem ataques aos pais também.
Já os adultos agem de maneira passiva, ou são extremamente paranoicos e crédulos em lendas urbanas, ou são inertes diante da possibilidade de perigo.
As ações do Grimcutty são feitas pelas crianças, aparentemente, ao menos é assim que os adultos veem os machucados surgindo. Em algum ponto até parece que essa questão seria bem explorada, uma vez que até aparecem cenas onde algo invisível pega uma das crianças, mas não é desenvolvido qualquer motivo ou mitologia, o Grimcutty surge por que surge, não tem passado ou motivação além de ser simplesmente mau.
As atuações não são ruins, a maioria está ok. Bastaria que o monstro fosse ligeiramente mais assustador para que o mergulho no drama fosse mínimo. Como não é, fica difícil levar o filme a sério.
Um dos fatores que ajuda a driblar a seriedade são os relatos meio blasé das vítimas que circundam Asha. Há uma personagem em particular que é o resumo dessa condição, a moça gótica Cassidy (Tate Moore), que é cheia de frases de efeito, e que parece anestesiada até na hora de falar do momento que quase morreu.
Caso todos os personagens se levassem tão a sério quanto ela, haveria como se afeiçoar um pouco pelo filme. A realidade é que o longa não sabe se mira ser algo mais profundo ou apenas uma exploração tola de um meme.
Uma forçada de barra é o roteiro tentar afirmar que em 2022 a principal fonte de pesquisa para uma solução na internet advém de um blog, e não de uma rede social, aplicativo ou algo que o valha.
Quando Asha vai a casa de Melinda Jaynes (Alona Tal), fica patente que algo errado acontece ali, e as pistas são demasiadamente óbvias. No lado de fora, se chega ao cúmulo de perceber que há telas de PC, tablet e celulares quebradas e no lixo, sem mais nada em cima, só jogadas ali parecendo meramente um cenário recém montado e não uma casa de verdade.
Fosse esse um filme de paródia, casaria bem o caráter fajuto. O texto exagera, ainda mais e em se tratando da exploração de um surto coletivo, é um bocado estranho.
A histeria alimenta a criatura, e as conclusões da protagonista a esse respeito não são claras no sentido de explicitar como funcionam os atos dele. O texto ainda consegue se complicar, lidando de maneira preconceituosa com questões como gaslighting, com surtos coletivos e desinformação nas redes.
A solução final é bizarra, não faz sentido, e é tomada a partir de várias conclusões tiradas sabe-se de lá de onde.
Em tempos onde a internet impacta eleições, exibir um monstrengo que se alimenta da paranoia adulta é no mínimo de mal gosto. Sorte que o filme foi tão mal avaliado que não ajudará a fomentar a ideia da internet como fonte de informação isenta de critérios, já que a realidade (especialmente no Brasil) já reflete isso no fenômeno de espalhamento de mentiras.
O Meme do Mal não lida bem com quase nenhuma questão, nem com a possibilidade de insanidade, nem com os receios de pais superprotetores, nem com lendas urbanas, fake news ou com preocupações válidas relativas a exposição exagerada das pessoas a Internet e compartilhamento exagerado de intimidade e de vida pessoal.
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