Esta Noite Encarnarei no Teu Cadáver é um filme de horror brasileiro idealizado e protagonizado por José Mojica Marins. Lançado em 1967, esse é o segundo volume da trilogia do personagem Zé do Caixão.
Após o sucesso de À Meia-Noite Levarei a sua Alma, havia uma expectativa em relação ao cinema de José Mojica, uma vez que o longa de 1964 foi um fenômeno de popularidade. O realizador decidiu se apropriar da questão comum aos filmes de monstros da Universal, que estabeleciam sequências para as obras de terror bem-sucedidos, decidindo assim seguir com seu personagem, arrumando uma desculpa para fazer Zé do Caixão voltar.
Vale lembrar que até os anos 1960, não era exatamente moda que filmes de horror tivessem sequências. Haviam claro exceções, como os produtos da Hammer Films, que ainda assim não tinham uma cronologia bem estabelecida e também A Estirpe dos Malditos, lançada em 1964, que era sequência de A Aldeia dos Amaldiçoados, mas a realidade é que não era algo tão comum, ao menos não em um volume tão grande como começaria a ocorrer no cinema comercial hollywoodiano de terror.
A sinopse envolve o retorno de Josefel Zanatas, que se recupera dos acontecimentos do filme anterior, voltando de uma quase morte. Para todos os efeitos, não houve consequências nem para os crimes que praticou e nem para os pecados que cometeu.
Ele é inocentado pela justiça local e no tribunal é que finalmente se conhece o seu nome completo, já que não havia sido estabelecido no primeiro longa. Agora ele pode enfim viver sua rotina comum, passando entre a funerária que leva seu vulgo, além é claro de mostrar a sua mansão, uma casa bem maior do que o que foi visto no longa de 1964.
O agente funerário segue procurando uma donzela ideal, que lhe daria o filho perfeito, convencido de que a única forma de imortalidade é a do sangue e não a do espírito.
Com a ajuda do seu lacaio Bruno, ele rapta moças, a fim de encontrar o receptáculo ideal para a sua semente, a doadora de um útero que gestaria o filho que ele tanto queria.
Durante a projeção ele entra em conflito com a moral, com os bons costumes do vilarejo onde vive e fica contra o povo, polícia e até o clero daquela pequena comunidade. Em sua intimidade faz testes de medo, torturas e experiências com as mulheres, tudo isso para provar qual delas é a melhor para perpetuar o sangue do homem.
Dirigido por José Mojica Marins, o roteiro é do diretor e de Aldenora De Sa Porto. Foi produzido por Augusto Pereira e pelo cineasta, com Antonio Fracari como produtor associado.
A equipe técnica é formada pelo compositor Herminio Giménez, pelo diretor de fotografia Giorgio Attili, montado por Luiz Elias, design de produção de José Vedovato. Jean Garret foi o assistente de diretor, com Salatiel Coelho fazendo o som.
O longa estreou no Brasil em 13 de março de 1967. Passou na Argentina apenas em abril de 1999 no Buenos Aires International Festival of Independent Cinema. Na Austrália estreou apenas em 2004 em uma premiere de TV, nos Países Baixos chegou em setembro de 2020, no BUT - B-Movie, Underground and Trash Film Festival.
O título original é obviamente Esta Noite Encarnarei no Teu Cadáver, mas ele é lembrado pelo nome em inglês, This Night Will Make Your Corpse Incarnate ou Tonight I Will Eat Your Corpse.
Na Finlândia é Tänä yönä valtaan ruumiisi, na França é Cette nuit, je m'incarnerai dans ton cadavre, já na Itália é Questa notte mi incarnerò nel tuo cadavere, na União Soviética era Сегодня ночью я вселюсь в твой труп, na Espanha é Esta noche poseeré tu cadáver.
A Ibérica Filmes é o estúdio por trás da obra. A distribuição nos Estados Unidos foi da Something Weird Video (SWV) em VHS e da Fantoma em DVD. No Brasil, foi lançado em DVD pela Cinemagia, no Reino Unido foi lançado pela Anchor Bay Entertainment.
Mojica já vinha trabalhando como realizador e ator. Entre as produções que conduziu estão A Sina do Aventureiro e Meu Destino em Tuas Mãos. Alguns anos depois começaria uma parceira com R.F. Lucchetti, que resultaria em algumas de suas melhores obras, tais como O Estranho Mundo de Zé do Caixão, Finis Hominis - O Fim do Homem, Exorcismo Negro etc.
Ele fecharia a trilogia de com Encarnação do Demônio somente em 2008, em um longo hiato e em uma versão bem diferenciada do que se pensou nos anos 1960.
Aldenora escreveu só esse. Já Augusto Pereira produziu A Sina do Aventureiro e Meu Destino em Tuas Mãos. Atuou em ambos.
Antonio Fracari trabalhou em setores de maquiagem em O Cantor e o Milionário, A Montanha dos Sete Ecos e Lampião, o Rei do Cangaço. Atuou nesse último, na série Uma Sombra em Minha Vida e interpretou o Truncador na obra analisada nesse artigo.
Uma reedição deste filme e de outros da série Coffin Joe foi lançada em 2023 pela Arrow Video com arte do artista brasileiro Butcher Billy.
Como o lançamento do filme foi na época da Ditadura Militar - um ano antes do AI-5 - ele foi censurado.
Aparentemente, passou pelo crivo dos censores três vezes, se percebe uma alteração no final do filme, onde Zé do Caixão, ao final, muda o discurso para ser crédulo em Deus, ao invés de abraçar o discurso niilista que sempre lhe foi típico.
A narrativa, tal qual ocorreu no primeiro volume da saga, inicia com Zé perguntando:
É a vida o tudo e a morte o nada? Ou é a vida o nada e a morte o tudo?
Logo depois se afirma que esse filme começa da onde A Meia Noite Levarei a Sua Alma parou, inclusive dá novas filmagens a última cena desse, onde a multidão encontra Zé do Caixão parado, caído e com os olhos esbugalhados, depois de encontrar os corpos de Terezinha e Antônio em suas covas.
Depois dos créditos iniciais, é mostrado ele no hospital, sendo tratado, com o médico dizendo que ele voltará a enxergar.
Outras cartelas de créditos aparecem, acompanhadas de cenas dignas de pesadelos, frames onde pessoas são torturadas, onde animais passeiam pelo corpo de gente e onde mãos saem dos túmulos.
São momentos infernais, que precedem o julgamento de Josefel Zanatas.
O coveiro é absolvido dos crimes dos quais foi acusado, afinal, carecem de provas. Ele acorda sorrindo, gargalhando, com saúde e inocentado, sequer precisou estar no tribunal, defendendo sua honra e liberdade. Soube de tudo após se recuperar, estando praticamente como alguém novo, renascido, pronto para mais desventuras.
Zé retorna para a cidade, sem pompa, carrega sua mala, usa a sua conhecida roupa preta e uma cartola escura. Toda a gente se esconde, ele nota e diz que o povo continua o mesmo, ignorante, supersticioso e inferior. Ele volta com a auto missão de mostrar a verdade, de fazer ela ser aceita, nem que esse povo tenha os olhos vertidos em lágrimas de sangue.
Agora ele é acompanhado de um homem corcunda e de rosto machucado, chamado Bruno, personagem de Nivaldo Lima, que claramente imita Igor, o homem corcunda, que acompanha o dr. Frankesnteins em alguns dos filmes clássicos da Universal. Entre Igor e Bruno há o comum sentimento de obediência cega, a um homem autoritário, genioso e que é visto como párea pelos seus próximos.
Mesmo sendo niilista, ele age de maneira heroica, fala das crianças, de como são belas e puras e de como se tornam idiotas quando crescem, desprezando o real valor da imortalidade do sangue.
Zé salva Carlinhos, uma criança que quase foi atropelada por um motociclista. A mãe do garoto o tira da posse do homem, mas ele não rebate com grosseria. Parecer ter algum respeito pela maternidade. Quando o ciclista indica o milagre que ele operou, compara Zanatas a um enviado de Deus. O coveiro pergunta: por que Deus e não o Diabo?
O sujeito segue querendo chocar, mesmo sem ter plateia para isso, mesmo que ninguém do lado de fora de sua mansão pareça concordar minimamente com ele.
Zé do Caixão fala coisas desagradáveis só por falar, para chocar os outros. Entre as pessoas com quem ele tem choque, há uma autoridade, que é chamada apenas de Coronel, interpretado por Roque Rodrigues.
A cidade inteira acha que Zé é um sujeito ruim. Diante do sumiço de diversas moças, se instaura uma suspeita óbvia a ele, afinal, ele ficou sumido por um longo tempo e foi acusado de diversos crimes. Mesmo sem qualquer obstrução da justiça, ele se torna alvo das fofocas do povoado.
Antes de atacar Zé, acusam o Truncador, mas ele é apoiado pelo coronel, que por sua vez incita o povo a acusar o protagonista, mas o coveiro não aceita a acusação calado. Rebate a todos, com um discurso inflamado, que promete trazer o culpado, mesmo que seja ele quem mantém as mulheres reféns.
Mais uma vez a voz do personagem não é feita por Mojica e sim por Laércio Laurelli. O discurso completamente torto e odioso dele só tem algum sentido graças ao desempenho vocal do ator e a presença corporal de Marins. Ele oferece riquezas, se algum delas conseguir dar a ele o que ele quer: a continuidade do sangue.
Parte dos momentos assustadores do início são explicadas em uma cena já com as mulheres enclausuradas.
Ele mede a coragem das moças, deixando com que aranhas tarântulas entrem no quarto, em uma noite. Ele as chama de medrosas e pusilânimes, exceto Marcia (Nádia Freitas), que não gritou, ficou em silêncio e não se manifestou.
Zé desce com as mulheres e com Bruno, segue com o regime de provações, enquanto elas sofrem com experimentos, uma até morre, graças ao modo como Bruno a trata.
Esse trecho conversa com a parte três de O Estranho Mundo de Zé do Caixão, onde Oãxiac Odéz faz experiências com pessoas, reduzindo elas a um estágio de selvageria.
Ele quer achar uma mulher superior, para guardar sua semente, mas nem ela aguenta a crueldade do sujeito com as outras mulheres. Mais uma vez ele ouve uma vítima rogando-lhe uma praga, já que a bela e voluptuosa Jandira, profetiza contra ele, afirmando que ele não terá sucesso em ter filhos.
Na rua, após um entrevero, Zé do Caixão ataca o Truncador, só por conta de ele estar na frente dele, na rua. O sujeito que era forte acaba não conseguindo fazer frente ao coveiro, mesmo que ele não seja alguém alto.
Há algo no personagem de Mojica que o faz ser temido. Como ele não crê em nada que não é terreno, fica a sensação de que é na verdade apenas a sua postura e certeza de estar correto.
A filha do Coronel, Laura (Tina Wohlers) fica encantada com Zanatas...até pergunta porque ele não foi convidado para a festa que seu pai fez em sua homenagem. Obviamente o homem não foi convidado por ser desafeto do militar, mas isso não o impede de nada, já que Zé encontra Laura e até marca um encontro a só com ela, à meia-noite, na Alameda das Flores Vermelhas.
Laura não tem medo do sujeito e vai até lá, por isso, o personagem principal gosta dela, já que o venera. Ela parece ser uma das únicas pessoas na cidade que acredita nele como força superior, ao menos fora as pessoas do seu culto.
Ela deseja a perfeição, enxerga Zé como esse alvo, não teme sequer as ameaças que ele faz e gosta de fazer.
Também prepara uma armadilha para o Truncador, colocando uma das suas lacaias para seduzi-lo, depois faz acreditar que ambos jogarão pôquer juntos. O personagem parece ter prazer em humilhar o homem forte, aliás, brinca sadicamente com vários seres machos da cidade, até tortura um homem, trata desse refém como um rato que sofre experimentos, diz que a vida de um animal racional vale tanto quanto a de uma praga.
Truncador finalmente joga cartas com Zé do Caixão e perde de maneira feia. O homem de olhos negros treme ao apostar com o homem de unhas grandes e depois da derrota chama o coveiro de demônio, para ser atacado logo depois por Bruno, sofrendo assim com uma armadilha.
A metade final é movimentada. Acontece tanta coisa ao mesmo tempo que chega a ficar confuso. O Coronel vela seu filho, que foi morto obviamente pelo personagem principal. Enquanto a sua irmã, Laura, espera a chegada de seu amado prometido e a hora oportuna para ambos serem um do outro.
Zé do Caixão não sabia que Jandira estava grávida ele quase agride o marido dela, que assume isso enquanto está bêbedo. O personagem sai da birosca repetindo que ela esperava uma criança pequenina, um ser inocente. Ele fica triste, sente-se como alguém mal, finalmente é atingido, já que ele quebrou a promessa que fez a si mesmo, de não agredir seres superiores, como são as crianças.
Zé do Caixão é terminantemente contra o aborto e de penitencia por isso, assume a culpa por tal ato. Isso explica a sequência estranha que ocorre no último terço de filme.
Dormindo com Laura, ele imagina um homem alto e magro, de tonalidade escura, com cor e piche, que arrasta seu corpo para fora da cama e o leva para a parte baixa da casa e até o cemitério. Depois disso, as mãos pulam para fora das covas, se arvoram, levam minhocas para a superfície e uma delas puxa Zé para baixo.
Essa é a famosa cena colorida, do inferno gelado que Mojica Marins idealizou.
Essa foi a primeira aparição de José Mojica em cores, ele está com o rosto mais sujo, com mais barba e cabelos desgrenhados, unhas maiores, um aspecto mais relaxado que o comum.
No inferno há andares, chãos que desabam, paredes que pulsam, muito grito, choro e ranger de dentes. Demônios fortes, brilhantes, vermelhos e seminus espetam ferros, tridentes e chicotes nos infernais.
Há muita cor, muito sofrimento, fumaça e até neve. Zé enxerga a si mesmo, um doppelganger vestido como Baco, o deus grego da luxúria. É uma arquitetura ímpar.
Ele encontra Jandira e outras mulheres que ele matou. Ela diz que vai encarnar no cadáver dele, então acorda, que era apenas um pesadelo.
Zanatas pode tentar fazer parecer o contrário, mas ele se abala, fica mal. O sujeito sente culpa, mas isso passa, especialmente depois que descobre que Laura está grávida. Nesse momento, sobe um coro, que toca Aleluia. Ele quer beber e comemorar, mas só o bartender fica com ele, na birosca.
Logo depois, fazem uma tocaia para Zé, envolvendo Truncador, Cadavérico, personagem de Nelson Stasionis(as) Tatuado e Omulu. Esses personagens de nomes sugestivo parecem uma trupe de circo e juntos, atacam Zé, à mando do Coronel. Eles detém o vilão, em conjunto.
Zé desperta, no barco onde estava, na beira do lago ataca os seus raptores, usa lâminas em seu sapato, depois golpeia a cabeça de Cadavérico com um machado, usa o pântano para deter os outros, que submergem facilmente, nessa armadilha.
Ele foge a tempo de descobrir que Laura está quase morrendo. O homem e ela tentam salvar a criança, até pedem isso ao médico. Ela, no entanto, não resistiu, tampouco a criança. Zé se recusa a assumir que ela morreu, afinal, em seu ventre há o filho do homem superior.
Esconde o corpo de sua amada no mausoléu do cemitério, faz o fim desse se assemelhar com o do episódio anterior.
Ao ser encarado por Jandira novamente, ele diz que ela não passa de uma visão sem vida, fruto de sua imaginação atormentada, ele faz caras e bocas, poses performáticas, como um ator de teatro solo, que grita contra a reencarnação.
O vilão pede uma prova de que o Divino existe, um tronco de árvore cai nele, em chamas, após um raio cair nela.
Zé termina desafiando Deus, faz como fez o anjo Lúcifer, antes de cair em desgraça. Provavelmente graças a isso que ele encontra o padre. O sacerdote tenta convencer ele a assumir que crê em Deus, para fazer a turba de pessoas desistir de matá-lo, ja que eles acreditam que ele tem parte com o Diabo.
Nesse trecho o seu visual fica parecido com o momento em que estava no inferno, com a barba malfeita e cheia. Isso também mostra alguns erros de continuísmo, que não tiram o tom sublime dessas cenas aterradoras.
A realidade é que a forma, o conteúdo é maravilhoso.
Ele termina dizendo que é invencível, que é imortal, depois de levar um tiro. Diz que é indestrutível, enquanto cai no pântano, no piche. Pede a verdade, enquanto assiste esqueletos surgindo na água, vindo para a superfície do lago. Faz isso sob os olhares do povo e de Bruno, ele pede misericórdia a Deus, diz que ele é a verdade, fala da cruz.
A parte censurada fez com que Zé do Caixão colocasse uma fala "Eu não creio. Não creio", assim ele fala logo depois "Deus… Sim… Deus é a verdade! Eu creio em tua força. Salvai-me! A cruz, cruz, padre…!" basicamente por conta da sugestão dos censores.
Esse assumir do poderio de Cristo é extremamente caricato e grotesco. Piora pelo fato de tocar uma música que evoca Santa Maria, unido a uma frase, que parece bíblica, mas não é. Ela diz "o homem só encontrará a verdade quando ele realmente procurar a verdade!"
Esta Noite Encarnarei no teu Cadáver é uma aposta maior que o primeiro, um exagero niilista, que brinca com a miséria existencial de um homem sem escrúpulos e que tem seu final deturpado, graças a tolice dos mandantes da Ditadura Militar. É um grande avanço na mitologia e uma obra diferenciada, por expandir bem a mística e Zé do Caixão e do universo ao seu redor.
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