Natal Diabólico é um filme B que que divide opiniões entre os aficionados pelo gênero. Lançado em 1980, é um dos muitos produtos de horror que segue a onda de obras de mostrar datas festivas de forma assustadora. Depois do seu lançamento acabou recebendo um certo culto, especialmente graças a um fã ilustre, o cineasta e Papa do Trash John Waters.
A sinopse é simples, mas não faz jus a complexidade da obra, trata da jornada de trôpega de um trabalhador de uma fábrica de brinquedos, que carrega problemas relacionados a festa natalina. No período do presente ele tem um colapso nervoso, embarcando em uma crise de ansiedade desenfreada.
Dada essa introdução, é difícil determinar inclusive qual é o gênero em que o longa melhor se encaixa. Como há um sujeito vestido com uma fantasia, que mata pessoas sexualmente ativas, é normalmente associado aos Filmes de Matança ou Slasher Movies, como há um certo estofo e preparação psicológico do seu protagonista Harry Stadling, feito por Brandon Maggart, há quem associe ele a um thriller psicológico.
De qualquer forma ele é um filme cujas qualidades são subestimadas, sendo desnecessariamente tratado apenas como uma obra tola e boba.
A ideia partiu de Lewis Jackson, que vem a ser o realizador desse. Ele teve o insight sobre a trama enquanto fumava, inebriado pelo uso de uma maconha, em uma noite na década de 1970 e ter uma visão do Papai Noel segurando uma faca.
O longa foi produzido por Pete Kameron (Miss Right) e Burt Kleiner (Fora de Jogo). O produtor executivo é Jerald Rubinstein e Michael A. Levine, de Morte Por Telefone é produtor associado.
Embora o sucesso de Halloween: A Noite do Terror tenha gerado um sem número de obras de terror em datas festivas - como Sexta-Feira 13, Dia das Mães Macabro e Feliz Aniversário Para Mim, todos lançados entre 1980 e 81 - o roteiro desse foi escrito antes, ao menos segundo o diretor.
Curiosamente, Jackson não considera este filme um filme de terror slasher, mas sim uma obra sobre monstruosidade, que carrega semelhanças com Frankenstein de James Whale. Não faltou esmero da parte do seu cineasta.
Lewis Jackson passou vários anos coletando todos os adereços natalinos vistos na casa de seu protagonista. Também se comprometeu pessoalmente a trazer gente para sua equipe, até viajou para a Áustria, em Viena, basicamente para mostrar ao argentino Ricardo Aronovich os storyboards do filme, a fim de convencer ele a ser o diretor de fotografia.
Curiosamente a carreira dele enquanto diretor é bastante curta. Tem três créditos, com The Deviates em 1970, The Transformation: A Sandwich of Nightmares de 74 e esse Natal Diabólico.
Como é praxe, esse é um filme com diversos nomes. O diretor gostava do título You Better Watch Out, como na canção natalina, no entanto ele é mais lembrado como Christmas Evil.
É possível encontrar ele como Terror in Toyland ou Santa. Na Argentina é conhecido como Navidad sangrienta, na Espanha é Nadal de Terror, na Itália é Christmas Evil - Un Natale macchiato di sangue, no México é El demonio de la navidad. Já em Portugal é Natal Infernal.
O longa-metragem foi rodado em Nova Jersey, com locações em Glen Ridge, Montclair, Edgewater, Englewood, Belleville, no Rockefeller Center, além de ter cenas em Manhattan, justamente na parte que flagra a Árvore de Natal de Nova Iorque, além de ter trechos na Times Square, na parada de Ação de Graças.
A ligação da obra com Waters foi tardia, muito tempo depois que o filme foi lançado. O diretor de Pink Flamingos escreveu sobre ele em seu livro, fez menção em um artigo na revista Rolling Stone também. Sempre que podia recomendava-o como uma espécie de equivalente do horror para A Felicidade Não se Compra.
Ele chegou a fazer comentários para o lançamento do longa em DVD, disse também que se tivesse filhos, mostraria para eles todo 25 de dezembro, depois bateria nas crianças. O diretor sempre foi conhecido por ser senso de humor apurado, sem noção e avesso ao politicamente correto.
Dada a inadequação dos personagens, é natural essa predileção do JW. Quando o longa foi traduzido para o formato de mídia física, Waters foi chamado a gravar uma faixa de comentários e neles destacou a inadequação de Harry, que tinha dificuldades em se encaixar na rotina de um homem adulto caucasiano, de classe média e supostamente heterossexual.
Em sua visão, Stadling era uma pessoa provavelmente do espectro LGBTQIA+ que não sabia lidar com sua identidade, ainda mais em uma época tão triste como o fim dos anos 1970 e início da década de oitenta.
A narrativa se inicia na véspera de natal de 1947. Crianças esperam o Papai Noel descer pela chaminé e acabam vendo ele se alimentando, comendo os quitutes destinados a ele.
Nesse ponto, Harry (que quando criança era feito por Gus Salud) nota que o bom velhinho é o seu pai. Explica isso ao irmão mais novo, Phillip (Wally Moran), que não acredita em seu argumento. Para provar o seu ponto Harry decide descer, mas ao chegar ao andar de baixo se depara com algo ruim.
Seus pais protagonizam uma cena erótica, leve, mas ainda assim traumática. O pai ainda está vestido de vermelho, como o idoso distribuidor de presentes e dessa forma acaba causando um surto em Harry, que passa a não lidar bem com as festas de fim de ano.
Antes da sequência terminar, ele pega um enfeito de natal, daqueles redondos, que faz nevar por uma cidade. Se corta com uma lâmina, deixando seu sangue escorrer por esse globo, dando ao acontecimento a importância de um ato de autoflagelo, que pode ser encarado como um ato quase suicida.
No presente é mostrado ele já como Maggart, que havia feito Vestida Para Matar além de pequenos papéis em filmes e séries, como Um Amor de Família e ER: Plantão Médico.
A casa onde o Harry adulta mora é toda decorada com brinquedos que ele mesmo fez, objetos esses bem elaborados, muito bonitos e bem-acabados, diferente dos objetos simples que a fábrica onde trabalha produz.
Ele desperta vestido de vermelho, tem até com um gorro natalino como parte do pijama. As paredes da sua casa são cheias de máscaras, toalhas e cartazes com cores e dizeres sobre festas de fim de ano.
Aronovich faz planos brilhantes, em uma sequência sem cortes, que resulta nele diante do espelho, usando creme de barbear branco, emulando a barba grisalha do velho Noel. De certa forma esse é um símbolo da jornada estranha que em breve iniciaria.
O diretor de fotografia tinha uma experiência com filmes diferenciados, vinha de Vereda de Salvação e Um Homem, uma Mulher, uma Noite, depois fez Chanel: A Solidão de Uma Mulher e O Baile. Sua experiência englobava diversos gêneros, não só obras que falavam sobre o medo
Harry ainda se lembra com dor do momento que flagrou, amadureceu como alguém paranoico, mas segue tentando reverter o asco que tem pela data festiva, fazendo força para aceitar a época.
Ele é chefe de uma fábrica de brinquedos, mas mesmo sendo alguém de posto alto, acaba cobrindo o turno de um trabalhador manual. A locação da fábrica foi conseguida graças à família do produtor/presenter Edward R. Pressman, que era proprietária do local.
O protagonista é menosprezado pelos colegas, que falam mal de si pelas costas. Isso o o deixa ainda mais nervoso e ansioso, especialmente quando ele descobre que seus colegas o enganaram, para que ele trabalhasse um turno a mais. O filme se leva a sério, lida com o trauma do homem como algo de fato profundo. Na maioria das vezes, acerta na dramaticidade.
Maggart manda bem, parece de fato alguém com problemas neurais sérios, com dificuldade de lidar com um lado sentimental reprimido. É tenso, nervoso, tenta se provar o tempo inteiro, é ávido por aprovação de terceiros.
Ele faz um sujeito que é bem-intencionado, aparentemente é boa pessoa, tanto que observa as crianças, planeja dar presentes a elas, por que se enxerga como elas.
Parece estar preso no período da infância, sendo muito atencioso com os meninos e meninas da vizinhança justamente por desejar que fossem assim com ele. Obviamente que ter um homem adulto vendo crianças com um binóculo, tomando notas de cada uma é algo no mínimo esquisito.
Isso faz com que muitos analistas associem Harry a um pedófilo não praticante, a alguém que reprime sua sexualidade nesse sentido, uma vez que transar com crianças não é socialmente aceito, além de ser crime.
Ele se suja de carvão para emular pegadas e marcas de mãos nas casas vizinhas, a fim de fingir que o Papai Noel passou pelas casas, depois rouba os brinquedos sobressalentes da fábrica, que estavam reservados para crianças carentes, ainda acrescenta os que ele mesmo fez e vai para a noite feliz, distribuir presentes para as boas crianças.
Ele se veste de Bom Velhinho, cola uma barba falsa no rosto, mas antes de distribuir os presentes, leva uma faca.
A realidade é que o filme constrói lentamente a derrocada moral de seu personagem. Até certo ponto da trama, o único indício de que esse é um filme de horror é a trilha sempre agressiva do trio Joel Harris, Julia Heyward e Don Christensen.
Quando o filme chega próximo do minuto cinquenta, Harry passa a matar, mas nunca causando o mal de maneira gratuita, o tempo todo ele reage a agressões. Ao encontrar um grupo de homens que sai de uma igreja, ele é maltratado, menosprezado e humilhado.
Cansado de sofrer e munido de uma nova identidade, com face nova e trajes diferentes, ele revida, usa um boneco quebra nozes com lâmina em um homem, depois dá um golpe de machado, deixa todos desesperados e sai em seu furgão característico, deixando três mortos e várias pessoas assustadas.
A cena é tão chocante que ninguém faz nada, as testemunhas só observam mesmo, ficam paralisadas, quase catatônicas. Ele segue seus dias comumente, vivendo normalmente, até entra em uma festa de natal familiar, com muita gente.
Ele vira uma atração, depois tenta entrar pela chaminé de uma casa, sem sucesso. Ele então se recorda da pegadinha que seus colegas fizeram com ele, obrigando ele a trabalhar na fábrica no feriado, sem necessidade, decide ir então até a casa de Frank (Tyrone Holmes), o mesmo sujeito que armou a pegadinha de trocar o turno e função dele.
A sequência de invasão termina de maneira muito violenta, com o sujeito matando ele sufocado, enquanto a esposa nem percebe direito o que está ocorrendo. Ela só acorda depois que o marido morre e cai em cima dela.
A sequência como um todo é bem estranha, já que só acorda depois que o corpo ferido do marido cai em cima dela, já morto. Ela fica com o grito sufocado por um tempo, só consegue vocalizar seu desespero quando Harry já está do lado de fora, acompanhado das crianças. Aparentemente as pessoas que testemunham são muito inertes durante as ações do vilão.
É curioso como uma obra tão controversa e que toca em tantos assuntos espinhosos não tenha tido problemas semelhantes a o que ocorreu com Natal Sangrento, lançado quatro anos depois desse e retirado de cartaz uma semana depois de estrear.
Ambos os filmes têm um Papai Noel assassino como centro das atenção, mas somente um foi proibido e gerou um número grande de manifestações contrárias a ele. Christmas Evil é bem mais pesado que Silent Night, Deadly Night, no entanto não ficou tão popular, tampouco se tornou franquia, também não garantiu ao seu diretor uma carreira longa, tanto que esse foi o seu último filme.
O irmão mais novo dos Stadling reaparece adulto. O Phil de Jeffrey DeMunn é um homem preocupado com seu irmão, discute com sua esposa, Jackie, personagem de Diane Hull, que tenta em vão convencer ele de que seu irmão tem sérios problemas.
Jackie é basicamente a única personagem que discute algo, é o fiel da balança, a pessoa que parece detentora da razão. Hull atua bem, mas quase perdeu o papel para Kathleen Turner, que em 1994 protagonizaria Mamãe é de Morte, de John Waters.
Durante das discussões do casal, é noticiado que na manhã do dia 25 um Papai Noel assassino atacava a cidade. Phill só suspeita do irmão quando o próprio verbaliza que sente uma tristeza incomensurável, vivendo em uma dinâmica claramente suicida.
Há quem defenda que o filme brinca com perspectivas, que o Harry adulto na verdade é apenas uma faceta da mente de seu irmão, que se sentiu culpado quando criança, por não ter dado ouvidos a Harry e projeta a imagem do irmão em sua própria vida.
Dentro dessa linha de raciocínio, Harry ou teria morrido quando criança ou estaria em uma unidade hospitalar, tratando de sua saúde mental, enquanto Phillip seria um adulto funcional que desenvolveu tanta culpa que sua personalidade se dividiu em dois.
Enquanto assistem televisão, o casal Phill e Jackie observam um repórter, chamado Phillip Casnoff (Ricardo Bauma). Ele foi criado para ser uma imitação de Geraldo Rivera, que na época em que o filme foi feito ainda não havia se tornado uma celebridade nacional. Ele era conhecido pelos espectadores da Costa Leste da América.
A polícia segue atrás do assassino e as pessoas o descrevem como alguém com pelos de animais e sujeira nas partes brancas da roupa.
A trama segue mostrando alguns sobreviventes, pessoas que testemunharam o homicídio triplo do início da trama macabra, reencontram Harry. A cena é tensa, já que ele usa as crianças como escudo humano.
Vestido como está ele tem um poder de convencimento grande com os meninos e meninas, tanto que uma mocinha pega a faca que estava com seu pai e entrega para ele.
Jackson insere cenas de tochas levantadas, por uma população que vai atrás do matador tal qual uma multidão correu atrás da criatura feita por Boris Karloff em Frankenstein. Associa finalmente sua obra ao clássico do cinema, que ele tanto louvava.
O final é bastante bizarro, com uma briga entre irmãos que pode ter terminado com a morte de Harry ou com um suicídio. Phill coloca o corpo desfalecido de Harry na van, depois que dá um golpe que possivelmente o matou.
Ao colocar ele no carro entra em cena o momento mais estranho do filme.
Harry desperta, dá partida e vai na direção de um penhasco. Ele ultrapassa um alambrado mas ao invés de cair o carro voa.
A interpretação literal diria que a van caracterizada com pinturas natalinas voou, mas a corrente mais defendida é que o carro caiu e explodiu, graças ao som estranho que ocorre no fundo de cena. Há quem defenda que o barulho na verdade vem do impacto de Phill, que rola colina abaixo em direção a caixas de papelão, depois que seu irmão foge.
Não há uma resposta concreta, o final fica em aberto e Lewis Jackson não comentar muito sobre. Natal Diabólico é surpreendente. É criativo, cerebral, conceitual e violento. Entre os filmes de horror natalinos é certamente algo diferenciado, um respiro refrescante, já que foge do aspecto necessariamente tosco. É uma pena que o diretor não tenha tido mais chances de fazer os seus filmes, já que tinha pelo menos potencial para fazer obras que fazem assustar e refletor.
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