Batismo de Sangue é um filme nacional sobre um período histórico trágico e dramático. Falamos dele em atenção ao aniversário de 60 anos do Golpe Militar instituído em 1964, época essa conhecida como os anos chumbo da Ditadura Civil Militar do Brasil.
Essa é uma obra de caráter visceral, contém uma abordagem direta e agressiva sobre essa triste época, narrando a biografia dos padres de uma paróquia de São Paulo, que eram conhecidos por seus anseios políticos ligados a esquerda e que por isso foram duramente torturados e humilhados pelo Regime.
Lançado em 2006, o longa-metragem é dirigido por Helvécio Ratton. Nele se aborda a história de alguns sobreviventes dos anos 1960, mostrando as vidas de quem passou por essa época, de quem foi torturado, de alguns mortos e até de pessoas que ficaram traumatizadas após terem embates contra os milicos. Aos poucos se mostra todas as fases da ditadura, tanto a época dita "mais branda" - um eufemismo maldoso, diga-se - quanto os momentos mais sanguinários, pós promulgação do Ato Institucional Número 5, em uma abordagem temporal que vai e volta na própria cronologia.
O longa-metragem é conhecido por ter grandes atores em seu elenco como Caio Blat, Daniel Oliveira, Júlio Andrade, Ângelo Antônio e Cássio Gabus Mendes. Também é lembrado e louvado por basear sua história no livro homônimo de Frei Betto.
O enredo começa pela década de 1960, em eventos ligados ao convento dos frades dominicanos, que por sua vez, acabou por se tornar um dos mais vocais grupos de resistência à ditadura vigente no Brasil.
Os religiosos Tito (Blat), Betto (Oliveira), Oswaldo (Antônio), Fernando (Léo Quintão) e Ivo (Odilon Esteves), se aliam ao grupo político que se prepara para fazer uma guerrilha urbana, até apoiam logisticamente a Ação Libertadora Nacional, comandado à época por Carlos Marighella.
O roteiro é de Ratton e Dani Patarra, que escreveu Proibido Proibir e Não Se Pode Viver sem Amor, ambos de Jorge Durán e O Segredo dos Diamantes de Ratton. O longa foi foi produzido pelo diretor e por Simone Magalhães Matos de Uma Onda no Ar e Amor & Cia, ambas obras de Ratton, além de Mal de Alberto Seixas Santos.
Conta com produção executiva Guilherme Fiúza Zenha que fez a mesma função em Os Filmes Que Não Fiz, depois se tornou diretor em 5 Frações de Uma Quase História, O Menino no Espelho e Chef Jack: O Cozinheiro Aventureiro.
O filme foi bastante premiado. Passou no Festival de Cinema de Brasília de 2006, vencendo as categorias de Melhor diretor e Melhor fotografia para Lauro Escorel.
A história inicia em São Paulo, na paróquia (e lar) do grupo de padres. No decorrer da trama o Regime Militar recrudesce e passa a perseguir quaisquer pessoas que estejam na oposição ou que meramente pareçam assim, incluindo aí até padres dominicanos.
A trama é móvel, tanto que Frei Ivo e Frei Fernando partem para o Rio de Janeiro, onde acabam sendo surpreendidos e torturados por oficiais brasileiros que acusam eles de serem traidores da igreja e da pátria.
Eles são interceptados a fim de entregar a localização do líder comunista Carlos Marighella. Nesse ponto são narrados os fatos conhecidos, que falaremos mais abertamente na parte do texto com spoilers, mas pode-se antecipar que ocorrem ações do DOPS paulista, sob o comando do delegado Sérgio Paranhos Fleury, interpretado por Gabus Mendes.
A trama também passeia por presídios mineiros e até por países estrangeiros. Ratton filmou em Belo Horizonte, capital de Minas Gerais, também no Rio de Janeiro e em Couvent de La Tourette, Éveux, Rhône, Rhône-Alpes, na França.
Em países latinos, o longa se chama Batismo de Sangue mesmo, como no Equador, já nos países de língua inglesa se chama Baptism of Blood.
Helvécio Ratton era conhecido por Em Nome Da Razão - Um Filme Sobre Os Porões Da Loucura, um documentário sobre o Hospital Colônia de Barbacena em Minas Gerais. Também é lembrado por A Dança Dos Bonecos, um filme infantil que apresenta elementos do folclore brasileiro. Também fez Menino Maluquinho: O Filme, baseado claro na obra do cartunista e quadrinista Ziraldo.
A partir desse ponto falaremos sobre as curvas dramáticas. Dessa forma o texto conterá spoilers. Também falaremos a respeito de violência física e tortura, fica o aviso de possível gatilho, leia sabendo disso.
A primeira cena já é bastante forte, uma vez que mostra o frei interpretado por Caio Blat andando por um espaço florestal. Esse trecho parece algo comum, já que ele está sozinho, no meio do mato. Não fosse a intenção do sujeito, passaria batido o momento, especialmente para o espectador mais desatento.
O choque vem logo, já que Tito procura um lugar firme, a fim de amarrar uma corda e se enforcar, graças aos problemas que conviviam com ele desde que sofreu torturas comandadas por Fleury.
A trama brinca com a linha temporal mostrando ele vivo logo depois, explicando assim como sacerdote chegou aquele estágio de melancolia, levando em conta obviamente o fato dele ser crédulo e temer morrer via suicídio, algo que danaria a sua alma.
Logo é mostrada uma viagem de carro, misteriosa, que não se sabe o destino, nem quem dirige. No banco de trás os passageiros são vendados, mas se percebe a revista Realidade em um dos bancos, um pequeno aceno a filiação política dos personagens, já que essa era uma revista de viés contestador, que foi duramente perseguida na época dos militares no poder.
Estão ali os personagens de Blat, Esteves e Quintão. Nenhum deles usa trajes litúrgicos, mas parecem estar de uniforme, com blusas claras e óculos de grau. Parecem nerds.
Nesse trecho eles encontram Marighella, que é feito pelo músico Marku Ribas, um dos precursores do samba-roque. Aqui ele utiliza um nome fictício, se auto intitula Menezes.
O personagem aparece quase sempre disfarçado, algumas vezes até com uma peruca muito falsa, que obviamente mirava chamar a atenção das pessoas para outro aspecto que não o seu conhecido rosto. A tática, em teoria, podia ser boa, mas obviamente não logrou êxito.
Em outros pontos da história, aparecem outros religiosos, como o jornalista Betto, que é feito pelo mesmo Daniel de Oliveira que interpretou Stuart Angel, em Zuzu Angel, depois é apresentado Ângelo Antônio como Frei Oswaldo.
Marighella/Menezes entrega material literário para eles, entre os papéis há poesias e manuais de guerrilha. A prosa e a ação andam juntas, de acordo com o líder militante. O contato com revolucionários inspira os personagens, que tentam se organizar, arrumam dinheiro, escondem camaradas e companheiros. Alguns inclusive tem contato com internos no DOPs, o Departamento de Ordem Política e Social.
O cotidiano deles passa por eventualmente, salvar um militante ou outro, que sofre perseguição e possível prisão. Ratton dá espaço para mostrar o modus operandi dos padres que lutavam contra a tirania do governo.
É calmo e exibe tudo de maneira mais pacífica possível, com poucas menções a violência, mas breves. Nesse momento são mostradas armas nas mãos dos militares, mas nada muito agressivo. O aspecto mais violento certamente é a música instrumental tensa, assinada por Marco Antônio Guimarães.
Os ativistas da UNE (União Nacional de Estudantes) são mostrados como de fato eram: ingênuos, quase burros, tanto que ao decidir fazer um congresso secreto em uma cidade do interior, não tomam cuidado de trazer suprimentos, tampouco disfarçam que essa era uma grande reunião. São pegos graças ao fato de acabar com o pão e leite de uma cidade pequena.
A pasmaceira acaba aos 19 minutos, quando se mostra a captura dos estudantes, mas a trama possui um vai-e-vem temporal constante, passa por momentos tranquilos, em missas onde os padres ainda podiam falar sobre partilhar o pão e demais clichês em comum entre a pregação do evangelho e a causa dos pobres, com anuência do superior deles o Padre Diogo (Victor Ramil), passando também pelo o discurso radical de esquerda, comunista, inclusive com monitoria de policiais.
Os padres são idealistas. Mesmo os que tem chance de se mudar protelam isso. Oswaldo devia ir para a França, mas demora a tomar seu rumo, enquanto Betto, devia ir para a Alemanha, já que sua função fora da igreja, de jornalista, é muito visada.
Aos 40 minutos, Fleury aparece. Cássio Gabus Mendes faz um homem sinistro, nervoso e amedrontador, bem diferente de seu personagem João Alfredo Galvão em Anos Rebeldes, que é outra obra que fala a respeito da época da Ditadura Militar.
Sérgio Paranhos Fleury foi um policial que atuou como delegado do DOPS de São Paulo. Considerado um dos repressores mais notáveis e infames - se é que possível juntar esses dois adjetivos - do período, tendo sido biografado pelo jornalista Percival de Souza na obra Autópsia do Medo, lançada em 2000.
Em cenas de interrogatórios, ele fala sobre trivialidades, diz que tem o sonho particular, de ter um barco e morar em Ilhabela. Em 1979, 10 anos depois dos fatos retratados na cena, Fleury morreria por afogamento inexplicável em Ilhabela, após cair de seu barco.
No grupo de Fleury se destaca o policial Raul Careca, interpretado por Murilo Grossi - da novela O Clone, da série JK e do filme A Concepção - também atua bem demais. Ele primeiro aparece como infiltrado em uma missa, depois surge como torturador, como parte da equipe que trabalha os internos do DOPS.
O objetivo era um só: pegar Marighella.
E ele realmente foi pego, na Operação Bandeirantes, comandada pelo Delegado Fleury, aqui mostrado como ponta de lança no tiroteio covarde que vitimou o líder político.
Ratton é até "generoso" com o milico, já que Fleury era conhecido por ser um sujeito covarde demais para matar alguém, ainda mais o líder a Aliança Libertadora Nacional.
Apesar de mostrar muitas cenas de tortura e prisão, o sentimento que mais marca certamente é o de melancolia. As cenas dos padres vendo seus camaradas sendo levados do cárcere ou para tortura ou para morte é sempre triste. Não se fala uma letra sobre o que ocorrerá, mas se sabe facilmente o que ocorrerá.
É quase de chorar a sequência da ceia, no presídio, com Tito ministrando o pão e corpo de Cristo aos presos e até aos guardas, enquanto o carcereiro feito por Babu Santana quer cear, mas não pode, afinal, sente medo do enquadro de seus superiores, que observam toda essa movimentação, absolutamente constrangidos.
No meio da calmaria do presídio Tiradentes, Tito tem sua paz interrompida, para ser levado ao recém-inaugurado DOI-Codi. Essa é a sigla do Destacamento de Operações de Informações do Centro de Operações de Defesa Interna, órgão responsável pelo planejamento de ações de segurança e informação, incluindo capturas, averiguações e interrogatórios de suspeitos.
É nesse cenário, após delatar amigos e camaradas, sendo duramente agredido, que ele tenta se suicidar pela primeira vez, depois de pedir o aparelho de barbear de um carcereiro emprestado, para arrumar a lâmina, para enfim cortas os pulsos.
Ele é mandado para o exílio, mas jamais volta a ser o Tito de antes. Ele lembra dos momentos de prisão, das surras, das sessões de tortura, até com cenas na cadeira de dragão. Ele é tem sua alegria suspensa, parece se isentar de boas sensações e sentimentos.
A imagem de Gabus Mendes volta em vários momentos, basta ver alguém parecido com Fleury, seja em Roma, no Chile ou em Paris, basta ele fechar os olhos que ele se sente cercado ou perseguido de novo. Até atos simples, do cotidiano eclesiástico, como o ato de comer hóstia, era motivo para ele lembrar dos choques e dos deboches dos malfeitores, visto que eles usaram até esse momento sagrado como alvo de deboche, sujando assim as imagens mentais e lembranças do padre.
Blat faz um homem traumatizado, que busca alívio, que vê fantasmas em tudo, mesmo enquanto está na Europa se sente vigiado, mesmo quando tem contato com sua mana Nildes, de Marcélia Cartaxo. Ela também atua demais, interpretando uma pessoa que é triste pela derrocada do irmão e obviamente pela situação do país. Blat é o melhor desempenho dramático do filme, disparado, consegue um resultado atroz na representação de como o Brasil deixou os seus nacionalistas doentes e tristes.
Batismo de Sangue é visceral e emotivo, se equilibrando bom entre os tons de denúncia e de reflexão sobre um dos períodos mais medonhos do país. É para ser visto e estudado, como um bom retrato do histórico Brasil, também é possível apreciar ele como um grande exercício de dramaticidade, emoção e desespero, que resulta em uma boa mistura de drama real e de horror que deve ser sempre lembrado, até para não ser repetido mais.