Uma Lagartixa Num Corpo de Mulher : Um giallo "animalesco" de Lúcio Fulci

Uma Lagartixa Num Corpo de Mulher : Um giallo "animalesco" de Lúcio FulciUma Lagartixa Num Corpo de Mulher é um filme de horror que está dentro do subgênero de terror italiano chamado Giallo. Sua abordagem varia entre o que é comum no clichê de filmes de assassino, ao passo que também trata de assuntos pesados, mas que não pesam na maneira de contar a história.

Objeto da filmografia do mestre e realizador Lúcio Fulci, o longa reúne elementos de suspense, homicidios e bastidores do poder na Itália.

Essa é uma coprodução entre vários países, como Itália (obviamente), França, Espanha e Reino Unido. É conhecida por duas participações muito importantes, a do compositor Ennio Morricone e da atriz brasileira Florinda Bolkan.

O nome da obra foi dado para se aproveitar da moda de colocar animais nos títulos dos filmes sobre assassinatos, tal qual ocorreu com O Pássaro das Plumas de Cristal, A Cauda do Escorpião, O Ventre Negro da Tarântula, A Iguana da Língua de Fogo e tantos outros. Na Itália a obra se chama Una lucertola con la pelle di donna e as variações de nome são poucas, se comparados aos seus pares.

Atualmente é possível achar ele como Una lagartija con piel de mujer, A Lizard in a Woman's Skin e Le venin de la peur ou Carole, nas variações de espanhol, inglês e francês respectivamente.

O argumento é do diretor e de Roberto Gianviti, escritor de obras fulcianas, como Premonição e Nova York: Cidade Violenta. Já o script tem outras mãos, incluindo Fulci e Giaviti, além de José Luis Martínez Mollá, que fez o texto de Django Volta Para Matar, A Ira de Deus e Uma Sobre a Outra, além de André Tranché, que escreveu e produziu A Espada Normanda e O Arqueiro de Fogo.

Edmondo Amati que vinha de experiências de Argoman Superdiabólico e Muito Para Viver...Pouco Para Morrer foi o produtor, já Renato Jaboni, de O Segredo do Bosque dos Sonhos e Pavor na Cidade dos Zumbis foi o produtor executivo.

A obra foi quase toda filmada na Inglaterra, em Londres. Teve cenas em Westminster, Old Bailey, Woburn, South Kensington, Marlow, St James's, Buckinghamshire. Já partes filmadas em estúdio foram feitas em Roma, no Dear Studios em Lazio. As companhias responsáveis foram a Production Companies, International Apollo Films, Les Films Corona, Atlántida Films.

A distribuição ficou a cargo da Fida Cinematografica na Itália, American International Pictures (AIP) nos Estados Unidos e na Atlántida Films na Espanha. Como é uma coprodução de muitos países, há versões diferenciadas do longa, algumas muito cortadas, graças a censura dos países – incluindo o Brasil, já que ele estreou em meio a Ditadura Militar, em 1971.

A versão espanhola é bem diferente, tanto em duração, já que é menor que o corte internacional, quanto em sentido, já que a dublagem espanhola alterou aspectos da trama, omitindo inclusive uma relação de flerte lésbico entre personagens.

Isso obviamente influenciou diretamente no sentido e compreensão de boa parte da história, mas falaremos mais à fundo na parte do texto com spoilers. De qualquer forma avisamos que falaremos sobre detalhes da trama, com mais revelações no final da análise.

Uma Lagartixa Num Corpo de Mulher : Um giallo "animalesco" de Lúcio Fulci

A trama parte da experiência de Carol Hammond, personagem de Florinda Bolkan, mostrada primeiramente como alguém que tenta sair de um vagão de trem, esbaforida, ofegante, desesperada para sair dali, seja lá qual for o motivo.

Ela passa por um espaço curto e lotado de gente, está sendo esmagada e apertada por várias pessoas nuas ou seminuas no ambiente que está. A sequência é estranha, especialmente pelo fato de não ser real. Era uma ilusão de Caroline, um devaneio com contornos eróticos que mostram a moça sofrendo graças a essas interferências sexuais.

O final desse momento resulta na visualização de uma bela musa loira, interpretada pela icônica Anita Strindberg, de A Cauda do Escorpião e O Anticristo. Ela faz Julia Durer, uma socialite conhecida por seus hábitos "devassos".

Em determinado ponto, as duas estão na cama, com Caroline parada, tão imóvel que parece até paralisada, quase catatônica. Ela não reage enquanto a outra moça a beija.

Carol então acorda e percebe que aquele foi um pesadelo erótico, fato que a faz escandalizar, afinal, pensar aquilo não era correto para uma moça de família tradicional.

Como sempre Fulci é completamente despudorado, é comum ver os seus filmes sendo pautados por nudez gratuita, mas aqui há um pouco mais, uma boa justificativa por mostrar isso, entre outros pontos para aludir a uma homossexualidade tão reprimida que faz a "vítima" beirar a frigidez sexual.

Uma Lagartixa Num Corpo de Mulher : Um giallo "animalesco" de Lúcio Fulci

No entanto, não é só na pseudo-relação entre a protagonista e a socialite que aparecem insinuações sexuais. Há trechos de sexo grupal, com bacanais que só não mais pesadas graças ao fato de não mostrar de forma literal qualquer penetração.

O roteiro joga na conta de mostrar a juventude rica de maneira crítica, apelando para um conservadorismo lugar comum, que encara os abastados como gente devassa e inconsequente.

Curiosamente, Fulci era conhecido por ter ideias mais ligadas a esquerda radical. Dessa forma ele usa seus filmes para ironizar as ideias reacionárias de seus opositores políticos, mesmo que soe confuso nesse intuito.

Carol é apresentada uma menina mais recatada, casada com um homem, mas incapaz de demonstrar qualquer carinho ou paixão por ele. Já sua vizinha é dada, uma hippie jovem e desinibida, que sabe que tem beleza e usufrui dela. Sua casa é sempre repleta de gente, inclusive para interações de amor livre.

Daí existe uma óbvia dicotomia, uma oposição de uma pessoa travada, possivelmente uma bissexual ou lésbica enrustida, que suprime sua sexualidade, em comparação com uma outra mulher que vive de maneira livre, vista como devassa pelos outros, mas que é somente alguém livre mesmo.

Essa temática já havia sido bem explorada pelo diretor, no filme de assassinato Uma Sobre a Outra, obra essa que faz parte do movimento de filmes gialli.

Edmond Brighton é um político, personagem interpretado pelo veterano Leo Genn (Quo Vadis) é o pai de Carol e pergunta se Frank Hammond (Jean Sorel) está sendo infiel com sua filha. É curioso como mesmo diante de perigos e assassinatos, a grande preocupação do político é mundana, ligada a imagem de possível traída.

Esse aliás é o centro dramático da história, o receio da parte de um homem poderoso, em ser malquisto por sua comunidade.

Aos poucos a protagonista tem uma piora nas alucinações. A música de Morricone pontua os momentos onde ela enxerga engravatados com pele cheia de chagas acinzentadas. Esse trecho mostra uma visão diferenciada de George Nada em Eles Vivem, além de fazer uma clara referência aos zumbis, que eventualmente Fulci colocava em suas obras clássicas.

Uma Lagartixa Num Corpo de Mulher : Um giallo "animalesco" de Lúcio Fulci

Ela ainda é perseguida por uma enorme ave, um tipo ganso ou pato, criatura essa feita de efeito prático, que sobrevoa um cenário tipo de praça. As cenas variam de qualidade, algumas são boas, outras não. Ela ainda se imagina nua, matando Strindberg, enquanto é observada por um casal também pelado, com olhos brancos. Tudo isso ocorre com menos de vinte minutos.

Ela procura ajuda, não ficando claro se foi por opção sua ou de seu parente. Ela se consulta com um psiquiatra, o Dr. Kerr (George Rigaud) e nessas seções, ela fala de alguns sonhos que apareceram em tela, mas algumas inéditas. Nessas conversas ela antecipa a tragédia e a morte de Durer.

O modo como Fulci desdenha dos ricos impressiona. Eles todos são depravados, usam roupas de cores espalhafatosas e cafonas, estão sempre fazendo menção de estar transando com gente de classes menos favorecidas.

A composição visual também faz referência aos cenários de obras do passado, mas não tão velhas para serem encaradas como clássico. A mansão da senhora Gordon por exemplo, lembra o ateliê de Seis Mulheres Para Um Assassino, mas em uma versão caricatural. A distância entre as obras é de sete oito anos.

Morricone compôs uma espécie de blue/jazz bizarro, que é preenchido normalmente por um forte contrabaixo, que eventualmente toca com metais. A canção tema é executada várias vezes, quase sempre nos momentos de sonhos da protagonista ou quando ela encontra as pessoas que seus pesadelos mostraram.

Nesse Uma Lagartixa num Corpo de Mulher Fulci experimentaria boa parte das paranormalidades que ele trataria em diversas obras, especialmente em Premonição, de 1977. Aqui a condição de contato com o sobrenatural é dúbia, deixando a impressão de que pode ser apenas uma manifestação de psique combalida e não uma ação espiritual.

A equipe da perícia parece tão tarada quanto as fantasias de Carol. Essa sociedade é podre, até os legistas se aproveitam do fato de ver o corpo nu de Furer. Eles trocam fotografias do cadáver, de um modo tão grosseiro que constrange o responsável pela investigação, o inspetor Corvin, de Stanley Baker.

O que realmente é pornográfico propositalmente e sem grandes mensagens por trás é a sanguinolência. Fulci pesa a mão no gore e isso gerou problemas sérios na veiculação da obra em outras praças.

Em determinado ponto, o script coloca Carol para entrar em um laboratório, cheio de cães com os órgãos expostos, abertos na barriga de modo que aparecem as vísceras e o sangue.

Fulci quase foi preso porque se acreditava que os cães eram reais, no entanto, os membros do departamento de arte testemunharam em tribunal que os “cães” eram de fato falsos e que nenhum animal tinha sido ferido.

Uma Lagartixa Num Corpo de Mulher : Um giallo "animalesco" de Lúcio Fulci

O artista de efeitos especiais Carlo Rambaldi, que trabalhou em King Kong, Contados Imediatos do Terceiro Grau, Alien: O 8º Passageiro e ET: O Extraterrestre, foi ao tribunal para apresentar os adereços dos cachorros falsos, para convencer o júri. Esta foi a primeira vez que um artista de efeitos teve que testemunhar em tribunal afirmando que o seu trabalho não era "real".

O texto leva suas situações bizarras meio em tom de piada. Até o visual do assassino, que é um sujeito de jaqueta de couro, com um capacete de moto que possui óculos vermelho que esconde os olhos, parece isso, já que demonstra ali metade do rosto do tal homicida.

O diretor não permite que sua obra recaia sobre a galhofa, ao contrário, é tudo milimetricamente pensado para soar épico, como uma visão horrorífica, que visa assustar através de um mergulho na insanidade e no grotesco.

O terror reside na imoralidade de uma sociedade suja, que é incapaz até de manter uma mulher a salvo.

A identidade do assassino é (supostamente) revelada e não é surpresa que seja Hubert (Mike Kennedy), um dos homens com quem Carol sonha, que era um hippie que frequentava a casa de Durer. Ele e Jeany (Penny Brown) aparecem quase todo o filme como caricaturas de artistas temperamentais, incompreendidos, que enxergam a morte de maneira não criminosa.

No entanto esse era um despiste, um MacGuffin, tal qual fazia Alfred Hitchcock em seus filmes. Aparentemente, Fulci imitou seu desafeto Dario Argento também na condição de imitar o mestre do suspense.

Logo é mostrado que Brighton se suicidou, mas não antes de confessar o assassinato de Julie Durer, mas também estava mentindo. É difícil de determinar quem pensou nisso, mesmo com a teoria do inspetor, que credita a Caroline os assassinatos e que diz que seu pai se matou graças a ela ter se tornado uma assassina, tal foi a vergonha.

Teria sido ela, em uma personalidade assessória, quem escreveu a carta? Teria sido o político mesmo quem confessou para tentar salvar sua herdeira? Quem matou Brighton, ele mesmo ou Caroline em mais um movimento de insanidade? São questões pontuais, que ficam em aberto, garantindo uma riqueza textual ao filme, sendo dúbia até o último momento.

Fulci faz mais uma obra onírica, que é difícil de pescar todas as intenções mesmo sendo simples em sua abordagem. Uma Lagartixa num Corpo de Mulher é um longa belo, cheio de cores, significados e subtextos, sendo enfim algo acima da média até dos clássicos gialli.

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