Hellraiser - Renascido do inferno: o conto sadomasoquista de Clive Barker agora no cinema

Hellraiser - Renascido do inferno: o conto sadomasoquista de Clive Barker agora no cinemaHellraiser: Renascido do Inferno é um filme de horror que mistura tortura, sexo e depravações com belos momentos gráficos e muito sadismo. O longa lançado em 1987 é conduzido por Clive Barker, mais conhecido como autor de livros de terror, que traduz aqui o próprio livro, Hellbound Heart, lançado no Brasil com o nome Hellraiser também.

O começo da história parece confuso, mostra um personagem que mal tem seu nome mencionado, praticando jogos de azar, fazendo negócios com um senhor idoso e de origem oriental, ganhando dele uma caixa quadrangular pequena.

Ele é Frank, um sujeito de moral suja, interpretado por Sean Chapman. Ele viaja pelo mundo em buscar prazeres efêmeros, e para alcançar isso ele não mede atitudes, não tem escrúpulos ou culpa ao maltratar gente, passar por cima das pessoas, humilhar terceiros ou meramente roubar coisas.

É o clássico homem amoral, que se julga superior a tudo e todos, e que acha que está acima da linha da mediocridade, embora seja tão comum quanto qualquer um.

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O personagem é apresentado de forma curiosa, pois mesmo tendo dinheiro para esbanjar, a ponto de comprar por uma pequena fortuna um objeto tão ordinário que parece um brinquedo, ele tem uma aparência suja e desleixada, com as unhas imundas por baixo da extremidade dos dedos.

Ele está totalmente largado, sua casa é tomada por sujeira, com cômodos habitados por baratas, outros insetos e vermes. Esse aspecto ajuda a preparar o espectador para o choque das primeiras cenas onde restos humanos e objetos de tortura se misturam.

Frank é o arquétipo perfeito da desonestidade humana, o candidato perfeito para receber o quebra-cabeças conhecida como Caixa de LeMarchand. Ao contrário do que se diz no livro, ela é facilmente aberta, com o dono dela sendo totalmente desmembrado, de maneira tão intensa e tão rápida que faz perguntar se aquilo ocorreu de fato ou se foi apenas um sonho.

Antes da sequência terminar, um dos seres que causam mal a Frank junta os pedaços do seu rosto, que vem a ser uma pista, um prenúncio do seu destisno e do seu retorno.

Cliver Barker traduz bem em imagens as torturas que descreve nos livros. A sequência do decifrar do enigma é seguida de ganchos, que invadem a pele do sujeito, estabelecendo ali o quão assustadora seria a obra e a franquia.

Adepto de luxúrias e prazeres, Frank não tem receio em associar a dor ao prazer, e sente ali uma satisfação tremenda, movimento esse que estabelece quase como demoníaca a busca por prazer via dor.

Os seres que saíram da caixa são os cenobitas, entidades infernais que aqui não tem sua origem e detalhada.

São apresentados quatro deles, o líder de rosto cheio de pregos, que ficaria conhecido como Pinhead - mas que era chamado apenas de Lead Cenobite - interpretado por Doug Bradley, um amigo de Clive Barker que conheceu o diretor em aulas de teatro que faziam juntos, quando mais novos.

Também aparecem Chatterer, de Nicholas Vince, que era uma criança quando descobriu o cubo e passou o resto da vida crescendo como um cenobita. Há também Butterball, o monstro adiposo de óculos escuros, interpretado por Simon Bamford, além de cenobita feminina de Grace Kirby.

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A música de Christopher Young acerta ao apostar no instrumental como condutor do suspense nas cenas mais misteriosas, e como não há tanto detalhamento de quem são e como funcionam esses seres maléficas, resta ao som boa parte da construção da mitologia.

O instrumental remete a música clássica, em alguns pontos é lúdico e até ingênuo, sobretudo nas cenas de recriação de carne. Os acordes são tão bons que serviriam até em cenas de filmes com extraterrestres, em um primeiro contato de terráqueos e alienígenas.

A transição entre tramas é acertada também pelo lirismo das canções mais voltadas para o suburbano e o comum, Young é bem eclético, e ajuda a mudar drasticamente o tom, para introdução de Larry e Júlia, o casal que morará na casa.

Larry, o irmão de Frank, é bem diferente do personagem antes apresentado. É pacato, ordeiro, bom moço. Interpretado por Andrew Robinson, acostumado a trabalhar em seriados como Kolchak e os Demônios da Noite e o Além da Imaginação dos anos 80. Também fez produções de horror como Brinquedo Assassino 3 e Pumpkinhead: O Retorno anos depois desta obra.

Sua esposa Julia é uma mulher inconformada, com feição de poucos amigos, vive tratando mal seu esposo. Ela sequer queria mudar para a casa herdada depois da morte dos sogros.

A personagem era interpretada por Clare Higgins era acostumada a trabalhar em séries britânicas de época, como Orgulho e Preconceito e Downtown Abbey, está atualmente no Sandman da Netflix e foi uma das poucas atrizes que retornou a franquia já em Hellraiser II: Renascido das Trevas.

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Ao chegar na casa, eles percebem que houve outra presença lá, já que o lugar está bagunçado, mas não perdem tempo, limpam a casa para habitá-la, jogam fora todos os estranhos artefatos de Frank, entre colchões, imagens pagãs e estátuas pornográficas. Deixando tudo limpo e trancam o velho quarto do irmão.

O filme possui um senso de humor peculiar, em alguns pontos parece propositalmente engraçado, tentando chocar por ironia.

Um dos pontos que reforça essa ideia é o modo como os trabalhadores de mudança olham para Julia, soltando gracejos, que são ignorados por ela, já que ela se considera superior aos comuns, como boa praticante da misantropia que é.

Outro momento que determina um humor diferenciado é o número atrapalhado onde Larry se corta. Barker transforma um simples momento acidental onde o “protagonista” se fere em uma cena bufona, exagerada, que é tão mecânica e mentirosa que pareceu ser o cúmulo da realidade, abrindo a possibilidade de pensar que foi ela quem causou a brecha para que as portas do inferno se abrissem.

O sangue então se tornou o pretexto perfeito para alimentar o irmão incorpóreo, no mesmo cômodo onde ele pereceu, também renasceria.

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A cena de renascimento é sensacional e criativa, se desenrola lentamente e é nojenta do início ao fim desse processo. A construção dela se deu pegando as próteses, filmando-as em um efeito reverso utilizando uma filmagem de trás para a frente com modelos de massa.

Méritos totais de Bob Keen, especialista em efeitos visuais que aqui era responsável pelo departamento de maquiagem e efeitos especiais, vindo de trabalhos como Força Sinistra, A História Sem Fim e O Retorno de Jedi em departamentos diversos, como funcionário de protéticos e até animatrônicos.

O body horror flui naturalmente, não só nos momentos de tortura, mas também no renascer do personagem. Os sustos se solidificam pela bela criação de Keen, que mostra restos de carne se movimentando de uma maneira surpreendentemente natural, mesmo com a sensação de asco, o esforço é digno de admiração.

Os efeitos práticos tornam os hábitos "alimentares" de Frank em eventos grotescos. A partir daqui o personagem ganha um segundo interprete, Oliver Smith, que carrega uma maquiagem que expões músculos, sangue e que vai gradativamente mudando a medida que ele come, estabelecendo assim uma regeneração.

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Enquanto ele volta a se tornar um personagem corpóreo, consegue somente através da lábia convencer a esposa de seu irmão a trazer vítimas para si, outros homens, que serviriam para ele tornar a ter uma vida plena.

O filme mostra momentos do passado, de um caso extraconjugal incestuoso, entre cunhada e irmão do noivo. Curiosamente na novela original é dado que Frank estuprou Julia, aqui Barker suavizou a questão, deixando implícito que ela tem uma obsessão com ele desde que se conheceram, mas que não houve força na compulsão carnal.

O sexo aliás é um assunto meio tabu dentro do filme. Não parece que haja manifestação sexual aqui sem algum tipo de senão pecaminoso. Larry tenta ter relações com sua esposa, e é vigiado por um Frank armado e cadavérico.

Esse trecho, se fosse mostrado de forma isolada já assustaria, tanto pelo voyeurismo tarado do revivido, quanto pela agonia da mulher em ver o homem que outrora desejava se aproximar deles, cortando a carne de um pequeno rato, prevendo o que faria com o irmão.

 

A partir daí a sem-vergonhice é liberada, ao ponto de ter semelhanças entre os ataques dos vilões a momentos de comédia, a exemplo do primeiro encontro de Frank com Kirsty, onde uma das vítimas aparece, descaracterizada enquanto ser humano, seguido de uma tentativa do tio em tomar o corpo de sua sobrinha.

O filme demora a estabelecer a personagem de Ashley Laurence como a nova heroína. Nesta versão ela é filha de Frank, tem uma relação conflituosa com sua madrasta, e entre idas e vindas na trama, ela se torna um dos alvos do vilão, Frank, e entra em contato com a tal caixa de LeMarchand.

Laurence faz participações eventuais em produções de horror, como na série Creepshow e nos longas Smile e até no clipe Snuff do Slipknot. Acabou se tornando um símbolo de personagem feminina forte, uma vez que é destemida dentro dessa versão, bem mais ativa que a Kirsty do livro.

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A mistura de tara não resolvida com a obsessão do sujeito em se tornar humano é levada de maneira caricata, com uma carga de humor irônica facilmente confundida com o cômico pastelão.

Frank utiliza frases de efeito taradas, provocando na moça e no público um asco tremendo. A reação de Kirsty é imediata, e ela começa a planejar uma reação de forma imediata, quase como uma estrategista de guerra.

Contra-ataca jogando a caixa enigma para fora, buscando não só a sua própria sobrevivência, mas também a preocupação com o bem-estar de seu pai. Ela intui que o artefato era importante, que poderia ser o ponto fraco do seu tio, por isso julgou por bem levar consigo o objeto, pegando ele na parte de baixo, e o cálculo para toda essa sequência teria que ser perfeito.

É bizarro como tanto no livro quanto no filme, os cenobistas são facilmente dobráveis. Eles são fáceis de enganar mesmo tendo o tanto de poder que tem. Só nesta versão duas pessoas conseguem enganar eles, Frank, que consegue retornar a despeito do conhecimento deles, provavelmente como um cenobita, já que suga carne de terceiros, e Kirsty no final, que retribui uma trapaça deles.

Claramente não são oniscientes ou portadores de uma sabedoria grandiosa. O que talvez explique a tolice deles é justamente Frank estar virando um cenobita, e como é visto mais à frente na série de filmes, eles podem perder parte da memória de quando eram apenas homens. Talvez o limite da transformação de um cenobita influa na ciência dos outros.

Kirsty cresce na reta final e decifra acidentalmente o enigma no hospital. Sua motivação não era o prazer (ao menos não em um nível consciente) e sim a curiosidade, e talvez esse sentimento a faça ter uma experiência diferente, mais imersiva, encontrando no quarto do hospital uma fresta na parede, que a levou para o Engenheiro, cenobita que lidera os demônios no livro, e que aqui mal é explicado.

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Tal qual é no livro, os cenobitas aparecem pouco, mas quando o fazem, assustam, sobretudo Chatterer, que fica batendo os dentes, produzindo um som de rangido que assusta horrores tanto o público quanto os personagens, e claro que após fugir dele, os outros exploradores das regiões longínquas da experiência aparecem, para levar a moça.

Bradley pede para ela não chorar, pois é o desperdício de um bom sofrimento, e em troca dela não ser morta ela oferece a alma do tio. Toda essa cena ocorre com ela sendo encurralada pelo monstro que bate forte seus dentes, compondo neste trecho mais um belo conto de horror isolado, que também funcionaria sozinho.

O roteiro não é perfeito, tem alguns momentos bem confusos, com artimanhas bobas, instaladas para provocar medo ou repulsa. Exemplo disso é um homem em situação de rua muito estereotipado, que demonstra ser um demônio e que se alimentava de insetos.

Sua participação beira o grotesco e é bem gratuita. Não acrescenta em nada na trama, está lá só por estar.

Cabe a menina encontrar novamente a caixa, que está cuidadosamente na mão de sua madrasta morta, já consumida pelos cenobitas - que se deram ao trabalho de colocar ela em uma posição diferente, acorrentada a cama e com o rosto sem pele - e vai manipulando LeMarchand, para fazer eles recuarem.

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A cena imediatamente anterior aos créditos é estranha, com uma entidade estilo dragão pegando a caixa, transitando para uma passagem digital tosca, mostrando que o destino da caixa de lamentações seria a de ser utilizada novamente, começando outro ciclo de prazer e dor.

Há uma inteligência em mostrar a maldição como um evento cíclico, como um mal incomensurável, tornando a caixa de LeMarchand um artefato que em outros momentos será encontrado por novas vítimas.

Hellraiser é um thriller espiritual e conta com uma mocinha que lida bem com esse mundo pessimista e sádico, e acaba sendo a única pessoa que o público é capaz de se apegar, e mesmo que seus melhores personagens sejam os vilões. Mesmo sendo desequilibrada no texto, a tradução da novela de Barker é bem orquestrada e marcaria a mente dos fãs do cinema B de uma maneira intensa, gerando crias boas e ruins ao longo dos anos.

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