O Ritual dos Sádicos é um filme nacional que mistura elementos de horror, ficção científica e surrealismo. Longa de José Mojica Marins aborda temas polêmicos como o uso de drogas e trata de questões sobre insanidade mental. Essa foi uma obra que sofreu bastante com a censura da Ditadura Militar, especialmente nesse, já que deveria ter sido lançado em 1969, mudou até de nome, sendo conhecido como O Despertar da Besta, chegando aos cinemas somente em 1983.
A história gira em torno de um cientista e psiquiatra curioso, que quer saber como funciona o medo e a vontade das pessoas em provocar e pensar no mal. Ele injeta doses de drogas em voluntários a fim de estudar os efeitos provocados pelas substâncias. Nesse interim também a imagem de Zé do Caixão aos experimentos, causando assim pânico e pavor em suas cobaias.
A partir daí saem resultados estapafúrdios, que combinam perversão e sadismo, além de diversos delírios.
A mera descrição dessa sinopse já faz lembrar em partes o plot do futuro filme de Marins, no caso, Exorcismo Negro, de 1974. Esse Ritual dos Sádicos deveria ser o primeiro filme que teria o cineasta Mojica Marins como personagem, mas graças aos problemas com o Regime Militar, não pôde ser o pioneiro, nem nisso nem no quesito de colocar em tela não só o criador, mas também o seu contraponto dramático, a criatura Zé do Caixão.
Há quem defenda que esse filme é uma espécie de pseudodocumentário, tal qual ocorreria com filmes futuros, tanto no terror em Holocausto Canibal, A Bruxa de Blair e REC, quanto dentro da comédia tal qual em Borat ou The Office. Ou seja, mais uma vez Mojica foi pioneiro em formatos, tal qual seria no já citado Exorcismo Negro, que preveria Um Gato no Cérebro de Lucio Fulci e O Novo Pesadelo de Wes Craven.
A obra analisada tem direção e tem o argumento escrito por Mojica Marins, com roteiro do seu contumaz parceiro dele R.F. Lucchetti, que assinava Rubens Francisco Lucchetti. Foi produzido por Giorgio Attili, Marins e George Michel Serkeis, com Goffredo Telles Neto como produtor associado.
O longa se divide em duas partes, que eventualmente, se misturam em tela. A primeira, filmada em preto-e-branco, o psiquiatra Dr. Sérgio aparece em um programa de televisão sobre um painel com outros três psiquiatras contemporâneos depois que ele alega ter realizado experimentos em quatro voluntários viciados em LSD.
O intuito é pôr a prova a questão polêmica, que liga a perversão sexual a ao uso de drogas ilícitas. A outra parte é dos tais experimentos e cenas externas que ocorrem em São Paulo, trechos esses ligados aos experimentos estranhos citados.
Eventualmente há alguns outros momentos, que tem mais a ver com as viradas no final, fato é que esse apela mais para um surrealismo, para elementos de cinema bem diferente da maneira retilínea que Mojica Marins normalmente fazia, com trechos que lembram a Novelle Vague, o cinema marginal de Rogério Sganzerla, o Cinema Novo de Gláuber Rocha e o expressionismo alemão de Fritz Lang, embora esse último já fosse muito referenciado na filmografia do cineasta brasileiro, já que em À Meia-Noite Levarei a Sua Alma já haja muita inspiração em Nosferatu de F.W. Murnau.
Parte da narrativa utiliza os negativos dos filmes de Mojica, entre trechos utilizados nos cortes finais e outros rejeitados, além de pedaços de filmes de seus amigos cineastas.
Essa junção de momentos serve para reunir os elementos de delírio e terror de uma forma única e coesa, que até faz sentido dentro da estética experimental proposta, mas que é de difícil digestão para o público comum.
Há quem defenda que esse é um mosaico de ideias de Mojica, um amontoado de inspirações compartilhadas entre ele e Lucchetti, imagens aleatórias e sem propósito. Há também a discussão de que seria uma espécie de libelo do cinema experimental brasileiro a tentativa de Mojica de ser como os seus colegas contemporâneos, especialmente os cinemanovistas.
Diferente de boa parte da filmografia do diretor, esse é ambientado na metrópole de São Paulo e não no interior ou no campo.
A contracultura e a psicodelia típicas da cidade grande adentram a narrativa, ajudando assim a justificar (ou pelo menos tentar justificar) a não-linearidade da trama, que é conectada pelas cenas do debate entre o psicólogo e deliberantes anônimos e famosos sobre os efeitos dos agentes tóxicos/drogas na sociedade.
Ritual dos Sádicos foi rodado em 1969, em um pequeno prédio na região da Liberdade, centro de São Paulo. Também teve cenas em Tempietto da Praça Alexandre De Gusmão, também na capital paulista.
Esse era o título original quando o longa foi finalizado ainda nos anos 60. Depois da proibição, ao ser lançado em festivais e mostras no ano de 1982, ele recebeu o novo título de O Despertar da Besta, obviamente para tentar driblar os possíveis censores do Regime, fingindo ser outra produção.
Lucchetti preferia o título Ritual dos Sádicos, mas O Despertar da Besta tem em sim um caráter de evocar o catalisador da maldade no ser humano, no caso, a droga, que (supostamente) despertaria a besta, que era representada simbolicamente pelo personagem Zé do Caixão, que é o avatar do mal e dos desejos mais obscuros do homem, com a droga sendo a desculpa perfeita para o usuário exteriorizar seus sentimentos.
Na Austrália e Itália a obra se chamava Awakening of the Beast, na maior parte do mundo, é chamado de Ritual of the Maniacs. Na França é L'éveil de la bete, na atual Alemanha na antiga Alemanha Ociental era Das Erwachen der Bestie. Na União Soviética era Пробуждение зверя, na Espanha El despertar de la bestia.
O filme foi feito pelos estúdios Fotocena Filmes e Ovni Indústria Cinematográfica. Teve como representante em vendas internacionais a One Eyed Films em 2012, com distribuição da Something Weird Video nos Estados Unidos em 1993, em VHS.
A Fantoma lançou ele em DVD no ano de 2001 e a Cinemagia fez o mesmo no Brasil, em 2002. No Reino Unido, foi lançado pela Mondo Macabro.
O DVD veiculado no Brasil vinha em um box comemorativo de 50 anos de atividade do cineasta José Mojica Marins, contendo seis de seus filmes em versão digital: À Meia-Noite Levarei Sua Alma, Esta Noite Encarnarei no teu Cadáver de 1967, O Estranho Mundo de Zé do Caixão de 1968, esse Ritual dos Sádicos, Finis Hominis: O Fim do Homem de 1971 e Delírios de um Anormal de 1978.
Mojica é lembrado pela trilogia de Zé do Caixão, iniciada em A Meia-Noite Levarei a sua Alma, continuado em Esta Noite Encarnarei no Seu Cadáver e fechada por Encarnação do Demônio de 2008. Seus últimos filmes lançados foram um dos curtas em Fábulas Negras de 2014, chamado O Saci, além do média-metragem A Praga, que Eugênio Puppo remasterizou e montou para um festival nos anos 2000, sendo novamente remasterizado e dublado, para ser finalmente lançado em 2021.
Com Rubens Francisco ele fez vários filmes, entre eles O Estranho Mundo de Zé do Caixão, Finis Hominis - O Fim do Homem, Exorcismo Negro, A Praga etc. Além dos filmes que conduziu ele esteve em Éramos Irmãos de Renato Ferreira, O Diabo de Vila Velha de Armando de Miranda e Ody Fraga e O Cangaceiro Sem Deus de Oswaldo De Oliveira.
Lucchetti escreveu muitos além dos filmes de Marins, também obras com Ivan Cardoso, como O Segredo da Múmia, As Sete Vampiras e O Escorpião Escarlate.
Atilli produziu apenas esse, é mais conhecido por ser diretor de fotografia também desse longa-metragem. Ele foi cinematógrafo em À Meia Noite Levarei Sua Alma, Obrigado a Matar, O Puritano da Rua Augusta, Trilogia de Terror e O Estranho Mundo de Zé do Caixão, além de Noite de Orgia, Sacanagem, A Gosto do Freguês e Demônios e Maravilhas.
O egípcio Serkeis produziu apenas esse e O Estranho Mundo de Zé do Caixão, onde também atuou no segmento mudo chamado Tara. É mais lembrado por seu apelido, Georginho e é um dos maiores entusiastas da dança do ventre no Brasil.
Ainda sobre as dificuldades de lançamento desse, em entrevista ao Roda Viva, no ano de 1998, Mojica tece palavras sobre O Despertar da Besta, diz que era um filme que foi premiado, o primeiro seu a receber tal atenção dos festivais e da crítica, afirma que ele foi alardeado, louvado e incensado.
Segundo o próprio, ele se tornaria o Silvio Santos do cinema nacional, ficaria famoso e rico, daí, em algum ponto – ele fala de maneira confusa e difusa sobre as datas – a Embrafilme decidiu que iria distribuir, provavelmente na década de 1970 ou 80, mas então eles perderam os negativos, então ele encontrou, meio que por acaso, na Rua do Triunfo, no lixo – sabe-se lá como - então a Embrafilme seria processada por ele, mas a empresa faliu nos anos 1990.
Nessa mesma entrevista, ao ser indagado pelo jornalista Leon Cakoff sobre cobrar uma indenização ao Estado, ele fala de maneira sincera que essa é uma boa ideia. Mas como ele é um sujeito “maldito”, acredita que não conseguiria ter sucesso nisso.
A narrativa começa estranha, com um canto da reza Ave Maria, nos agradecimentos, depois vem um som estrondoso, então entra em cena o diretor e ator, vivendo Zé do Caixão, fazendo um discurso igualando a estranheza do universo dele com o das pessoas que assistem essa obra.
No release de O Despertar da Besta os créditos iniciais aparecem junto a páginas de quadrinhos, de Nico Rosso, que também faz a arte aqui. Em vários pontos do filme se usa a figura de Marins em cartazes de seus filmes, em um regime de auto-propaganda, assim como outros anúncios espalhados, inclusive dos gibis que ele e Lucchetti produziam.
Há um momento esquisito nos créditos, que anuncia um setor de debate, com os cineastas autorais Maurice Capovilla, João Callegaro, Carlos Reichenbach e Jairo Ferreira, também o ator e diretor de teatro Walter C. Portella
Nesse ponto se agradece uma infinidade de lugares, pessoas e negócios, alguns como o Branco do Brasil de São Paulo, empresas como Cine Caverna, Bar e Lanches Humaitá, as tvs Record e Bandeirantes, o Teatro Oficina de José Celso Martinez Côrrea, que inclusive aparece aqui, além das editoras Samambaia e Prelúdio.
O início é sem falas, mostra um plano detalhes de uma menina se entorpecendo, injetando algo na veia do pé. Parece mesmo ser uma tentativa de Mojica de fazer um filme ensaístico, mais cabeça, como é cinema de Glauber, Carlão, Luís Sérgio Person, Capovilla etc.
O tal doutor apresenta como prova uma série de relatos documentados do uso de drogas levando a atos sexuais obscenos e bizarros. Marins aparece no painel com os psiquiatras (os cineastas que são seus parceiros) como se fosse algum tipo de especialista no assunto da depravação.
Durante o programa, Dr. Sérgio narra a experiência de seus colegas no painel, que contestam suas afirmações, em um ambiente escuro, onde mal dá para notar o rosto de quem fala.
Esse experimento com os voluntários lida também com o fato deles olharem fixamente para um cartaz do filme O Estranho Mundo de Zé do Caixão. Curiosamente, um dos curtas presentes nessa antologia de 68 lembra muito o espírito desse momento.
Eventualmente, o filme muda de preto-e-branco para colorido e a experiência de cada paciente é vividamente retratada em uma série de cenas surreais.
Um dos episódios científicos envolve uma menina, que se exibe para homens tarados, depois que ela injeta droga em si, provavelmente LSD.
Ela tira a roupa, permite a aproximação desses que agem como predadores sexuais, no entanto ela não chega a ser tocada, até senta em uma panela com água, que parece estar bem quente, aliás.
Há aqui um erotismo no estilo que Tinto Brass faria nessa mesma década de 1970, embora no caso do diretor italiano não houvesse tanto apelo ao idílico como é aqui.
As mulheres são apresentadas como alvo sexual, mas não são necessariamente tratadas como objetos, ao menos não em um primeiro momento, são assim apenas como figuras de nudez gratuita.
Elas são quase ídolos, imagens de barro, como as estátuas adoradas na antiguidade, veneradas pelos homens entorpecidos, que as consideram quase como deusas, cercadas de pessoas que tratam elas como deidades, embora nesse sentido, sejam sim como objetos.
Há uma dicotomia no tratamento das mulheres. Há quem defenda que Mojica era misógino, mas curiosamente ele retrata esses momentos imorais em figuras malvadas, em vilões, tarados, anormais e entorpecidos, ou seja, coloca a maldade e crueldade na atitudes e palavras de quem é naturalmente ruim ou quem deseja ser ruim.
Talvez o seu filme não seja maniqueísta em essência - à luz do final, isso é discutível - mais ao menos nessa questão, ele é bastante. Os preconceituosos são os escroques.
Os homens são servis, em alguns pontos, chegam a engatinhar e rastejar, para servir suas musas, já em outros, busca submissão, ainda mais quando Zé do Caixão entra em cena.
O uso do tóxico - chamado aqui da maneira popular e engraçada, com o som de "tóchico" - gera muitas taras, ligadas a glutonaria e até ao sexo com animais, são mostrados momentos que flertam com bestialismo.
Há um momento em particular, uma cena com um gordo, cuja história de bastidor, caso seja verdade -Mojica tinha uma mania de mentir ou exagerar em certos pontos de suas histórias - é simplesmente sensacional.
Esse filme deveria ter participação de Jô Soares, que gostava muito do trabalho de Marins, mas em cima da hora, ele não pôde ir, graças a um problema de agenda.
O diretor simplesmente colocou um policial que deu uma dura nele, já que era bem parecido com Jô. O sujeito, chamado José Carlos Cotrin, virou consultor em alguns assuntos, inclusive.
O motivo do policial ter aparecido foi por conta de vizinhos denunciaram o barulho e o uso de drogas, no prédio localizado no bairro da Liberdade, um vizinho chamou a polícia por suspeitar da entrada de muitas pessoas estranhas, de tipos esquisitos.
Viaturas dirigiram-se para lá, com policiais armados. Revistarem a todos, revirarem o local, mas não encontraram sinal de entorpecentes. Foi nesse momento que o diretor sugeriu a Cotrin atuar nesse, já que Jô Soares sumiu de última hora. A princípio ele titubeou, mas acabou encarando o papel do empregador que exige favores sexuais da personagem Maria, de Ittala Nandi e se tornou não só ator, mas também amigo de Mojica.
Maria passa pelos testes do homem rotundo, é tratada de maneira abusiva e estranha, ele é visto de maneira grotesca, com a imagem sendo trocada por animais, como cavalos, cães e porcos...
Vale lembrar que apesar de dividirem tela, segundo Nandi, ela e Cotrin jamais se encontraram. Anos mais tarde ela se tornaria uma atriz de sucesso no teatro, uma grande diretora e montadora de peças.
Os homens são quase todos patéticos aqui, uma das poucas exceções é José Mojica, que é personagem e os outros no debate. Todos os outros, inclusive os que deliberam na mesa, são bestiais, alguns inclusive parecem impotentes.
A pergunta que fica é quem é o anormal que tem delírios, o sujeito drogado, os debatedores, que emulam um tribunal de exceção em atenção ao governo da época ou o responsável por censurar e atrasar essa obra de chegar ao público?
Na parte da gravação do programa de televisão Medo da Verdade, que curiosamente, parece ser do mesm estilo do programa Roda Viva (que aliás, foi inaugurado em 1986) Mojica faz a própria voz, no restante do filme ele é dublado por Araken Saldanha, que fez esse trabalho na Academia Internacional de Cinema a AIC. Ele também dublou o diretor nos filmes Finis Hominis e Quando os Deuses Adormecem.
O cineasta aproveita esse para fazer propaganda de seus outros produtos, como os quadrinhos da Coleção Zé do Caixão, inclusive mostra em tela a revista de A Praga, que foi episódio de Além, Muito Além e que foi rodada em média metragem, como dito antes.
A partir daqui falaremos sobre o final. Não há nada muito revelador, mas caso o leitor se importe com spoilers, deixamos o aviso.
A maior parte do filme vem de recortes de outras filmagens, só a meia hora final se dedica a mostrar os efeitos que Zé do Caixão causa nos adictos.
Injetam algo, provavelmente heroína, LSD ou alguma droga fictícia, já que Mojica mesmo assume que não entendia de entorpecentes na época. As pessoas olham cartazes de O Estranho Mundo de Zé do Caixão, se intercalam cenas coloridas com outras monocromáticas, momentos com apenas uma cor, tal qual era comumente feito nas obras do cinema mudo.
Zé anda em cima de gente, pisa nas costas das mulheres, que formam uma espécie de ponte. Também é visto em um cômodo estranho, dentro de uma caixa funerária, cercado de velas. Em torno dele há gente mascarada, outras acorrentadas, ao fundo se ouvem lamúrias, pessoas em prantos, mulheres gritando. Também aparece gente seminua, homens empurram mulheres, para Zé dar tapas nelas.
O discurso que o vilão profere nos minutos finais entra em contradição com toda forma de manifestação ligada as mulheres como alvo de adulação, aqui elas são apenas instrumentos do poder dos homens.
No final ainda o doutor Sérgio não injetou LSD, só água destilada. A ideia era mostrar que as pessoas caem em atos e pensamentos sádicos por que guardam isso dentro de si, basicamente a maldade habita o homem, pode ser potencializada por eventos externos, mas esse podem ser apenas efeitos de placebo.
O mediador, depois que acaba a gravação pergunta da onde vem a inspiração para as histórias de Mojica, ele diz que onde acaba o trabalho do indagador e jornalista, começa o dele, cineasta, ou seja, ele retira as ideias da realidade e do medo.
O Despertar da Besta não deveria ser proibido por motivos óbvios, mas nem se levar em consideração os argumentos dos militares, não deveria proibir nada. Basicamente eles não entenderam nada e intuíram que algo estava errado, mas não viram a mesma subversão em um O Bandido da Luz Vermelha, por exemplo.
Ritual dos Sádicos é a tentativa de José Mojica Marins de se validar junto aos cineastas que já louvavam sua carreira e arte. Ele não precisava disso, mas ainda assim há uma boa apresentação de formato diferente, ele mostra assim que ele consegue fazer não só um cinema popular, mas também algo mais "artístico" e experimental.
Comente pelo Facebook
Comentários
Comente pelo Facebook
Comentários