Sagas e franquias do gênero horror normalmente contém filmes de qualidade discutível e narrativa fraca. Não é incomum assistir produções cujo roteiro e mitologia é meramente uma esfarrapada desculpa para mostrar violência, gore, efeitos toscos ou mitos torpes, e a franquia Troll normalmente é associada dentro desse escopo.
O principal motivo para isso certamente é o segundo filme da saga, chamado no Brasil de Trolls 2 (do original apenas Troll 2 no singular), longa-metragem de origem italo-americana, comandada por Claudio Fragasso que não tem qualquer ligação com o famigerado "Troll 1".
Trolls 2 inclusive teve seus primeiros roteiros com outro nome - Goblins - e teve um orçamento ainda mais baixo que o filme dessa análise, além de possuir uma das cenas mais vergonhosas e meméticas do cinema, fato que fez a produção ser conhecida por seu potencial de bomba. Abaixo você assiste essa sequência citada.
A parte 2 é digna de nota por si só, mas a análise hoje é sobre Troll: O Mundo do Espanto, conhecido também como Torok: O Duende.
Essa é uma produção bastante peculiar. Já no início se percebe o nome do produtor Charles Band, o fundador da Fullmoon, que curiosamente não produz este longa-metragem, já que é veiculado pela pela Empire International, mais tarde veiculada ao grande estúdio Metro Goldwin Meyer.
Dirigido por John Carl Buechler, um especialista em efeitos práticos, conhecido por seus trabalhos voltados a adaptar as histórias de HP Lovecraft, entre elas Re-Animator: A Hora dos Mortos Vivos e Do Além, Troll tem uma mitologia curiosa, com personalidade e uma identidade própria.
A narrativa pensada pelo roteirista Ed Naha , do horror Bonecas Macabras e da série de comédia familiar Querida Encolhi as Crianças é focada em um núcleo familiar, os Potter, que lembram bastantes os clichês de obras humorísticas, como o filme com Rick Moranis, citado como um dos textos de Naha.
Cada um dos membros do clã estabelece um clichê comum aos seriados cômicos que passavam na televisão ao longo das décadas passadas. O pai, Harry Potter (sim...) é interpretado por Michael Moriarty, de A Coisa, e faz o sujeito bonachão, que permite os filhos viverem suas rotinas de maneira bem solta.
Anne (Shelley Hack de O Rei da Comédia) é a mãe e esposa exemplar, que não tem grande destaque na trama, já o casal de filhos demonstra o clima de aventura que a obra busca atingir. Além deles, há dois filhos, o menino, Harry Jr é interpretado por Noah Hathaway conhecido por A História Sem Fim e Battlestar Galactica de 1978, e a pequena Wendy Anne, executada por Jenny Beck, personagem escolhida a dedo por lembrar a pequena Carol Anne de Poltergeist.
Antes de apresentar os personagens centrais, o que se percebe é uma trilha sonora peculiar, com uma música instrumental de Richard Band, que inicia com um piano que remete a música clássica, logo depois entra um conjunto de cordas bem orquestrado, que ajuda a variar entre o soturno e o lúdico rapidamente, estabelecendo a atmosfera de brincar com a fantasia e o receio de uma fusão entre mundos.
Buechler era um diretor iniciante, esse é apenas seu segundo longa dirigido, havia feito um dos segmentos em Ragewar/The Dungeonmaster em 1984, e depois de Troll conduziu algumas produções B curiosas, entre elas Monstro Canibal (1988) cujo roteiro é do criador da saga Brinquedo Assassino - e de Chucky - Don Mancini.
O cineasta conduziu também outros exemplares importantes do cinemade horror, como Sexta-Feira 13 Parte 7: A Matança Continua e o infame Ghoulies 3: Ghoulies Vão ao Colégio e atualmente segue carreira trabalhando com efeitos especiais.
Troll não é um filme muito sutil...
Com cinco minutos de exibição uma criatura aparece, um ser de estatura baixa, que lembra um leprechaun ou duende e que ostenta um anel mágico. Ele é interpretado por Phil Fondacaro e demonstra ter poderes de transmutação, assumindo logo a identidade da menina.
Além de se perceber um excelente trabalho de maquiagem, o roteiro é eficiente em estabelecer o perigo sem muito alarde, deixando entender que o monstrinho comeu e engoliu a menina Wendy, assumindo sua identidade, tendo acesso aos seus pensamentos e a memória recente já que ele prega uma pegadinha no irmão mais velho, que estava jogando pique com ela.
Aparentemente, Torok tem conhecimento sobre as ideias de Wendy, mas o roteiro brinca com a conveniência por mostrar essa onisciência só quando convém. Embora seja forçado, isso não incomoda tanto, uma vez que a produção se posiciona bem como uma comédia bizarra.
O maior indício dessa condição é quando o Troll come um hambúrguer, no corpo da menininha. Primeiro, ela diz para os pais que não sabe do que se trata aquele alimento, depois ouve que esse é um alimento rico em nutrientes, que cooperaria para sua saúde, e depois Beck simplesmente devora o sanduíche de maneira selvagem, tal qual um bicho.
A única pessoa que se incomoda com isso é Junior, que percebe de maneira perspicaz que uma garota de menos de um metro não comeria tão rapidamente um sanduíche de carne, piorando quando ela rouba até o seu hambúrguer.
Os pais nem se incomodam, tomados por suas próprias rotinas e vaidades, não percebem a sujeira que a caçula fez, tampouco lhe dão uma bronca quando ela rouba o lanche do irmão.
Outro membro do elenco que vale citar é Julia Louis-Dreyfus, que faz a vizinha de prédio dos Potter. Sua personagem é Jeanette Cooper, que momentos mais tarde, protagonizaria um momento curiosamente quente do filme.
Na época, ela ainda começaria a fazer sua participação como Elaine Benes em Seinfeld.
Por mais que o filme possua dezenas de personagens pelo prédio que serve de residência aos Potter, o foco claramente é na família, e nada mais. Os outros personagens são estranhos, tem personalidades esquisitas, mas servem apenas de pavimento para a família, especialmente Wendy e Junior.
Wendy segue agindo como uma criança hiperativa e agressiva, com maneiras violentas. A menina "possuída" parece flertar com a condição de ingenuidade e inocência típicas da primeira infância, e como ela aparenta ter aproximadamente 9 ou 10 anos, é possível dizer que quando o troll tomou seu corpo, a garota regrediu alguns anos em maturidade.
Ao passo que age mais infantilmente, ela também fala coisas pesadas, agride os adultos, chegando ao cúmulo de morder seu pai, e mesmo assim os adultos não veem nisso um indício ruim, não pensam em levar ela em um médico, só creem que ela faz isso por "ser levada", ou por finalmente agir como criança, visto que era bem tranquila até entra.
A única pessoa que desconfia de Wendy é Harry Jr. Só ele percebe que há algo errado com ela, e encontra em uma vizinha, a sra Eunice Saint Clair (June Lockhart, conhecida principalmente pela série Perdidos no Espaço de 1965), uma figura a princípio indócil e rabugenta, mas surpreendentemente simpática com a sua figura, que revelaria mais tarde uma ligação com o mundo mágico.
O prédio não parece ser um lugar convidativo para crianças morarem, a pequena Wendy mesmo - caso não fosse na verdade uma criatura sobrenatural disfarçada - se depararia com uma prostituta saindo cedo, da casa de um vizinho.
Apesar de não ser um filme slasher, o roteiro parece querer punir quem transa, já que utiliza o apartamento de Peter Dickinson, o vizinho que faz uso de sexo pago, como a primeira base de reprodução do troll.
Os cenários são um dos pontos mais altos da produção, incrivelmente bem pensados, magicamente encaixados nos cubículos das moradias urbanas. Parecem de fato representações de mundos inóspitos, reproduções de outras épocas reunidas em um universo do qual não pertencem.
Saint Clair, parece ter algo a ver com as tais criaturas. A princípio se pensa que ela está mancomunada com eles, já que a mesma possui um cogumelo de efeito prático como ser de estimação, de nome Galvin, mas aos poucos, se percebe que ela é mais do que uma parceira dos trolls.
Fondacaro apareceria como um personagem sem maquiagem, o vizinho com nanismo Malcolm Mallory, um homem culto, professor de inglês, que gosta de lendas e mitologias, e que nutre por Wendy uma simpatia considerável.
Ele logo se transforma em um amigo da mocinha, que o chama de irmão elfo, possivelmente graças a uma ligação do mesmo com os personagens mágicos, mas ao menos em relação ao seu personagem, o texto não esclarece suas intenções.
Parte de Malcolm a primeira explicação lógica para a existência das criaturas, uma vez que ele fala de uma lenda antiga, de uma fada chamada Gloriana, cuja origem conversa diretamente com a arquitetura e construção do prédio onde os personagens vivem.
Entre as teorias mais absurdas que o filme traz, está a crença de Potter Junior de que sua irmã foi abduzida por marcianos. O roteiro mesmo se encarrega de demonstrar que ele não estava de todo errado, já que os seres mágicos não são da mesma Terra que os humanos.
Os melhores momentos são as transformações dos apartamentos em bases dos elfos/trolls, seguida da transformação dos personagens. Há casulos, muitos bonecos de efeitos práticos, de tamanhos e configurações variadas, uma variação considerável de visual, incomum em produções B.
Além do visual, que varia de qualidade para cada criatura, o surpreendente visualmente é o cuidado em abordar o mundo mágico sobrepondo o comum.
É bem pensado, ainda mais se considerar que esse não é um filme que busca ser sério. É tudo demasiadamente pitoresco. Um dos momentos mais nonsense é a corrida que Dreyfus faz, seminua, pela floresta que se tornou seu apartamento, belíssima, em uma versão lúdica da criatura chamada ninfa.
Além das referências a mitologia grega, se percebe também lembranças ao que comumente se associava a Eva, a primeira mulher da Bíblia Sagrada dos mitos judaico-cristãs.
Os simbolismos seguem com a figura de Malcolm, que faz um homem velho e sábio. Seu sonho é transcender, sair do seu corpo, para ver um mundo mágico, com unicórnios e fadas, pensa além das suas incapacidades humanas, transcendendo até seu nanismo.
Louvar esse desejo dele pode soar meio preconceituoso e capacitista quando falado dessa forma, mas claramente ele não deseja transcender por motivos mundanos, ou preconceito de terceiros, e sim porque ele sabe da inexistência desse tipo de mundo, e mesmo que tenha uma ligação não explicitada com Torok e os trolls, segue sendo o personagem mais incorruptível da trama, incluindo aí as duas crianças.
Como era praxe nas fitas de horror dos anos 1980, aqui também se estabelece uma família que desacredita seus próprios membros. Harry Sênior não crê em nenhuma palavra de Jr, mesmo com Wendy agindo como uma versão mirim de Regan em O Exorcista.
O que é mais curioso é que apesar dos Potter se enquadrarem facilmente no clichê de família incrédula e disfuncional, é Harry Junior, o mais imaturo entre os familiares, quem defende a menininha em momentos pontuais.
Sua mudança de postura faz ele parecer insano, uma vez que ele foi o primeiro a apontar que algo estava errado, mas a mudança é congruente, uma vez que ele parece estar algumas casas na frente dos outros jogadores nesse tabuleiro estratégico.
O filme é curto, contando com apenas 82 minutos, e após uma hora passada as explicações começam. Eugene revela seu passado com Torok, faz uma longa explanação sobre o passado glorioso da antiguidade, sobre outras civilizações, se diz uma guardiã da virtude que vigia um selo no prédio.
Curiosamente, boa parte desse plot estava também em Dr. Mordrid, o filme que os Band produziriam nos anos 1990 sobre o Doutor Estranho, depois de perder os direitos sobre o mesmo.
A mitologia é simples, mas é rica, com muitos monstrinhos, com uma miríade de elementos diferenciados visualmente, com boa parte deles não tão inspiradas quanto os primeiros apresentados.
Dada essa configuração, clichês como "O Escolhido" e rejuvenescimento conveniente de personagens, passam batidos, ainda mais pelo fato de que Eugene quando mais nova é interpretado por Anne Lockhart, a filha da atriz original, e que seria famosa anos depois por dublagens.
Aparentemente a verba foi utilizada fortemente no início, e faltou recurso para terminar. Ainda assim o que se vê é um produto diferenciado, com um texto confuso e que mal aproveita a hierarquia entre as criaturas que eram os trolls e os humanos.
Troll Mundo em Desencanto termina com uma batalha confusa, envolvendo resgate de personagens que pareciam mortos, monstros de stop motion e efeito prático que perdem em comparação visual com o primeiro, mas mesmo diante de um desfecho frágil, o resultado é algo notável, trash e inventivo, mesmo que o público possa considerar tosco.
Comente pelo Facebook
Comentários
Comente pelo Facebook
Comentários