Garota Infernal: Um clássico injustiçado e vendido de forma enganosa e machista

Garota Infernal: Um clássico injustiçado e vendido de forma enganosa e machistaGarota Infernal é o clássico caso onde a publicidade ludibriou público e crítica, vendendo um produto cinematográfico de maneira completamente diferente da premissa, do pensamento original das idealizadoras e do produto final exibido.

Thriller sobrenatural sobre sedução, feminismo e até pactos satânicos, o longa de Karyn Kusama trata da rotina de uma dupla de amigas bem diferentes, uma tímida que se comporta de maneira quase virginal e outra a líder de torcida mega popular, muito requisitada na escola e fora dela.

Em algum momento o caminho das duas amigas se cruzam com uma banda de indie rock pretensiosa, e uma das duas se transforma numa criatura devoradora de homens.

Duas coisas chamam bastante atenção, sendo a primeira o roteiro, que é escrito pela oscarizada Diablo Cody depois do sucesso de Juno e o outro são as duas protagonistas. Megan Fox que era um dos maiores sexy symbols e chegava da franquia Transformers, e Amanda Seyfried, que trilharia um caminho de glórias cinematográficas depois, mas que já era conhecida do público por Mamma Mia e Meninas Malvadas.

A controvérsia citada antes tem a ver justamente com Fox, uma vez que os publicitários souberam da escalação dela, todo o conjunto de trailers, pôsteres e spots de TV destacavam a sua figura como femme fatale e não como ente demoníaco devorador.

Seu corpo foi bastante utilizado para chamar a atenção e as pessoas foram assistir ao filme acreditando que era mais um besteirol ou exploitation, baseado no fato dela ser a musa nerd da época, e quando chegaram, havia uma quantidade boa de clichês feministas (nenhum inválido, diga-se) e um cunho de discussão sexual poucas vezes vistos.

Garota Infernal: Um clássico injustiçado e vendido de forma enganosa e machista

Uma das artes, explorando a beleza de Megan Fox

Os produtores quiseram fazer um marketing viral utilizando a figura de Megan Fox como chamariz de sensualidade.

Em algum ponto pensaram até em usar ela atuando em spots de publicidade em sites pornográficos amadores, fato que foi combatido obviamente pela atriz, pela diretora e pela roteirista, que claramente eram contra esse tipo de exploração.

Jennifer's Body foi lançado na época que Fox e Michael Bay estavam brigados. O cineasta entrou em rota de colisão, ocorreram erros da parte dela, especialmente quando comparou o sujeito a figuras que maltrataram judeus, e uma campanha contra ela se instalou em Hollywood, inclusive pela língua de ferina de Bay, que aproveitou o ensejo para afirmar que o modo dela posar para fotos, era igual o gestual de uma atriz de filmes pornográficos.

Na época que o filme foi ao cinema, até gente gabaritada digeriu o filme de maneira que não conversava com a ideia e premissa original. O crítico Roger Ebert disse que gostou do filme, e o chamou de "Crepúsculo para garotos", filme que não tem praticamente nada a ver com esse, exceto os elementos pegos emprestados de filmes de horror.

O início é curioso, com a câmera flutuando ao redor de Jennifer, aproveitando a intimidade e a beleza da personagem, evocando o voyeurismo não só do público, que observa a garota mais popular do colégio, nas também os olhares de Needy, a personagem de Seyfried, que é a narradora da história.

O texto possuirá spoilers, mais agressivos a partir daqui.

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Vale lembrar que além do que foi exibido no cinema, há uma versão sem cortes, que deixa a introdução mais longa, reforçando o estigma de Needy como uma perseguidora stalker, que olha atentamente sua amiga, já depois da transformação da personagem título, embora o espectador não tivesse como saber dessa "interferência", já que não fica claro nesse trecho o que viria a ocorrer.

Natural que o filme explore primeiro o corpo de Jen e depois a carência de Needy, uma vez que os nomes são escolhidos meticulosamente para causar furor, com uma sendo o nome do longa e a outra sendo uma variação em inglês da palavra necessidade ou carência.

Seyfried começa a trama presa e conta a história de como ela chegou ali. Ela diz, na introdução, que recebe cartas de fãs, fato que resulta em uma leve crítica sobre o culto a personalidades criminosas.

Na narração, a personagem fala um pouco também sobre a Cidade de Devil's Kettle, um lugar de pouco mais de 7000 habitantes, que tem esse nome graças a cachoeira que é o principal diferencial da área.

A catarata tem uma questão singular, que é um buraco em formato de redemoinho, que não se sabe onde desagua. Os locais chegam ao cúmulo de afirmar que provavelmente aquilo é um portal para outra dimensão, e apesar da tímida apresentação, obviamente aquilo seria um lugar importante para a trama.

Claramente ela idolatra a melhor amiga, seja por estar no centro das atenções escolares, ou meramente por ser ela uma musa juvenil. Eram tão unidas que tinham apelidos próprios e exclusivos, Monistat , que é um creme para pele e se refere a Needy e Vagisil, que é um sabonete íntimo, e se refere obviamente a Jen.

Ao saber que a bandinha Low Shoulder viria a cidade, Jennifer se programou para agir como groupie. Além de seguir o conjunto no MySpace - que era rede social mais popular da época no segmento musical - ela age como uma adolescente fútil e boba que vai caçar, mesmo sendo uma pessoa bem mais inteligente e esperta do que parece, já que adora fazer ironias com os outros.

Jennifer leva a sua amiga para a tal ação, e avisa ela para se vestir de maneira legal, que é um eufemismo, para Needy não usasse algo muito sensual, para não chamar mais atenção que ela, mas também não deveria se desleixar e nem parecer uma perdedora, tendo que ficar bela, mas não tanto.

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Essa relação é bem estranha, com uma subordinação considerável da parte de Needy, mas engana-se quem pensa que a atração é só da parte de uma delas. Aqui se nota que ela é mútua, já que a loirinha se encanta com a morena e a morena dá a mão a ela quando toca a música romântica, fora que só uma delas namora, e não é a menina popular.

Garota Infernal aborda a história de adolescentes que estão crescendo, e entre os seus temas há claro paralelos com delinquência juvenil. Needy e Jennifer não são exatamente pessoas ingênuas, tampouco inexperientes sexualmente, mas recebem uma marca de um X na mão, para não poder comprar bebidas alcoólicas.

Obviamente que isso não as impede de beber, mas o cuidado do pequeno bar local com isso ajuda a demonstrar que a cidade pequena se preocupa em cuidar dos seus, ao contrário do que normalmente se assiste em outras produções de terror no interior.

Há algumas participações curiosas, como a Chris Pratt antes da fama, que faz um papel pequeno, porém importante e até de J.K. Simmons, que faz um professor de visual curioso, com um gancho na mão e uma postura quase sempre emocionada.

Ambos são parte do caráter de pastiche que Kusama impõe ao texto original de Cody. Em falas da época, a roteirista usava uma frase espinhosa como chamariz: O inferno é uma menina adolescente.

Ela começou sua carreira como escritora em um blog satírico. Seus textos tinham um cunho ácido, e uma certa base em histórias que ela viveu, ainda assim eram ficcionais.

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Boa parte dessa "base real" tinham originem em experiências da própria, de quando ela trabalhava com stripper, e isso foi motivo suficiente para que boa parte da cobertura pop sobre sua carreira se associa a sua antiga ocupaçao, e não como escritora oscarizada.

Ter feito sucesso com o texto de Juno em 2007 fez com que a roteirista fosse requisitada, e em seu projeto seguinte ela achou em Kusama uma boa parceira para a sua ideia. Depois o estúdio viabilizou a contratação de Fox e Seyfred como pontas de lança e chamariz de popularidade.

O escândalo envolvendo os assédios cometidos por Harvey Weinsten e a consequente ação do movimento Mee Too ajudaram a dar ao filme o louvor que ele merecia, e ele foi redescoberto por parte do público.

Mesmo ao falar de temáticas pesadas a forma como o texto é construído faz tudo parecer mais leve e comum, a começar pela banda emocore e cheia de pretensão que é a Low Shoulder.

Eles são uma caricaturais demais, liderados por Nikolai Wolf, interpretado por Adam Brody, que vinha do sucesso do seriado dramática The OC: Um Estranho no Paraíso, fazem promessas uma para o outro, dizendo que seriam tão exitosos quanto o Maroon Five.

Eles são tão otários que em falas oficiais dizem que tocam em lugares merdas para ter uma maior conexão com os fãs, dando não só a dimensão de que tocar lá é quase como dar esmolas, além de também julgar de maneira grosseira a qualidade da cidade e de seus cidadãos.

O barzinho Melody Lane pega fogo, no meio do show, e a cena é cuidadosamente tratada, com efeitos especiais que fazem parecer real e nesse contexto se notam duas coisas, a primeira é que Needy reage rapidamente e é mais talhada para momentos complicados, a segunda é que Nikolai consegue escalar a colina da cretinice, sendo um completo insensível, vaidoso e super calmo, quando tudo é tomado pelas chamas.

No lado externo, o vocalista sugere levar as duas amigas para um lugar seguro, a sua van, mas Needy não acha boa ideia, enquanto sua amiga, entra no veículo, com lapsos de consciência, afirmando as vezes que quer ir com a banda e em outras ficando completamente catatônica.

O cerrar da porta já determina o que ela é: uma presa fácil, para um grupo de caça, que é levada por um sujeito malvado, cínico, que se despede com um sorriso.

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Todo o misancene desse trecho e as consequências posteriores referenciam a possibilidade inevitável de assédio.

Por mais que não seja explícito, o roteiro lida como se aquele fosse um episódio de estupro, com a violação de uma garota menor de idade.

Essa nova trama (e o destino de Jennifer) só é explicada mais à frente, a próxima aparição de Megan é na calada da noite, na casa da amiga, com o rosto e o casaco cheio de sangue, quase sem falar nada.

A aparição é ótima, bestial e apressada, como se estivesse de fato lutando para sobreviver. Na geladeira ela devora um frango frio, grunhe como um animal silvestre, vomita uma gosma preta, que libera um líquido escuro e assusta sua amiga.

Jennifer retorna na manhã seguinte, linda e plena, sem explicar o que ocorreu na noite anterior, e também sem se importar com o que houve. Enquanto Needy se encarregou de lidar com a sujeira deixada pela amiga, Jen diz que ela age de maneira exagerada e até mentirosa, quase verbaliza que tudo não passou de invenção da colega.

O procedimento de Jennifer é semelhante ao de uma figura mitológica antiga, a Súcubo, que segundo a mitologia, é um ser malvado, com aparência feminina que invade o sonho dos homens a fim de ter uma relação sexual com eles para lhes roubar a energia vital.

Ela seduz Jonas Kozelle (Josh Emerson) um atleta de futebol bastante popular e o faz da maneira mais tola e mecânica possível, consegue seu intento alimentar enquanto é observada pelos animais, que esperam para se alimentar do resto corporal deles.

Depois ela nada nua em um lago, num plano aberto magistral, que dá noção do quanto o espaço é grande e o quanto ela domina o local, dessa vez como predadora e não mais como a caça.

Outra questão curiosa é o cinismo da trama. Cody desdenha dos dramas da classe média, mostrando que as pessoas da cidade são tão entediadas e enfastiadas que enquanto o mundo passa fome e tem prioridades reais, a comunidade americana chora por uma cidade que ninguém sabia da existência até a famigerada tragédia.

Não é como se um incêndio e a morte de um atleta não fosse algo sério, mas a automática comoção dos moços e das moças, dos adultos locais e da comunidade exterior a Devil's Kittle é tratada como baseada em hipocrisia. Jennifer tem a língua ferina, parece ter transcendido, evoluído para um ser tão desprendido que não tem receio de falar o óbvio.

Fora isso ela dá sinais físicos diferenciados, já que sai fumaça de sua pele, como se sua temperatura corporal não fosse humana, como se viesse do inferno. Outra questão é que ao se banhar, ao se limpar há um cuidado por parte da diretora em mostrar a moça sem determinar sua nudez em quadro.

A trilha sonora é bem pontual, com sucessos típicos de 2009. Há canções da banda de Heavy Metal Florence and The Machine, The Sword, e Stoner Rock, cuja música Celestial Crown tem riffs embalando a cena da protagonista nua no lago.

Há também um bom cover, de I Can See Clearly Now, tocada por Screeching Weasel, fora os chicletes da época, Finishing School de Dashboard Confessional, New Perspective de Panic! at the Disc e Death de White Lies.

Curiosamente a canção Through the Trees, do Low Shoulder, virou um hino para a cidade, melancólica, insuportável, servindo como parte da crítica ao cenário musical mainstream, que ignora bons trabalhos para favorecer chicletes.

Ainda sobre música, Jennifers Body é uma música de Hole, de Courtney Love. Diablo é muito fã da cantora, e escolhe colocar na trilha a música Violet, que é desse mesmo álbum, e é colocada para fechar o filme.

Jennifer segue bem invejosa e egoísta, só se interessa por Colin Gray (Kyle Gallner) depois que a amiga o elogia. Ela ainda o xinga de emo, enquanto o ataca em um ambiente cheio de velas e cruzes, que parece um altar satânico bizarro.

Usa sombras para disfarçar o modo monstruoso, já que na cena anterior, dela abrindo uma bocarra, havia sendo bem tosca. Já na aparição em um devaneio de Needy, ela surge como um morcego prostrado, ou como um felino prestes a dar o bote, com as pernas arqueadas, um sorriso com dentes afiados e pele cinza.

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Jennifer aparece na cama da amiga logo depois da mesma transar. Essa sequência é o maior alvo de críticas do filme no geral, especialmente pela ambiguidade.

Talvez entre elas houvesse uma tensão sexual, Jennifer e Neddy poderiam ter realmente desejos lésbicos escondidos ou apenas uma delas tinha e levou a outra a ceder a sua vontade. A dúvida que fica, e que seria fundamental compreender é se esse desejo já existia ou era maduro antes da transmutação de Jen ou começou a partir desse fato?

Não há muito desenvolvimento nessa questão, a escolha é mais por parodiar a violência e os clichês machistas do gênero horror no cinema.

O ritual que a banda pretende demandava a lua crescente e uma moça virginal, e a segunda parte obviamente não foi alcançada. Fica a dúvida se foi por isso que Jennifer sobreviveu e se transformou ou se foi pelo fato de ter caído no redemoinho supostamente mágico.

As cenas dos golpes de faca lembram cenas de estupro, mas a câmera está embaçada de maneira proposital, e essa saída é esperta e respeitosa com a figura da mulher. Jennifer se transforma e quando ela está saciada, fica imortal, com poder de cura avançado.

O roteiro sabe não se levar a sério. Nas pesquisas de Needy na sessão de ocultismo do colégio, ela tem contato com o conceito de transferência demoníaca, que é resultando de um sacrifício de uma pessoa que deveria ser virgem, mas que é impura. Desse modo, um ser das trevas toma corpo e consciência da sacrificada. O mais curioso é que bastou uma ida a livraria para que ela chegasse a essa conclusão, lembra momentos de filmes péssimos, como Eu Sei O Que Vocês Fizeram no Verão Passado, mas aqui, há um aceno ao cômico, diferente da obra dos anos 1990.

Claro que o subtexto vai além. De maneira simples aborda a precocidade da vida sexual de meninas colegiais, o problema que é o fato de várias delas serem seduzidas por jovens adultos musicistas, além dos já citados tropos sobre violação de vulneráveis e dificuldade dos jovens em lidar com sua própria sexualidade.

Karyn Kusama em entrevistas posteriores, afirmou que sempre entendeu o filme como uma história sobre uma relação baseada em uma amizade tóxica. Jen suga homens depois de virar um monstro, mas já se alimentava de maneira parasitária de Needy.

Por sua vez, a amiga mais ingênua, enxergava que essa submissão poderia ser o atalho para se aproximar de sua amada idealizada.

As duas conseguem ressignificar seus destinos, de certa forma. Jennifer mata homens como revide a objetificação que sempre sofreu. Ela é apresentada como uma menina esperta, que gosta de satirizar os outros e até a si mesma, já que finge ser burra, e seu destino final é literalmente comer quem só a olhava como um pedaço de carne.

De certa forma, a artificialidade da cena em que Jennifer tenta consumir o namorado da amiga remete ao comum em uma relação entre adolescentes, repleta de mentiras trocadas, de insinuações de traição, e outros signos visuais como levitação, uso de corrida em câmera lenta e outros clichês.

O cenário escolhido para essa batalha é lodorento e insalubre, termina com golpes perfurantes, troca de acusações sobre relevância social no colegial, além da sensação de luto, que perde Chip (Johnny Simmons), seu parceiro, para a fome injustificável da amiga. Isso desencadeia uma disputa, com direito a muitos xingamentos homofóbicos, associando uma a outra ao lesbianismo, além de lembranças de quando elas eram crianças.

Ao arrancar o amuleto de BFF (Best Friends Forever), o vínculo das duas se quebra e isso aparentemente enfraqueceu a Súcubo, permitindo que um simples golpe de faca a matasse. Fica explicito que Needy herdou da amiga os poderes, graças a mordida dela, e rumaria para uma vingança a bandinha mequetrefe, achando enfim onde chega desagua o redemoinho da cachoeira local.

Ela se vinga de quem a usou e abusou, tanto com sua antiga amiga, quanto os desgraçados da banda, em uma transferência de raiva e rancor no estilo Ginger Snaps/Possuída.

Os créditos finais são engraçadinhos, mostram a banda farreando, seguida de fotos da perícia, que evidenciam a morte violenta de todos, pelas mãos de Needy, obviamente.

Garota Infernal é divertido, pervertido e cheio de subtextos. É uma das obras mais subestimadas dos últimos anos no cenário de horror mainstream e faz isso de maneira certeira, com graça e uma aura pop, além de lidar com leveza inclusive na exploração da violência considerável que carrega.

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