A Encarnação do Demônio : O tardio e pontual fim da trilogia Zé do Caixão

A Encarnação do Demônio : O tardio e pontual fim da trilogia Zé do CaixãoA Encarnação do Demônio é um filme de horror que foi protelado e adiado por décadas idealizado e protagonizado por José Mojica Marins. Parte três da trilogia de Zé do Caixão, que é o principal personagem da carreira de Mojica, esse foi o último filme do diretor e foi um esforço coletivo de vários fãs do cineasta, que se juntaram em uma espécie de força tarefa, para tornar real o filme que durante muito tempo, era apenas uma lenda urbana.

Lançado em 2008, a história parte da experiência de Josefel Zanatas, sujeito que viveu seus últimos anos entre o manicômio e a cadeia, a contragosto e temor de toda a sociedade, ele é finalmente solto, saindo assim decidido a encontrar a mulher certa para gerar seu herdeiro.

O longa teve direção de José Mojica Marins e contou com uma senhora equipe por trás dele. O roteiro ficou a cargo de Marins e Dennison Ramalho, realizador que também foi o assistente de diretor, quase como um codiretor. Tem como produtores Caio Gullane, Fabiano Gullane, Débora Ivanov e Paulo Sacramento.

A música original foi assinada por André Abujamra e Marcio Nigro. A cinematografia é de José Roberto Eliezer, Paulo Sacramento editou, o elenco foi escolhido por Alessandra Tosi. Cassio Amarante foi o designer de produção e diretor de arte.

O filme foi selecionado para ser exibido no Festival de Veneza, em 2008, numa mostra chamada Midnight Movies.

A estreia no Brasil foi em 8 de agosto de 2008, em Portugal estreou em setembro no Lisbon International Horror Film Festival, na Espanha passou no Sitges Film Festival e na Argentina passou no Mar del Plata Film Festival.

Passou em diversos outros festivais como Thessaloniki International Film Festival na Grécia, no sueco Stockholm International Film Festival, em London FrightFest Film Festival, Buenos Aires International Festival of Independent Cinema, no Philadelphia International Film Festival, no finlandês Night Visions Film Festival, no belga Brussels International Fantastic Film Festival e no neerlandês Imagine Film Festival e no Los Angeles Film Festival.

No Canadá chegou ao Fantasia Film Festival, Toronto After Dark Film Festival, na França L'Étrange Festival e no Sainte Maxime International Horror Film Festival, na República Tcheca passou no Festival otrleho divaka.

O título original da obra é Encarnação do Demônio, mas pode ser encontrado com o artigo na frente, sendo assim A Encarnação do Demônio.

A Encarnação do Demônio : O tardio e pontual fim da trilogia Zé do Caixão

Nos países de língua inglesa é chamado de Embodiment of Evil ou Devil's Reincarnation. Em países de língua espanhola é Encarnación del demoniom na Polônia Wcielenie zła, na Rússia é Реинкарнация демона.

Diferente dos outros filmes da trilogia, esse não é interiorano. A história se passa em uma zona urbana, foi gravado em São Paulo. Os estúdios do filme são a Olhos de Cão Produções Cinematográficas e a Gullane. A One Eyed Films fez o comércio em boa parte do mundo nas mídias físicas enquanto a Gullane fez o trabalho pelos cinemas.

A distribuição ficou com a 20th Century Fox no Brasil, com a Anchor Bay Entertainment (UK) no Reino Unido no lançamento em DVD, a Synapse Films lançou ele em DVD nos Estados Unidos.

Mojica estava já bem idoso na época do filme. Aqui ele fecha a trilogia de Zé, iniciada em A Meia-Noite Levarei a sua Alma de 1964 e Esta Noite Encarnarei no Seu Cadáver de 67.

Depois desse, faria uma grande parceria com R.F. Lucchetti escrevendo com ele O Estranho Mundo de Zé do Caixão, Finis Hominis - O Fim do Homem, Exorcismo Negro etc. Além dos filmes que conduziu ele esteve em Éramos Irmãos de Renato Ferreira, O Diabo de Vila Velha de Armando de Miranda e Ody Fraga e O Cangaceiro Sem Deus de Oswaldo De Oliveira.

Dennison Ramalho tem nesse seu primeiro crédito de roteiro. É mais lembrado por ser diretor de cinema, com crédito nos curtas Nocturnu, Amor só de Mãe, Ninjas e por participação no antológico O ABC da Morte 2.

Trouxe a luz em 2018 o bom Morto Não Fala, filme de gênero, longa-metragem que foi bastante elogiado. Ele fez texto também das séries Supermax, Carcereiros e de Carcereiros: O Filme.

Caio Gullane fez Bicho de Sete Cabeças, O Ano em que meus pais saíram de Férias, Querô e O Magnata. Depois de 2008 ele esteve em Bingo: O Rei das Manhãs, o documentário Babenco: Alguém Tem que ouvir o coração e dizer parou e o seriado Os Irmãos Freitas.

Fabiano Gullane fez apenas esse. Debora Ivanov idem. Paulo Sacramento é mais conhecido por ser montador. Foi nesse e em Amarelo Manga, É Proibido Fumar, Riocorrente, O ABC da Morte 2 no segmento J e O Olho e a Faca.

O roteiro existe desde 1966. Mojica já havia praticamente desistido de fazer essa fita - termo que ele gostava de usar para se referir aos filmes.

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Foi Dennison Ramalho e Paulo Sacramento eram muito fãs do trabalho do diretor e convenceram ele a enfim terminar a história, preenchendo algumas lacunas, adaptando para uma nova cronologia, já que se passa nos anos 2000.

A abertura do filme já demonstra uma grande inventividade, já que varia entre uma sequência animada, com cenas reais de órgãos funcionando, entranhas, desenhos de gente deformada, com a narração de Marins, em uma construção de texto muito legal, sobre o sonho de Josefel em ter o seu sangue continuado.

Das trevas surge o oculto, o vento imperfeito gesta a maior criação, um ser que desconheça qualquer limite, apenas força, fulgor, ímpeto e desejo. A perfeição suprema em meio ao caos. Excesso que surge do completo vazio, para além do que qualquer dor ou loucura. Mais alto que Deus, mais baixo que Satã. Poderosa, indômita, impiedosa, lasciva e livre. É preciso gerar esta criança, forjá-la na continuidade de meu sangue.

A voz em off ocorre enquanto rolam os créditos iniciais, curiosamente sendo essa a primeira vez no cinema em que Zé do Caixão tem a voz de Mojica.

Marins fez a voz do personagem em programas de TV, como na apresentação do Cine Trash da rede Bandeirantes e no programa O Estranho Mundo de Zé do Caixão no Canal Brasil, nos filmes era até então dublado por Laercio Laurelli.

Nessa versão do roteiro, o mundo é todo coberto por sujeira. O lugar onde Zanatas está é um ambiente sujo, a casa para onde ele vai também, mas nesse trecho se nota uma sujeira também no pensamento daqueles que encarceram ele, que temem sua saída.

Américo, o chefe do presídio onde Zanatas está, grita, profere impropérios, xinga e fala muitos palavrões. O personagem é bem feito demais, interpretado pelo excelente Luís Melo

Entre xingamentos e injúrias, ele lamenta que o sistema jurídico do Brasil libere o homem e que permita que ele vá para a rua como um simples sujeito e não como o anormal e doente mental - como ele mesmo se proclama - mas antes que ele saia, pede que o sujeito não dê vazão a sua personalidade maléfica, o Zé do Caixão.

Antes de sair, Américo chama o agora livre personagem de Demônio.

Mojica estava bem, atua maravilhosamente e faz crer que esse é o mesmo personagem que ele vive quatro décadas antes. O seu personagem encontra Bruno, o fiel escudeiro, interpretado por Rui Resende e no caminho até o lugar onde ficarão, ele grita para o céu, falando que foram 40 anos de resistência.

Vocifera contra a cidade, antes de perceber que o lugar está tomado de drogados. A decadência física do velho combina com a decadência moral, já que ele verifica que as ruas estão cheias de crianças, algumas delas, se entorpecendo. Ele lamenta isso, visto que enxerga crianças como os seres mais puros.

Bruno leva Zé do Caixão para uma favela e a casa onde ficam é cheia de cômodos não usuais, não há quartos, em uma primeira vista mal se vê chance de ter banheiro, há só lugares que parecem cozinhas laboratórios ou lavanderias.

Claramente não é um lugar para viver, há caveiras, sujeira e caixões. Foram Bruno, há também um grupo de pessoas atrás dele.

Por algum motivo, ele tem seguidores, todas pessoas jovens, provavelmente mulheres e homens escolhidos por Bruno, para servir ao Mestre, como ele mesmo faz.

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À noite, Zé vaga pela casa, com uma expressão de medo, parece desnorteado, tal qual um homem senil. Considerando sua idade e o fato de ter passado quatro décadas encarcerado, não é de se admirar que ele pudesse ter caído sobre a insanidade.

Ele observa o caixão abrindo, da onde sai um homem com maquiagem cinza. Esse seria o espectro do Truncador, personagem do segundo filme que foi morto pelo vilão e que retorna como um zumbi.

Aqui se remonta ao final do segundo volume da trilogia, ao fim trágico de Zé, que mergulhava na lama, em uma espécie de areia movediça, que dragou ele.

Se repetem linhas de diálogo, inclusive o final censurado pelos militares, que obrigaram o sujeito a confessar acreditar em Deus. Sabiamente se cita isso para logo depois contradizer, já que Zanatas não só não morreu, como foi resgatado pelos populares.

Obviamente Mojica já estava velho e fora de forma demais para reinterpretar Zé do Caixão 40 anos antes.

Para o retorno e para o retcon se chamou um sósia americano, chamado Raymond Castile, que se parecia demais com ele jovem.

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A caracterização foi tão boa e ficou tão legal que Castile mesmo produziu, dirigiu e estrelou um curta cômico, chamado The Blind Date of Coffin Joe, em 2008, nos Estados Unidos.

Voltando a narrativa, a cena mistura elementos da obra de 1967 e novas tomadas, explicando como ele driblou a morte, como ele feriu os olhos de Miro personagem de Jece Valadão, que jovem, é feito por Fausto Maule.

Zé é enquadrado pelo "proceder" da quebrada onde mora. Sofre agressões verbais, é malquisto por quase todos os vizinhos, mas não se permite intimidar por quem quer que fosse. Zanatas ouve tudo, mas não se submete as falas dos seus vizinhos, até agride o sujeito que ousa falar alto com ele.

No meio dos figurantes se nota uma breve aparição do estudioso e biógrafo André Barcinski, o autor de Maldito: a vida e o cinema de José Mojica Marins, o Zé do Caixão e do breve documentário Maldito - O Estranho Mundo de José Mojica Marins lançado em 2001.

É bem engraçada a sequência, que é sucedida por uma perseguição policial extremamente caricata.

Quem comanda a patama e a ação é Osvaldo, o policial antes mostrado, que quase atropelou Zé assim que ele saiu da prisão. O sujeito comanda o esquadrão mortífero bizarro, que lembra demais a popular Rota, um batalhão de choque paulista bastante popular. Ele persegue criança, as trata como vagabundos, xinga e mata essas.

Ele é um personagem "tardio". Segundo o seu interprete Adriano Stuart, a justificativa para o nascimento dele foi funestro, já que Jece Valadão morreu antes de terminarem as filmagens.

Ele é como se fosse um substituto de Miro, irmão do mesmo, ainda assim se escolheu não descartar as cenas que o rei da cafajestagem gravou. O que deu para ficar no corte final, ficou.

Adriano Stuart veio de Cinderelo Trapalhão e As Aventuras de Mario Fofoca, ele é filho de Walter Stuart, ator que fez Álvaro em Exorcismo Negro.

Um dos homens da comunidade, Mario (Giulio Lopes) culpa Zé do Caixão pelas mortes das crianças, diz que ele tem parte com o diabo. É bizarro, por conta de a responsabilidade ser claramente das autoridades, cujo avatar é o péssimo policial interpretado pelo finado Stuart.

Talvez por isso, Zé do Caixão não tenha qualquer preocupação em negar a culpa, faz bravatas, é animado e voluntarioso. Mojica atua bem também nos momentos de diálogo. Ele parece ter decorado bem as próprias falas, conseguindo expressar de maneira clara suas linhas de diálogo, sem os vícios de linguagem que ele apresentava nas aparições televisivas diversas.

O personagem é atormentado por lembranças terríveis, ele vê coisas, enxerga sua antiga namorada, Teresinha (Guta Ruiz, creditada como espectro da personagem) a mesma que ele violentou e bateu, a mesma que se suicidou ela levanta como morta viva, tem pele putrefata, ela o beija, de maneira nojenta.

Um dos investigadores, Penna (Fábio Ferreira Dias), descobre que o homem que bateu em Osvaldo, foi Zanatas e comunica isso ao coronel Claudiomiro, de Valadão. A personalidade do milico é bastante caricata, muito bem representada pelo ator veterano. Ele é um homem violento, sexista, caolho, bravateiro e exagerado, provavelmente é uma referência aos militares que tanto perseguiram e censuraram Mojica ao longo de sua carreira.

Esse foi seu último papel e mesmo aparecendo brevemente, está bem demais.

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O coronel acha que Zé do Caixão morreu, pragueja, anuncia que vai vingar seu irmão, que foi humilhado por ele.

Como o protagonista quer desesperadamente um filho, há muitas mulheres que se dedicam a tentar receber a semente dele. Entre elas, há Elena, personagem de Nara Sakarê, também Maíra de Thaís Simi.

Há também uma doutora estudiosa do sangue, que acredita nas mesmas crenças que o vilão, no caso, a doutora Hilda, interpretada por Cleo de Paris. Mas quem realmente chama a atenção é a dupla de idosas feiticeiras, Lucrécia e Cabíria, feitas respectivamente por Débora Muniz e Helena Ignez.

Essas duas rompem com a condição de serem apenas belas mulheres servis ao intuito do coveiro. São elas verdadeiras opositoras, pessoas místicas e crédulas, que tentam avisar que o mundo sobrenatural quer que Zé preste contas por seus atos.

Elas falam que os guias impedirão ele de cumprir o seu desejo, dizem que podem ajudar a reverter esse destino, se ele quiser e se tiver fé, mas ele desdenha tanto do discurso delas, quanto de suas crenças.

Os diálogos são bem exagerados no geral, primam por uma teatralidade, parecem mesmo ser fruto do tempo dos dois primeiros tomos da saga. Até a apresentação de Hilda é assim.

Bruno a vê falando na televisão, ela que se diz cientista e que tem métodos estranhos, oriundos de uma crença pouca ortodoxa, uma vez que crê que o sangue tem as chaves da vida, até a possibilidade de fórmula da eternidade.

O momento em que Zé lida com ela é bem estranho, já que ele injeta uma seringa com um líquido estranho, faz ela ter uma viagem lisérgica, onde ela imagina que está comendo de sua própria carne. Se permite ficar nua, no devaneio, imagina comer carne de suas nádegas, vira parte do culto, até se oferece para ter com Zé

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Como é sabido, o coronel deseja vingança contra o homem que o cegou ao sair do pântano.

Ele é um sujeito católico, se assume idólatra até, tem várias imagens em sua mesa, confia nelas para obter proteção, mas nem a condição de "quase" corpo fechado garante a ele a proteção familiar, já que ele descobre que a advogada que tratou de libertar Josefel Zanatas foi sua própria esposa.

Cristina Aché faz Lucy Pontes e assim que ela é encontrada por seu marido ela passa a apanhar, tanto do esposo como dos homens subordinados a ele. É irreal e pitoresco demais.

Zé do Caixão segue tendo lembranças das mulheres do seu passado, pensa em Laura, se deparada com mais espectros, até vê uma delas com vísceras pelo chão, da onde saem animais nojentos, como aranhas.

Ele está perdendo a razão, fato que compromete a percepção do final, se aquilo pode ser real ou não.

O conjunto de personagens é todo muito estranho. Até mesmo um padre é mostrado como alguém negativo, praguejador e esquisito.

O sacerdote Eugênio é feito pelo veterano e eclético ator Milhem Cortaz, pratica autoflagelo, impõe a si choques, com um aparelho que lembra o que os militares usavam na época da Ditadura Militar. Tem tatuagens pelo corpo e é filho do médico Dr. Rodolfo, de Ilídio Martins, que morreu nas mãos do coveiro, no primeiro filme, A Meia Noite Levarei a Sua Alma.

O texto torna o filme em algo quase episódico, mostra sessões de algo que parece Umbanda ou Candomblé, no terreiro, com Elena incorporando uma pomba gira. Do lado e fora, Zé libera cães rottweiler, para atacar os policiais que agrediram Bruno, depois são mostradas sessões de tortura, onde os discípulos de Zé penduram os policiais em agulhas e em pedaços de metal suspensos.

Mojica se modernizou, faz referência ao torture porn, subgênero popular da época, como na saga Jogos Mortais ou O Albergue. No meio da ação ele até escalpela Lucy, a advogada que o libertou, ou seja, a personagem não conseguiria escapar do destino de sofrer, fosse pelo marido ou pelo cliente.

O padre aparece junto ao coronel, quer vingar seu pai e para isso quer juntar forças com o milico, com Claudiomiro matar o corpo, enquanto o sacerdote garantirá a maldição sobre a alma. Uma união que mataria o corpo e condenaria o espírito, Miro sendo alguém crédulo, abraça essa possibilidade, mas antes de agirem, o policial recebe uma caixa cheia de mãos, inclusive de Lucy.

Há cenas de sexo, onde o personagem sofre com uma cachoeira de sangue em cima de si. A sequência termina como ele mergulhando em uma poça rubra, que o faz atravessar até outro cenário, em momento que provavelmente é de sonho.

Então aparece o ator e dramaturgo José Celso Martinez Corrêa, o popular
Zé Celso, que faz o Mistificador, uma entidade que pode ou não ser real, homem que leva Zé até um cenário espiritual, uma espécie de dimensão sobrenatural de cor vermelha como o inferno, que mais parece o interior do corpo humano.

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Zé Celso é poético, fala sobre o cerne de tudo, sobre o centro entre verdade e mentira, o bem e o mal, entre o caminho do tudo e a morada do nada.

Segundo o Mistificador o protagonista precisa compreender o início para penetrar o domínio do saber. Afirma que não haverá volta, esqueça o passado, só resta o porvir e o desconhecido.

O visual do dramaturgo se assemelha a um profeta do pós-Apocalipse, que passeia por um deserto cheio de canibais, com um visual que mistura o western El Topo de Alejanfro Jodorowsky com Mad Max e Saló:120 Dias de Gomorra.

O terço final mostra ainda mais torturas, especialmente com mulheres, fato que aliás não é recomendável pessoas sensíveis. Mojica é atacado frequentemente por conta do conteúdo misógino de suas obras.

É inegável que Zé do Caixão é alguém odioso e odiento, mas há também de salientar que ele é um vilão misantrópico, que odeia tudo e todos e seria também carregado dos piores preconceitos possível.

Zé do Caixão não é José Mojica e vice versa.

Se havia qualquer dúvida sobre a vilania do personagem é zerada, já que na busca por uma mulher digna de receber a semente dele, há mortes, mutilações, muita crueldade e sadismo, com direito ao uso de animais asquerosos, como ratos e baratas.

O ato final se dá em um parque de diversões, Zé do Caixão atrai o capitão, depois que ele percebe que seu irmão morreu. Em um trem fantasma, chamado Castelo dos Horrores, ele brinca com Osvaldo, assusta o milico com bonecos inofensivos, mas não escapa das balas.

Cai dizendo que imagens não morrem, curiosamente faz isso se tornando uma, ao passo que desdenha dos santos católicos que a dupla de irmãos cultua, enquanto os espectros das crianças distraem Osvaldo. Pode ser tudo ilusão, claro, mas aparentemente o sobrenatural existe e não condena só Zé.

O padre trata de enfrentar o coveiro, diz que quem ele matou não valia uma lágrima sequer, Zé responde com um gracejo em tom de piada: "que seja a trindade contra os tridentes".

A luta é meio ridícula, mas sabiamente é breve. Padre roga uma praga, tirado de um livro de instruções, que mira a função de rogar pragas espirituais

Que a alma do maldito sob a cruz siga o rumo da peste e da agonia, que teu espírito se cubra de dor, desgraça, vergonha, pústulas e tumores. Maldito no campo, maldito na cidade, maldito ao entrares e maldito ao saíres, tua linhagem se existir, que seja perseguida, fraca e desaventurada. Para o teu cadáver a terra será de ferro e tua carne amarga até para os vermes. Tua sombra profana errará eternamente sobre a terra, ao lado dos desenganados.

O padre fere o personagem mortalmente, o xinga de um palavrão e o larga com uma cruz encravada no peito, imitando a morte de um dos padres de A Profecia.

Em sua fuga, parece que é perturbado por uma sombra, que tem a mesma silhueta de capa e cartola do homem que acabou de perecer.

Condenado, morto, enfim o homem consegue perpetuar seu sangue, finalmente tendo gozo em suas mulheres, depois da praga do padre, que promete que a linhagem se existir, seria fraca e desaventurada, além de vários adjetivos péssimos, como na citação que destacamos.

Ainda assim Zé do Caixão se propaga, justamente no fim, com mulheres subindo em cima do seu cadáver, depois do seu empalamento por uma estaca em formato de cruz.

Esse final pode ser apenas uma ilusão, um devaneio último dele que estava quase morto, pode ser apenas um vislumbre de seus últimos instantes ou apenas um momento que brinca com as sensações do público e com a torcida que naturalmente o espectador tem pela sobrevivência do odiento Zé do Caixão e por seguir o destino que ele promete que ocorrerá desde 1964.

Ele reage ao estímulo da transa, toca os seios e a barriga de Maíra e dali sai não um, mas um exército de filhos, já que outras mulheres também engravidaram. Os discipulados dele se tornaram como um culto de mulheres, as bruxas e profetizas de um Apocalipse demoníaco, do homem sem fé, que acreditava só em si e que tinha tanta confiança em si, que criou ele um culto.

Na parte de baixo da lápide, subscrito após o nome Josefel Zanatas está grafado "Ex Digito Gigas", latim para Pelo dedo (se conhece) o gigante. A pessoa superior se manifesta nas menores ações.

Essa é uma expressão empregada em obras de coleção, que foram doadas por alguém, aqui existe para garantir que o personagem, agora morto, entra para a história, para a eternidade, com a promessa de que sua prole seguirá, mesmo diante da praga próximo do fim da fita.

A Encarnação do Demônio é sensacional, violento, divertido e maluco. É um ótimo fechamento não só para o personagem, como para a carreira de José Mojica Marins, que enfim pôde descansar e ver sua obra principal tendo um desfecho digno e louvável, louvando assim a carreira de seu realizador, em um último e digno suspiro da parte dele.

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