A primeira vez que assisti Viagem Maldita, longa-metragem comandado pelo diretor francês Alexandre Aja em 2006, a sensação ao terminar de ver o filme que peguei na locadora do bairro onde minha mãe morava foi de espanto. Foi difícil impossível sair inalterado indiferente após ver o longa, ainda mais em meu caso, que novo, um adolescente.
A sequência de eventos assusta pela construção dos personagens, pelos clichês pervertidos e também pelo final repleto de reviravoltas.
Essa é uma co-produção entre Estados Unidos, França e Marrocos, e obviamente na época não sabia que se tratava de uma refilmagem de Quadrilha dos Sádicos, afinal tinha pouco conhecimento sobre os filmes do gênero do horror. Essa foi uma paixão tardia, mas intensa desde que começou.
Ao comparar as versões, gostei bastante do nacionalismo cínico que Wes Craven propõe, mas valorizei bastante a visão de Aja para essa história, especialmente pelo seu caráter visceral e por apresentar um pessimismo através da violência extrema.
A minha admiração pelo diretor só aumentou ao longo dos anos ao analisar sua filmografia. É perceptível que ele já era um artista de mão cheia, ter um sarrafo tão alto em sua primeira incursão no cinema dos Estados Unidos, não é fácil.
A sinopse desse novo The Hill Have Eyes é parecida com a do original, mostra os Carter, uma família chefiada por Big Bob um detetive de Cleveland, interpretado por Ted Levine, que vai comemorar o aniversário de casamento com Ethel (Kathleen Quinlan). Para isso, eles viajam pela Califórnia, com a filha mais velha Lynn (Vinessa Shaw), seu esposo Doug (Aaron Stanford), o bebê desse casal, e os filhos mais jovens, Brenda (Emilie de Ravin) e o caçula Bobby (Dan Byrd), além de dois cães pastores, Bela e Fera.
A família acaba se perdendo, por conta de um desvio indicado por um local, e no meio do nada, eles sofrem ações de uma outra família, de pessoas que sofreram com testes nucleares perto de suas casas.
Esses novos personagens apresentados habitam as terras de testes, as mesmas que foram abandonadas após os eventos nucleares e que não possuem qualquer cuidado por parte do governo, e utilizam as colinas para encurralar pessoas como os Carter, pegando desses algumas posses, e até outras coisas.
O texto conterá spoilers. Mesmo sendo de 2006, vale o aviso.
Essa versão é mais direta ao ponto. Seu início se dá com um letreiro avisando que entre 1945 e 62 os Estados Unidos fizeram 331 testes nucleares, com o governo negando os efeitos negativos dos experimentos.
Logo vai ao Novo México, mostrar uma área supostamente vazia, apenas com cientistas andando sobre elas, usando roupas de isolamento grandiosas. Eles são atacados por alguém, e se nota ao seu lado um córrego, com a água circulando abaixo deles, simbolizando a facilidade de contágio de quaisquer que forem consequências dessa brincadeira de humanos se fazendo de Deus.
O filme conta com produção de Wes Craven, embora não fique tão clara sua influência criativa no roteiro de Aja e Gregory Levasseur, que também é diretor de arte.
A dupla fez uma reimaginação do zero, embalaram o clássico a sua própria maneira. Quadrilha dos Sádicos era uma influência desde sempre, Aja confessa que ele e Gregory viram o filme juntos quando tinham em torno de 10 anos, e se tornaram obcecados por ele.
A produtora Marianne Madalenna tinha os direitos da refilmagem, e pensou no cineasta francês para conduzir uma nova experiência. Levasseur afirma que após conversam com a produtora e com Craven, era para ele e Aja escreverem algo novo, e daí surgiu a ideia de inserir no terceiro ato uma cena no local de testes nucleares, que se tornou palco da vingança do herói.
Craven teve papel fundamental na confiança de Aja, isso é dito pelo próprio condutor, e em menos de um ano da construção do roteiro, já começou a filmagem.
Fato é que o filme não tem respiro, antes de completar dois minutos já ocorrem mortes, com um belo ataque de picaretas, seguida de uma entrada triunfal, com trechos de propagandas antigas, fotos de fetos deformados, explosões e pessoas com formação corporal monstruosa.
Aqui há claramente uma inspiração no modo cínico que Paul Verhoeven filmava suas produções nos Estados Unidos. Entre ele e Aja há em comum o desprezo pelo modo de vida americano e pela comercialização do bem-estar, e grande valorização do acúmulo de capital que resulta, entre outros fatores, na testagem nuclear sem normas rígidas de segurança.
O intuito é vender armas, e se o preço é comprometer a vida e a saúde de cidadãos dos Estados Unidos, que seja.
Um fator que facilita a compreensão e o mergulho do espectador é a música de Toman Dandy. O trabalho de composição varia entre o clima divertido e típico de um filme de férias familiares e o terror obscuro, que em determinado ponto, atinge os personagens.
O papel de Tom Bower é pequeno, como um atendente do posto de gasolina, que vocifera contra os locais, dizendo que não mais colaborará com eles. Ele é uma mistura do clichê do capiau desonesto como o profeta do Apocalipse que tem em Crazy Ralph de Sexta-Feira 13 original seu maior expoente.
Quando os Carter chegam para abastecer ele passa coordenadas para um suposto atalho, que é na verdade uma armadilha, mas o faz sentindo uma grande culpa, fato que faria ele protagonizar uma baita cena de despedida.
Aqui duas coisas se destacam, a escolha por filmar as ações na colina no deserto do Marrocos, cenário que guarda grandes semelhanças com o deserto do Novo México, e também o trabalho da direção de arte que pesquisou intensamente locais como postos de gasolina que habitam os lugares ermos dos Estados Unidos.
A transposição disso em tela colabora e ajuda a compor o cenário, inclusive com simbolismos. O totem de garrafas de vidro vazias faz referência não só ao alcoolismo do personagem de Bower, como ao seu vazio existencial, uma vez que elas estão já sem o líquido que o inebria e o ajuda aplacar sua culpa.
Quando as garrafas esvaziam e passa a ebriedade, sobra o nada, o desespero de não ter preenchimento algum. É óbvio que o que mais chama atenção nas pesquisas são as ações da radiação nas pessoas moram perto do lugar onde ocorriam as experiências, mas garantir uma fidelidade visual em breves detalhes como esse, dá textura e veracidade para a obra.
Voltando a narrativa, no tal atalho fica patente uma sabotagem, com lâminas escondidas saindo da areia. Depois de bater com o carro, os Carter levantam acampamento, se dividem para buscar ajuda, discutem política, com Big Bob se declarando republicano e Doug um democrata anti-armas.
A cadelinha Bela se desgarra da família, fazendo com que Bobby vá atrás, só parando quando a percebe morta, dilacerada, com um grande corte na barriga. Ele fica aterrorizado, mas não quer assustar ninguém e guarda para si o segredo. Nesse interim, ele desmaia e fica desacordado por um tempo, sendo cuidado por Ruby, uma das "modificadas", interpretada por Laura Ortiz.
Ela por acaso é uma das personagens que utiliza uma maquiagem digital, que envelheceu consideravelmente, ainda mais se considerar o ano de lançamento do filme.
Da parte dos efeitos práticos de maquiagem, os responsáveis foram a dupla Greg Nicotero e Howard Berger, que não deixam nada a desejar para o trabalho do original, superando o esforço em vários pontos, até por ter um orçamento menos limitado.
Em entrevistas, Nicotero destaca o trabalho de sua equipe, a K.N.B. Effects Group, citando o nome de um dos seus principais desenhistas e artistas de produção, Scott Patton, fez desenhos no computador, de variações estilizadas de pessoas que sofreram ações da radiação.
A ideia era remeter a tragédia que é a mistura de ciência com mentes sem escrúpulos. A equipe então fez várias figuras em tamanho real, estátuas, que ficaram a disposição de Aja e Levasseur, para escolherem os que seriam utilizados, quais vestiriam os atores.
Os seres modificados são monstruosos por fora e cruéis por dentro. Aja não se importa com o politicamente correto e mostra personagens que tem pouco de humanidade, são cruéis e sem escrúpulos, e o visual grotesco ajuda a fomentar a ideia de monstruosidade.
A maquiagem praticamente descaracteriza os interpretes, inclusive Nicotero, que faz Cyst, um "maldito" mostrado mais perto do final do filme.
A forma como eles são apresentados já é um belíssimo cartão de apresentação, vendo como eles são e o que fazem, economiza tempo de tela, não precisando explorar profundamente seu passado para entender como chegaram até ali.
É fácil intuir, eles foram vítimas dos testes do governo, e retribuem aos abastados a violência que sofreram.
Os efeitos visuais de Jamison Goi e da Rez-Illusion são bastante exigidos, tanto em cenas de dedos decepados, com leves interferências de fundo verde, quanto na caracterização deformada de Ruby, e também da criança que aparece mais a frente, em uma das casas onde ocorreram os testes. Eles proliferam, e passam seus genes modificados para os filhos.
Os malditos são estratégicos. Neutralizam os machos, os isolam, para deixar as mulheres vulneráveis, invadem sorrateira e silenciosamente o trailer e propagam o mal, fazendo desde travessuras como uma bagunça nas panelas, até crueldades com animais e assédio sexual.
Claramente são amorais e estratégicos, tanto que usam Big Bob como isca, para tirar a atenção e distrair a família, enquanto raptam o bebê. A cena do patriarca em chamas carece de um maior apuro no efeito digital, mas a sequência em si é frenética, com um bom uso de steadcam.
Robert Joy faz Lizard, o maldito com uma deformação no rosto que lembra lábio leporino e que utiliza uma baita invenção de Nicotero, uma mandíbula falsa, que faz parecer que ele tem um pedaço de pele faltando.
Ele age como um predador sexual, cumprindo o mal que seu irmão não conseguiu graças (provavelmente) a impotência, que pode ou não ser um efeito colateral da radiação, visto que ela afeta de maneiras diferentes cada um dos personagens.
O irmão é Pluto, um maldito que lembra Sloth de Os Goonies e é feito por Michael Bailey Smith. É um sujeito forte, praticamente acéfalo, sua postura é de ser o braço forte da família, mas está sempre frustrado, uma vez que nunca consegue seus intentos, tendo desejo claro de se saciar, mas sem conseguir, seja por incapacidade mesmo, ou meramente por dever obediência e submissão a Lizard.
Doug se vê obrigado a fazer um papel que não era seu, que não gostaria e jamais tencionou exercer, que é o do homem agressivo, o líder da matilha. Ele tenta consolar até os moribundos, acaba sendo a pessoa mais equilibrada em uma família despedaçada.
Não tem tempo ou lugar para chorar suas perdas, tem que manter sua cabeça no lugar, e ainda controlar os ímpetos de um adolescente em busca de vingança.
Stanford brilha, apresenta diversas camadas em sua atuação, consegue irromper do papel que fez na trilogia X-Men como Pyro, apresentando em um arquétipo completamente diferente do que se esperava dele até então, tanto pelo seu desempenho em outras obras, quanto pelo que apresentava até então.
Seu personagem é o que mais se modifica e evolui. Para sobreviver e para resgatar ele age com instintos, apela para investigação, é primitivo quando precisa, violento quando é exigido, e estratégico quando necessário.
Para os Carter, o lar é Cleveland, um lugar tranquilo e pacato, onde as pessoas podem viver sem grandes preocupações. Para o clã local, a civilização é um lugar falso, com casas pré-fabricadas sem estrutura, suprimentos, que servem de lar para manequins que fingem morar ali graças aos testes de quase meio século de idade.
Em algum ponto os dois núcleos familiares são numericamente igualados, não só pelas condições paupérrimas em que ambos os grupos estão, mas pela redução da expectativa de vidas causada pela reação dos Carter.
Isso se vê especialmente na cena em que Bobby e Brenda levam os corpos da mãe e irmã mais velha para o outro carro. Os jovens não têm direito a secar suas lágrimas, tampouco curtem o luto, se veem obrigados a montar armadilhas de contra-ataque, e fazem isso de maneira consideravelmente rápida, dado que acabaram de sair da infância.
Já Doug está em outro ponto, preso em um freezer repleto de pedaços de corpos e membros decepados. Ao sair, vê uma mesa de jantar, com um cadáver com uma bandeira em cima de um crânio, cenário que lembra a sujeira imunda de O Massacre da Serra Elétrica de Tobe Hooper.
Entre monólogos sobre a miséria dos excluídos e ações dos monstros, ele segue, em batalhas encarniçadas, com mortes, reviravoltas, golpes de sorte e destinos movidos pelo acaso e pela sorte de quem busca juntar os cacos de sua família.
Uma participação pequena e breve demais é a de Billy Drago, que faz Papa Jupiter. Na versão original ele era o chefe dos sádicos, e aqui ele é brutal, mas pouco aparece, e quando dá as caras, acaba perdendo uma batalha inglória, caindo no ardil dos meninos.
Claro que há incongruências no texto. Se os tais malditos são canibais, se alimentam dos humanos que rondam o deserto, porque desperdiçam boa parte das fontes de comida matando sem motivo? Sorte da fita é que a construção da tensão faz superar essas condições.
Analisando atualmente, é possível encarar a mensagem final do filme como um argumento reacionário, já que a transformação de Doug no exato oposto do que e julgava ideal ocorre, mas dentro da lógica torpe desse universo, dentro dessa América falida, que colhe os frutos do mal que eles semearam, faz todo sentido que os heróis se corrompam e não sejam limpinhos.
Aja consegue atingir um pessimismo diferente do visto na versão de Craven, e atinge a veia aberta de um país falido, com uma maestria que somente um estrangeiro é capaz de trazer a luz.
Não há regras bonitas ou respostas fáceis em Viagem Maldita, ao contrário, só restam as feridas de uma nação que colhe violência depois de cultivar tanto ódio e belicismo. Os Estados Unidos dos anos 2000 é dilacerado, como os Carter, e não tem qualquer esperança de mudar esse quadro, simbolizada pelo olhar do binóculo, que analisa os sobreviventes na areia escaldante.