Spawn: o Soldado do Inferno é um filme de horror e ação que tentou traduzir para o cinema o quadrinho famoso da Image Comics, criado pelo desenhista Todd McFarlane. Considerado por fãs e crítica como um dos piores exemplares de adaptação de quadrinhos, o longa acabou se tornando um clássico do cinema podreira e trash.
Sua apresentação é estranha e demasiadamente explicativa, mas só quando não é necessário já que a mitologia presente nos gibis é muito mal desenvolvida.
Em uma tela verde cheia de inserções de CGI, tão horrendas que lembram os comerciais do guaraná Dolly, se fala a respeito de Malebolgia, um demônio milenar, de seus asseclas e da possibilidade do Armageddon chegar, do fim do mundo bíblico finalmente ocorrer.
O Inferno levou a Terra um exército de demônios, para encurtar o caminho para o fim do mundo, e é sobre isso que o filme do diretor japonês Mark A.Z. Dippé tratará.
Michael Jai White interpreta o protagonista Al Simmons, tanto na fase humana como também quando se torna um híbrido de vivo e morto a serviço das forças satânicas, mas o primeiro nome nos créditos é o de John Leguizamo, que faz o clássico personagem Violador.
Essa característica era algo comum entre filmes de heróis. Ocorreu com Marlon Brando em Superman: O Filme, onde o nome do astro aparecia antes do de Chritopher Reeve. O mesmo ocorreu também com Jack Nicholson em Batman de Tim Burton.
Em um elenco que conta com Martin Sheen, ter White e Leguizamo ditos antes é curioso. Em Batman tinha algo semelhante, uma vez que o ator veterano Jack Palance também teve um papel secundário, como o mafioso Grissom, que servia de escada para o Coringa de Nicholson.
Sheen e seu Jason Wynn servem tão somente para pavimentar o caminho do Violador, servindo de escada e de catalisador para algumas piadas bem infames sobre Apocalipse Now, filme clássico que o mesmo protagonizou.
Dippé é mais conhecido por trabalhar com efeitos visuais. Seu currículo inclui O Segredo do Abismo e O Exterminador do Futuro 2: O Dia do Juízo Final com James Cameron, além de Ghost: Do outro lado da vida e Jurassic Park: Parque dos Dinossauros.
Aqui, o diretor escala para lidar com os animatrônicos o experiente trio Robert Kurtznan, Greg Nicotero e Howard Berger, que trabalhou em Louca Obsessão (1990), As Criaturas Atrás das Paredes (1991), Uma Noite Alucinante 3 (1992), Pulp Fiction: Tempo de Violência (1994), À Beira da Loucura (1994), Um Vampiro no Brooklyn (1995), Um Drink no Inferno (1996), Pânico (1996), e À Espera de um Milagre (1999).
Os efeitos digitais estiveram com a ILM são de Christophe Hery e Habib Zargarpour, com supervisão nos efeitos de Steve "Spaz" Williams. Christian Kubsch produziu efeitos e animação, com supervisão de Dennis Turner nas partes animadas.
A equipe grande e toda destacada nos créditos iniciais denuncia que o filme achava que esse seria seu ponto alto, julgava acertar em apostar nas montagens digitais, acreditando que esse seria o futuro. De fato, foi, hoje em dia um filme blockbuster utiliza demais de CGI, mas até para a época, no ano de 1997 a utilização foi digna de críticas.
Isso se percebe em outros aspectos que não tem a ver com efeitos. A fotografia assinada por Guillermo Navarro por exemplo.
Ele trabalhou bem na Balada do Pistoleiro, Um Drink no Inferno, A Espinha do Diabo e Círculo de Fogo. Aqui, seu trabalho é comprometido com toda a interferência digital imposta, se torna algo artificial e genérico.
Da parte da narrativa, a câmera acompanha Simmons como um assassino contratado que quer se aposentar e ficar com sua família. Ele é mostrado matando um político argelino e é observado por Wynn, seu contratante, e pelo Violador, que é aliado do bandido humano.
O filme possui roteiro de Alan B. McElroy, e se baseia demais no péssimo desempenho dramático de White. Mas para o fã de filmes B e para o espectador que tem bons olhos, a apreciação é dada ao demônio azul.
É ele quem move tudo, todos os dramas giram ao seu redor. Leguizamo rouba os holofotes até quando está no escuro, por conta de sua voz esganiçada, que chama quase tanta atenção quanto sua maquiagem azul e seu corpo adiposo, completamente diferente do porte comum do ator.
O que realmente pesa é que todos os outros personagens são caricaturais. Por mais que nos quadrinhos seja assustador um criminoso com escorpiões de estimação, na tela do cinema, vira uma piada involuntária.
A viagem a Rat City (nos quadrinhos é Cidade dos Ratos, aqui traduzida para Cidade dos Morto) há bons momentos. A construção do cenário é bem pensada, com castelos antigos servindo de moradia. Fora isso, a maquiagem do Al Simmons zumbi é ótima, e combina com o clima desolador, de pessoas jogadas ao leo.
Esse lugar é o limiar entre a Terra e o inferno, mas isso é mal explicado. Esse seria um grande problema, mas colocando em perspectiva e comparando com o quanto a entrada de efeitos digitais piora o quadro geral, não ter uma explicação mínima é algo banal. As partes em CGI são terríveis, principalmente nas tomadas distantes e nos planos americanos.
Al também está em um limbo, varia entre o vivo e o morto. Carrega consigo um corpo necroplásmico que tem fragmentos de memórias de quando estava consciente. Mais tarde, é dada a ele a configuração da necrocarne, que se postura acima de sua carne, como uma armadura larval.
É dito que o traje funciona como simbionte, mesmo termo que designa o alienígena que acompanhou Peter Parker e depois Eddie Brock, que se tornou Venom, outra criação de McFarlane. Sobrou criatividade na hora de explicar o mito dos personagens.
Visualmente, o traje é imponente, especialmente quando é só maquiagem. Junto a pele putrefata de Simmons, a roupa faz lembrar um pouco o aspecto de couro queimado das entidades conhecidas como cenobitas, que povoam a mitologia de Hellraiser, a criação máxima do mestre do horror Clive Barker.
Mesmo com dificuldades, ele consegue retornar ao convívio de Wanda, sua antiga mulher, vivida por Theresa Randle, mas como está desfigurado, ninguém o reconhece, exceto seu cachorro Spaz e o palhaço da festa, que é na verdade um disfarce do Violador, em uma clara referência ao visual do assassino John Wayne Gacy, o palhaço psicopata condenado em 1968.
Além de ser o orelha, explicando ao "herói" e ao público as regras desse pós vida, o Violador também é um alívio cômico bastante apelativo, fazendo piadas com peido, com direito até a um gás verde fluorescente que sai do seu traseiro.
Há vários momentos constrangedores antes até de completar 30 minutos. No cemitério, com Al viola o próprio túmulo, sendo atacado por uma mão de efeito digital vagabundo.
Perto do protagonista há jovens góticos, que se acham "das trevas" por estarem conclamando forças diabólicas, da maneira mais caricata possível. A ideia é desdenhar dos posers, mas não há sutileza qualquer na piada exposta.
Dippé não economiza em gore escatológico, principalmente no que toca Leguizamo. Ele protagoniza mais de uma cena se alimentando de minhocas e insetos, e a escala de nojeiras só aumenta, se não pela ingestão real dos animais, mas sim pela quantidade de absurdos que vai se escalando.
Outros personagens clássicos são inseridos, como Cogliostro, um homem misterioso, de visual noir, interpretado por Nicol Williamson. Ele aparentemente é uma espécie de Spawn das antigas.
Outro destaque pitoresco é a capanga femme fatale que Melinda Clarke faz. Sua Jessica Priest vive usando couro, anda sempre armada, e se resume sua expressividade a caras e bocas.
Esse filme tenta fazer algo que Ang Lee fez em seu Hulk, colocando trechos que emulam páginas e quadrinhos como vinhetas, que funcionam como transição entre cenas. Isso deixa o filme bem datado, faz parecer um episódio de seriado barato.
Os desenhos nas revistas eram exageradamente detalhados, com muito penduricalho e hachuras em excesso. Spawn é o puro suco de anos noventa, era puro músculo, abdome definido, muito bíceps, mas também detalhes mil em roupas e assessórios.
O mesmo pode-se dizer dos coadjuvantes, sempre munidos de múltiplos bolsos, pochetes e trabucos maiores que o tronco de um homem adulto comum. A tradução para o cinema dessa estética se percebe especialmente na capa vermelha do anti-heróil, que sempre sobra em tela, e parece ter um tamanho infinito e não é nada natural.
Pior que a aparição do personagem entrando pelo teto - outra imitação do Homem Morcego de Michael Keaton - só as conversas entre personagens, que verbalizam boa parte das questões que se vê em tela.
Ninguém estranha que um sujeito que morreu há cinco anos simplesmente volte. O texto peca demais por ser explicar o que não precisa e não desenvolver as questões mais pontuais. Exemplo disso é o fato de que todos os planos do Violador são ditos pelo mesmo, sem qualquer testemunha em volta.
Fica a pergunta se ele é exibicionista ou se quebra a quarta parede, falando direto ao público. A versão monstruosa dele ao menos é bem-feita, especialmente quando é com efeito prático.
É bastante fiel aos quadrinhos, e Dippé a usa em cenas escuras, para mascarar fragilidades, embora o CGI vagabundo fique indisfarçável.
Todd McFarlane não teve tanta ingerência no projeto. Esse é um dos argumentos dados como fator preponderante para o filme ter soado tão genérico e parecido com qualquer outra fita de ação.
Fato é que Spawn já era derivativo nos quadrinhos, uma mistura de tudo que fazia sucesso nos anos noventa, um pouco de Batman, de Homem-Aranha, do próprio Venom e uma mitologia que lembra o Motoqueiro Fantasma. Ainda assim, reuniu bons escritores nas fases iniciais, até com Alan Moore e Neil Gaiman.
O texto do filme até tenta apelar para as referências aos quadrinhos, mas esbarra na pressa em traduzir um roteiro para o cinema, jogando em cima de Cogliostro, a tarefa de explicar das regras do uso das forças infernais e exposição do enredo.
Ideias que não deram certo, como o uso de um efeito especial na capa e assessórios de Spawn e o tom piadista do Violador são aspectos que irritam, mas dá para compreender as intenções por trás, o que não é perdoável é o fato de todos os diálogos serem insipientes, vazios e demasiadamente óbvios.
Jai White também não segura bem o protagonismo. Seu ponto alto sempre foi a luta, como se vê bem em Quebrando as Regras e Lutador de Rua, e aqui, isso pouco se nota, afinal ele usa muitos gadgets espirituais ou armas, pouco se vale de confrontos de mãos limpas.
Outro aspecto risível são as armas tunadas, personalizadas de um jeito que parecem irreais e de brinquedo. Se a ideia era emular a condição cartunesca de Dick Tracy de Warren Beatty, falhou miseravelmente, já que diferente do filme citado, esse não tem personalidade alguma.
O filme perde o pouco apelo ao drama que tem com as falsas mortes de Wanda, além disso, o plano bifurcado do Violador faz pouco sentido.
Seu fim e patético, com piadinhas sobre a cabeça que acabou de perder, derretido em um efeito vagabundo, que é tão traumatizante que Terry Fitzgerald (D.B. Sweeney), o atual esposo de Wanda, contar toda sua participação criminosa para a tv, claro, sem assumir qualquer culpa, mesmo que ele tenha feito parte de quase todos os esquemas criminosos expostos em tela.
Os poderes de Spawn não ficam claros, nem sobre a sua extensão e tampouco sobre limites.
Ele é forte, tem espinhos, lida com lanças, voa, tem visão de raio x e consegue retirar coisas do corpo de Jason, inclusive a bomba de destruição em massa, oriunda da Coreia do Norte – é um filme dos Estados Unidos, portanto é preciso fazer uma propaganda anticomunista desnecessária - no entanto, segue a grande dúvida também presente nos quadrinhos: se a fonte de sua força é o inferno, porque ao se rebelar ele não a perde?
Nas HQs, Spawn tem um contador de energia, que se for zerado, ele morre. Por isso ele usa armas de fogo, para poupar a energia infernal, e essa regra não é dada no filme, ao menos não de maneira explícita, é no máximo sugerida, por Cogliostro, e só perto da batalha final.
Spawn O Soldado do Inferno dá a volta, acaba sendo engraçado de forma irremediável. Quando tenta soar trágico, parece patético, e não consegue convencer nem quando lida com o inferno. Seu maior problema é sem dúvida o CGI, especialmente com Malebolgia, e esse tom caricatural faz com ele seja adulado por hordas de fãs do cinema trash.
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