Renfield era o personagem mais curioso, estranho e misterioso do livro Drácula, escrito pelo poeta e contista irlandês Bram Stoker. Ele era o serviçal do Conde Vampiro da Transilvânia e costumava ser retratado apenas como um homem obcecado e insano, que ansiava ser transformado em um vampiro, tendo isso sempre negado por seu mestre.
Eis que em Renfield: Dando o Sangue Pelo Chefe finalmente ele ganhou destaque, não só por ser o protagonista de sua história (finalmente), mas também por trazer o carismático ator Nicolas Cage como o vampiro supremo.
Dirigido por Chris McKay, a obra é protagonizado por Nicholas Hoult, ator talentoso, que transita entre diversos gêneros. Sua gênese é bastante curiosa, já que tem a ver com o malfadado Dark Universe da Universal, ao menos em parte.
Com a popularização dos universos compartilhados no cinema cada estúdio buscou tentar formar o seu próprio, reunindo o conjunto de personagens que pudessem interagir, cooperar e eventualmente se enfrentar em mais de um filme. O que tivesse a mínima probabilidade de juntar em uma história só, era juntado.
A onda de franquias isolada foi então deixada de lado, ao menos parcialmente. O foco era em estabelecer confrontos entre personagens de ambientes diferentes, mas que poderiam conversar entre si.
Para a Universal que tinha um cartel de monstros clássicos, seria bem natural tentar resgatar os duelos de heróis, a exemplo do que eles mesmos faziam na primeira metade do século XX, pondo frente a frente a criatura de Frankenstein, o Lobisomem e outras criaturas ou personagens engraçados como a dupla cômica Abbott & Costello.
Entre as iniciativas gerais houve umas inegavelmente bem-sucedida, que é o Universo Compartilhado Marvel. Outras, tiveram lastro positivo em algum ponto como o universo da DC Comics e o Monster Universe que reunia os Godzilla, outros Kaijus e King Kong. Esse último fez algum barulho nas redes socais, mas as suas bilheterias ficaram aquém do que se imaginava, mesmo quando Godzilla vs Kong chegou aos cinemas em 2021.
No entanto, a ideia da Universal de estabelecer o Dark Universe esbarrou no insucesso de A Múmia de Alex Kurtzman. A iniciativa deu muito errado, a bilheteria foi ridícula e engavetar o projeto se tornou a alternativa principal, claramente. Isso influenciou até obras anteriores a esse longa de 2017, como Drácula: A História Nunca Contada (2014).
A ideia de utilizar essa obra como uma prequel para a versão do vampiro acabou sendo deixada de lado. Para Drácula havia um planejamento ainda embrionário. A direção seria de Karyn Kusama (O Convite e Garota Infernal), e o que se falava é que ela estava trabalhando em um filme mais sombrio do que o épico de ação que o precedia.
O projeto teria roteiro de Matt Manfredi e Phil Hay, mas não tinha ainda definido um rosto para ser o Conde Vampiro. Com a chegada de O Homem Invisível (2020) com Elisabeth Moss e dirigido por Leigh Wannell, essa iniciativa foi descartada e os projetos passaram a ser pensados de maneira separada, resultando então nessa obra que misturaria elementos de ação e possivelmente um pouco de comédia romântica, disfarçada de horror, claro.
Havia muita expectativa em relação a qual seria a participação de Nic Cage na produção, especialmente graças a fama "recente" dele. Depois de uma longa e árdua fase ruim, o ator conseguiu retomar o respeito a sua carreira e performance, ao menos em partes.
Ele continua protagonizando filmes de qualidade duvidosa, mas tornou o personagem canastrão que faz em algo grande, em uma versão em paródia dele mesmo, tanto que gerou o cúmulo de O Peso do Talento, filme em que interpreta uma versão dele mesmo, em uma aventura fictícia com Pedro Pascal.
Parte do público segue com curiosidade pela sua próxima desventura nos cinemas e esse interesse é crescente. Renfield não parece exatamente ser um filme de Cage agindo como um bufão, afinal, ele não é o protagonista da jornada. Mesmo que o longa carregue outro nome, o sujeito faz seu personagem esperado, de certa forma.
O subtítulo brasileiro é maravilho, pois, Dando o Sangue pelo Chefe é o ideal para localizar esse como candidato a filme de Sessão da Tarde e também para estabelecer a gravidade da relação trabalhista aqui aludida.
É possível encarar o trabalho de McKay como parte de filmes de ação, de horror e comédia. O cineasta ficou conhecido depois que fez episódios de Frango Robô, dirigindo também o elogiado Lego Batman e o criticado live-action A Guerra do Amanhã.
Já o texto foi escrito por uma dupla de parceiros contumazes. O argumento é do quadrinista Robert Kirkman, criador de The Walking Dead e Invencível, com roteiro de Rian Ridley, com experiência nas comedias Community e Rick e Morty, além de ser o principal escritor na animação seriada O Invencível.
A ideia central do longa é a de se apropriar de elementos clássicos do cinema e da literatura de terror para contar uma história positiva, de superação e de reencontro com a real identidade do que é o homem.
Hoult é Robert Montague Renfield, sujeito apresentado como um funcionário secular de um chefe abusivo. A partir daqui haverá spoilers, falaremos abertamente sobre partes substanciais da trama.
O protagonista é um workaholic, mostrado como um viciado em trabalho e em agradar o seu chefe. Em sua ânsia por satisfazer os desejos do vampiro faz ele perseguir pessoas, procurando sempre possíveis vítimas para o putrefato e decadente dono de sua alma.
Drácula não é mais um nobre, na verdade tem uma vida miserável, morando em um prédio abandonado, que por sua vez, resulta em um cenário simples, bem pensado e assustador, reunindo em si elementos de várias encarnações de vampiros, além de aludir a filmes de terror e ação massa veio dos anos 2000.
A ideia de Rodley e Kirkman é focar menos no mito do vampiro, dando assim espaço para um drama mais humano. No livro de Bram Stoker e nos filmes o advogado que se torna escravo do vampiro não é muito aprofundado, apenas é mostrado como um homem ganancioso e que se torna insano.
A versão de Hoult busca desmistificar isso, mostrando-o como alguém carente e inseguro, que se julga incapaz de viver de maneira independente do homem que o tornou servo.
O primeiro cenário onde ele aparece é em um grupo de ajuda mútua, no estilo AA (Alcoólicos Anônimos), em uma igreja, mas que visa falar sobre relacionamentos abusivos.
Nesse lugar se repetem discursos óbvios, platitudes e conversas que valorizam descobertas sobre valores básicos, que passam pelo discurso de autoajuda, da psicologia transpessoal. Também se referencia os fraudulentos ditados e conversas dos coachs que habitam o mercado corporativo e locais de convivência social, ao exemplo dessa igreja.
No cotidiano de buscar alimento para o patrão ele busca aceitação, mesmo antes de encontrar sua musa inspiradora ele já parece querer praticar o bem, ou algo que se aproxime dessa condição.
Ele afirma que não é um assassino, já que normalmente não pratica o mal graças a sua vontade. Quando faz isso, mente, uma vez que mata sim, mesmo que execute pessoas ruins, bandidos, assassinos, criminosos de toda espécie, principalmente os abusadores do grupo de ajuda do qual faz parte.
Acidentalmente ele esbarra na sub trama da policial de origem asiática, percebendo que poderia ser encarado como um mártir, um homem em sacrifício caso os alvos de sua violência fossem pessoas do alto escalão da máfia urbana de Nova Orleans.
Se ele é tão desesperado por atenção que cai nas conversas e discursos fáceis, imagina se não aceitaria a admiração da policial Rebecca Quincy de Awkwafina? Evidente que ela aceitaria os elogios, sobretudo quando é chamado de herói.
Artifícios narrativos ruins à parte, até que faz sentido o início dessa relação dos dois. Na prática, ele pode ser visto como herói caso supra as necessidades e anseios da personagem de Awkwafina, ou seja, caso seja um capacho não do vampiro, mas sim da policial que provoca nele um leve interesse romântico.
Rebecca é uma personagem com boas sacadas, com um passado trágico, língua ferina e com um senso de justiça bem definido, bastante rígido. Sua caracterização é derivativa e genérica.
É definida por seu passado, como a filha de um policial que morreu em serviço e como a irmã de uma agente do FBI. Sua participação como agente da lei é frustrada, uma vez que não conseguiu subir na hierarquia policial graças a corrupção do sistema. Não há de novo, mas como para um necessitado qualquer aceno é um convite, Renfield se aproxima dela e se inspira em sua vida.
A riqueza do filme obviamente mora na caracterização de Nicolas Cage. Seu Drácula é mal, é estiloso e muito, mas muito violento. Seu visual é muito bom, com a pele pálida, cabelos oleosos e escovados como um italiano caricatural, suas roupas -quando está pleno de seus poderes - são puro glamour.
Ele ainda passa por diversas fases, aparece chamuscado graças ao contato com o sol, surge com uma maquiagem que denota podridão e putrefação, já que sofreu bastante no momento imediatamente anterior a trama principal. Aqui é dado que apesar de imortal, ele precisa de tempo para se recompor, sua recuperação não é imediata, ou seja, ele tem limitações em seu poder.
As partes do filme que se debruçam sobre a mitologia de vampiros são ótimas. Não se demora muito tempo explicando o básico, as fraquezas e poderes de um morto vivo sugador de sangue.
É tudo intuitivo, o que se explana - e o faz bem - é como o Conde consegue manipular seus servos, igualando o vilão a um titereiro com suas marionetes, além de determinar elementos sagrados e místicos como a kriptonita do vampiro.
A parte "mágica" que envolve Renfield também é aludida, embora não aprofunde nos conceitos, não definindo bem o que ele é. Ridley e Kirkman miram nos hábitos do sujeito baseado no livro Drácula.
Quando Hoult se alimenta de insetos ele ganha força e poderes, tal qual Popeye quando come espinafre. Poderia ser horrível, mas dentro da proposta jocosa, funciona.
Outro aspecto curioso é como se explica a longevidade de Robert. É lugar comum que vampiros não envelhecem. Já Renfield tem a sua juventude mantida graças ao consumo de sangue do nobre vampiro, que teria o poder até de ressuscitar as pessoas.
Curiosamente esse conceito também é utilizado no clássico trash Dracula 2000, de Patrick Lussier, filme esse que é uma comédia involuntária super divertida.
O maior problema do filme é o potencial desperdiçado. Hoult e Awkwafina estão muito bem em seus papéis, mas inegavelmente Cage tem muito menos tempo de tela do que merecia.
Seu Conde Drácula é maravilhosamente caricato e divertido. O sujeito está claramente muito feliz de fazer esse papel, sem falar que ele consegue de um modo simples evocar elementos da versão clássica de Béla Lugosi, emulando também a elegância calada de Christopher Lee quando necessário, além de imitar trejeitos e gestos teatrais de Max Screck em Nosferatu.
É bem conhecido que Cage é um grande fã do movimento conhecido como Expressionismo Alemão e ver ele podendo homenagear essas obras é gratificante, mesmo que a qualidade do filme em geral não valorize tanto isso, afinal, ainda é uma comédia.
Mesmo aparecendo pouco, o filme é dele. Em poucos e breves momentos ele consegue driblar a canastrice que habitual se atribui ao seu desempenho, conseguindo aludir a maneirismos e trejeitos das versões clássicas do personagem em cinema e televisão.
Curiosamente 35 anos antes Cage fez um filme que lembra muito a postura que ele tem aqui. Trata-se de Um Estranho Vampiro, obra onde ele faz Peter Loewl, um executivo chefe que age de maneira completamente insana e abusiva com uma funcionária sua.
A diferença básica entre os personagens é que Peter é um sujeito de essência misógina, enquanto Drácula odeia a tudo e a todos, praticando a misantropia contra todas as figuras que Deus criou.
Awkwafina não compromete. Ela melhorou bastante em matéria de atuação desde Oito Mulheres e um Segredo. Tem carisma, tanto que consegue driblar o marasmo que é toda a construção em volta da destemida policial que interpreta. No entanto sua personagem não possui química com Hoult, embora isso não seja motivo de condenação, visto que poucas vezes o ator conseguiu ser um bom par com quaisquer papéis de interesse romântico propostos no passado e não faltaram tentativas, diga-se.
As cenas de ação um certo charme, porém pequeno, já que perdem força pelo uso excessivo de retoques digitais. McKay estabele uma tentativa vã de imitar os filmes de David Leitch e Chad Stahelski.
Quando se pensa ou em filme de vampiro ou em comédias de ação não se imagina que De Volta ao Jogo, Atômica e Velozes & Furiosos: Hobbs & Shaw serão fonte de inspiração para os momentos de confronto físico, mas esse é o caso de Renfiled.
Ainda assim McKay acerta mais do que erra. Há alguns momentos verdadeiramente hilários e a abordagem humorística dessa conversa mais com bons filmes como Todo Mundo Quase Morto, Zumbilândia e A Vida Depois de Beth e menos com produções capengas como Meu Namorado é um Zumbi, que tem inclusive o mesmo ator como protagonista.
Hoult não é um ator ruim. As escolhas de sua carreira levaram ele a fazer filmes de qualidade discutível, mas ele tem bons trabalhos. Aqui ele não está soberbo - só Cage está - mas seu desempenho vale a apreciação, especialmente pelo fato dele não se levar a sério.
Um bom ator de comédia não pode ter pudores e inegavelmente há muita entrega de sua parte, seja nos momentos nojentos, nos trechos nonsense de humor ácido ou nas situações que valorizam o auto constrangimento.
Quase todas as outras participações do elenco são irrisórias e certamente seria divertido apreciar mais histórias desse tipo, especialmente se o enfoque for maior nas criaturas monstruosas famosas.
Mesmo sem conseguir atingir seu potencial Renfield: Dando o Sangue Pelo Chefe é uma produção divertida, que faz acenos a questões e críticas sociais pontuais, mas sem perder a leveza. É divertido e tem belas atuações de seu trio de protagonistas, além de ser um passatempo de considerável qualidade visual.
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