O Anticristo é uma obra controversa, que mistura elementos de escola de filmes de terror distintas. A obra foi bastante criticada em seu lançamento e é pouca lembrada até pelos fãs de filmes de baixo orçamento, ainda mais se comparada aos seus pares.
Dirigido por Alberto de Martino, é um filme de terror italiano lançado em 1974 que foi feito para aproveitar o sucesso de O Exorcista, embora seja bem diferente dele em metade do seu exercício narrativo.
O longa-metragem se vale de vários estilos de contar história de medo, a expectativa inicial é que fosse baseado nos famosos filmes de terror com freiras, os nunsploitation, mas em seu corte final acabou tendo mais semelhanças com obras sobre exorcismo, mesmo que seu orçamento não comportasse os efeitos necessários para a obra sair boa nesse sentido.
Um de seus diferenciais é a exploração um conjunto de crenças e religiões que não necessariamente passam pelo eixo judaico-cristão, levantando elementos de credos estrangeiros, em um sincretismo religioso que não se imaginava comum dentro de uma obra italiana.
O estúdio por trás da obra é a Capitolina Produzioni Cinematografiche, teve distribuição da Fida Cinematografica. Teve produção de Edmondo Amati, de Argoman Superdiabólico e Muito Para Viver...Pouco Para Morrer.
Curiosamente seu lançamento se deu em 22 de novembro de 1974, três semanas após o filme turco Seytan, que é uma cópia descarada do clássico O Exorcista de William Friedkin. No entanto, esse O Anticristo parece conversar mais com Os Demônios, filme de Ken Russell que aliás, foi uma das inspirações para William Peter Blatty.
Ao contrário de seus pares italianos, esse possui pouca variação de nomes. No original chama L'anticristo, em espanhol geralmente é encontrado como El anticristo. Já em inglês era possível achar como The Antichrist, Blasphemy e The Tempter.
Martino era ligado a arte desde sempre. Era filho de um maquiador de cinema e começou sua própria carreira como ator mirim. Adulto, estudou direito e voltou à carreira no cinema trabalhando como editor, roteirista e assistente de direção. Ele afirmou que foi incentivado a ser diretor por Federico Fellini, com quem trabalhou supervisionando a dublagem de A Doce Vida.
Ele foi uma das figuras mais ativas do cinema de gênero italiano entre os anos 1960 e meados dos anos 1980. Fez filmes de diferentes gêneros, incluindo Western Spaghetti, obras policiais conhecidas como poliziotteschi e filmes baseados em textos bíblicos, os populares Peplum, além de ter feito filmes de terror.
Ele foi diretor de segunda unidade do épico Quando Explode a Vingança de Sergio Leone. Nessa época, era frequentemente creditado com um nome em inglês, como Martin Herbert.
Enquanto realizador fez de tudo um pouco, como imitações de filmes épicos em O Gladiador Invencível, Perseu: O Invencível, O Triunfo de Hercules e Gladiadores Espartanos, faroestes como Os 7 Invencíveis, Cem Mil Dólares para Ringo e A Carga do 7o. Ele tentou fazer fantasias de heróis como em O Homem Puma – um fracasso retumbante, que quase fez ele perder sua casa - e filmes de terror como o giallo como L'assassino... è al telefono e Elo de Sangue.
Anos depois desse Anticristo, De Martino retornaria ao gênero satânico com Exterminação 2000, obra lançada em 1977 com Kirk Douglas, em atenção ao clássico A Profecia.
Por mais que o filme seja lembrado por explorar clichês de possessão, é fato que ele tem um trabalho artístico bem-feito, tanto na direção de arte quanto em outros aspectos técnicos.
A música por exemplo, tem uma dupla de compositores de peso, sendo assinada pelo genial Bruno Nicolai, de Django, Romeu e Julieta de Franco Zefirelli e Calígula e pelo maestro Ennio Morricone, que na década de 1970 fez Mussolini: Ascensão e Glória de um Ditador, O Deserto dos Tártaros, Orca: A Baleia Assassina e O Exorcista II: O Herege.
A direção de fotografia ficou com Aristide Massaccessi, nome fantasia do diretor Joe D'Amato, cineasta de O Antropófago e Absurd, duas obras proibidas pela censura britânica na época do governo da ministra Margareth Tatcher, presentes na infame lista de Video Nasty.
Martino começa sua história em uma romaria, em um santuário da Virgem Maria, onde está a protagonista, Ippolita de Carla Gravina, uma jovem milionária e paralítica, que vai até lá buscar de um milagre.
Durante essa ida, há também um homem que age de maneira estranha e violenta. Depois de um rompante, ele se taca do alto de um penhasco, se suicidando na frente de vários fiéis. Pouco antes de partir ele afirma que está com um demônio, apesar de claramente não parecer estar possesso.
O que quer que estivesse nele, passou para a moça protagonista. Ippolita apresenta mudanças de comportamento bruscas. Seu pai, Massimo (Mel Ferrer), vai atrás de um bispo, que é tio da moça, e o mesmo sugere um encontro com um psicólogo que trata através da hipnose.
O roteiro explora uma temática de vidas passadas, mostrando que ela foi uma mulher queimada viva em outra encarnação, condenada por heresia no passado, não ficando claro se era na época da inquisição.
Ou seja, a obra mistura elementos de catolicismo e espiritismo, girando essas tramas espirituais em torno de Ippolita. Haveriam também menções visuais a rituais pagãos e até satanismo.
Algumas situações dentro da direção de arte de Uberto Bertacca chamam a atenção. As pessoas que entraram na procissão católica estão vestidas a caráter, com figurinos meio pobres, não ficando claro se é intenção mostrar esses como pessoas simples ou se é só restrição orçamentária.
Nessas cenas iniciais há breves flashs, que mostram momentos que não combinam com práticas cristãs, gente de estrebuchando, como se sofressem de uma perturbação mental, outros mostram pessoas segurando animais peçonhentos, como cobras.
Em outro ponto, pessoas tentam tocar na imagem da santa, encostando em uma grade, separados assim pelo metal, em uma porca simbologia sobre o sentimento de prisão que obviamente serve de paralelo a condição de não liberdade dos personagens enfocados aqui.
Quem toca na Santa é salvo, tem milagres, mas nem Massimo e nem sua filha conseguem isso. Antonio, o homem que se matou, não se permitiu tocar na imagem. O personagem de Ernesto Colli parece estar à beira da morte, magérrimo, fraco e esquelético.
Ele foge para fora do registro da câmera a fim de dar cabo de sua vida, não sem antes uma personagem falar da maneira mais expositiva possível, que se ele morrer, sua alma estará condenada. Esse é de fato um filme que se assume mais como cristão do que como qualquer outra coisa, visto que a condenação da alma para suicidas é algo intrinsicamente ligado a pregação católica apostólica romana, também em alguns sectos protestantes e evangélicos.
O lugar onde mora a família é um cenário bonito, uma grande mansão, com predomínio da cor vermelha. Há cômodos espaçosos, é um verdadeiro palácio às vezes.
Quando Ippolita chega, seu irmão Filippo (Remo Girone) apresenta um sujeito suspeito, adepto de métodos não científicos. Ele é Marcello Sinibaldi (Umberto Orsini), que quer praticar hipnose com a moça, para aplacar a paralisia da mulher.
Ela aceita e as sessões lembram o que é visto com a Regan de Linda Blair em O Exorcista II. Eles fazem uma regressão, onde ela revive o dia do acidente, que vitimou sua mãe e a fez se machucar.
Ela clama pela ajuda de seu pai, sujeito que se sente culpado até o momento presente, já que foi incapaz de salvar a esposa e até sua filha, que ficou marcada para sempre.
A viagem vai muito atrás, antes até da mulher nascer, mostra uma outra encarnação, de outra moça entre grades, blasfemando contra um grupo de padres agressivos, em um ritual que lembra os chavões do vodu.
O que pareceu uma tentativa de curar uma enferma rapidamente virou uma via crúcis, uma luta espiritual entre uma pessoa inocente e um espírito imundo. Mesmo levando em consideração essa jornada, a realidade é que Ippolita é focada nessa trama, enquanto seus parentes vivem suas vidas separadamente, especialmente seu pai, que quer casar com Greta, personagem de Anita Strindberg, de Uma Lagartixa num Corpo de Mulher.
A protagonista obviamente percebe isso. Ela passa a suspeitar que talvez a batida de carro pode não ter sido acidental.
Também é patente que ela tem um sentimento bastante obsessivo em relação ao pai, possivelmente até incestuoso. Isso se manifesta na sequência mais inspirada e bizarra do longa.
Há uma estranha cena, onde Massimo e Greta transam. A intimidade do casal aumenta a medida que Ippolita se despe em sua cama. A cena brinca com uma ligação emocional do trio, que compartilham dos momentos de libido exacerbada do casal, enquanto mostra as belas curvas de sua protagonista exibicionista.
Nesse trecho há um devaneio da personagem principal, que se enxerga em uma floresta cheia de pessoas nuas, todas com pele acinzentada. Ela tem contato com sua contraparte do seu espírito, e bebe o sangue de um sapo, em uma versão profana da ceia cristã.
Nesse trecho, uma espécie de mistura entre homem e bode aparece, um sujeito bípede, com a cabeça de um animal chifrudo faz juras estranhas sobre ela, parece estar proferindo falas satânicas, já que ele afirma que a protagonista será receptáculo do Diabo.
Esse é um momento genuinamente criativo e assustador dentro da trama, com cenas grotescas de morte de animais inclusive, já que esmagam um sapo, espalhando sangue de anfíbio por todo o corpo da moça.
No presente Ippolita é tratada como virgem, mas aqui ela se movimenta de uma forma erótica, abre suas pernas para receber a penetração desse sacerdote, enquanto no campo da realidade, ela consegue fazer movimentos que antes não eram seus, movendo as pernas de maneira expansiva.
A sequência é pesada, mas também bonita, com as paredes do quarto ganhando aspectos iguais a de um céu, com um efeito de chroma key que não é bom, já decaindo de qualidade se comparada as cenas anteriores.
É a partir desse ponto que o visual cai de qualidade.
A personagem melhora, consegue voltar a andar e imediatamente se torna uma devassa. Nas ruas da cidade ela age como sedutora de menores, que estão passeando por sua cidade. Termina com o garoto morto, com o pescoço virado.
Para a família o momento de virada é quando Ippolita tem um xilique em um jantar, com seu irmão, pai, madrasta e com o doutor. Ela fala obscenidades, provoca Greta, muda de voz e até espuma pela boca.
Aqui há cenas genuinamente boas, típicas de filmes de casa assombrada, que terminam com quadros se mexendo sozinhos e com ela queimando as roupas de Marcello graças ao seu toque.
O preço de voltar a andar parece ter sido cobrado, já que ela é refém de espíritos malignos. Mesmo o pai dela, que é cético, passa a acreditar, mas depois que Marcello afirma que a causa é sobrenatural, o patriarca vai atrás do parente bispo, Ascanio Oderisi, de Arthur Kennedy, mas ele nega ajuda.
Desse ponto até o final o filme se torna uma ladeira, rumando para a decadência cada vez mais rápido.
Há vários trechos bizarros, cenas de show off de possessão, onde Gravina usa lentes de contato brancas, enquanto funcionários tentam exercer autoridade espiritual sobre ela.
Círculos sagrados desenhados no chão com sal não funcionam, nem os apelos a utilização de cruzes pintadas.
Ela flutua, faz partes de seu corpo sumirem para aparecer em outro lugar do cômodo, com um chroma key ainda mais paupérrimo que nas cenas já citadas, ela vomita uma gosma verde, materializa chamas ardentes, com efeitos digitais risíveis.
O pai tenta ajudar a filha, até promete que vai se separar de Greta se ela melhora, mas nem isso faz a menina ter dó dele, submetendo o velho ao infortúnio de encarar um espírito sujo diante dos seus olhos, tomando sua pobre e inocente herdeira, que vomita nele.
A maquiagem da possessa é simples, os efeitos também. O que chama mesmo a atenção é a linguagem verbal pesada, com muitas insinuações sexuais incestuosas e com blasfêmias.
O Diabo diz que engravidou a moça e que o filho dela será o anticristo, a figura que liderará o Apocalipse, mas não há muita pressa ou senso de urgência. Pode ser que o espírito imundo só esteja blefando, mas ainda assim é estranho.
O exorcismo só é autorizado no final do filme, quando aparece o padre Mittner, interpretado por George Coulouris (dublado por K. Lange). O sacerdote pede a presença de mais alguém, da família, pois a possessa é mulher, e era preciso "fugir da aparência do mal". A serviçal Irene de Alida Valli se prontifica, afinal, ela é como se fosse parte da família.
A saída para a vitória começa com um movimento estranho, já que o padre tem a ideia de benzer a água da chuva. Assim, a simples queda d'água salvaria a alma da possuída.
O plano obviamente dá errado, resultando em uma fuga, que lembra a de Antonio no começo do filme e a intervenção do pai, que salva sua menina.
Fazendo isso, impedem que o anticristo nasça, praticando um aborto, de uma forma que abusa de efeitos especiais mequetrefes, que tentam fazer dessa cena um momento lúdico, mas sem qualquer sutileza ou mínima construção espiritual.
É tosca a forma de estabelecer um sentimento de tensão e é visualmente mambembe, zerado de significado, uma forçada de barra que Martino não precisava ter feito.
Anticristo é uma trasheira profana e agressiva, mas é bem mais divertido do que qualquer sequência de O Exorcista, claro, pelo caráter galhofa. É uma pena que ele tenha mudado tão bruscamente de caráter no final, já que possuía uma ideia muito criativa até pouco mais de uma hora, caindo então em uma tolice de falar sobre clichês exorcistas.