Crítica: Garota Exemplar

gonegirlposterEm seu longa anterior, David Fincher tirava camadas de uma personagem complexa, repleta de nuances e psicologicamente ferida. Agora, em Garota Exemplar, o diretor faz algo semelhante, mas com um nível de aprofundamento maior e que se estende não apenas a uma protagonista, mas a uma relação matrimonial. O que está por trás de um casamento perfeito entre uma "mulher incrível" e um "homem de bem"?

Essa análise, em tempos atuais, quando se evoca princípios e valores para classificar uma "família tradicional" é tipicamente "Fincheriana", pela abordagem niilista a que recorre. É um tema perfeito para o cineasta exercitar suas crenças, ou melhor, a falta delas. O roteiro de Gillian Flynn, baseado em seu próprio livro, é muito propício para isso ao abrir as portas da residência do casal Nick e Amy Dunne para o público e escancarar o que acontece por trás das aparências.

Na trama, Nick (Ben Affleck) chega em casa no aniversário de 5 anos de seu casamento e constata que Amy (Rosamund Pike), sua esposa, desapareceu. Conforme a história se desenrola, intercalada por relatos do passado narrados pela garota, surge a suspeita de que o marido a matou e tudo não passa de um plano dele para se livrar de um relacionamento problemático. Mas, nesta trama, o grande mote é que as aparências enganam.

Fincher constrói sua narrativa levando em conta a farsa do casal perfeito em cada detalhe. Em determinada cena, o personagem de Affleck está na cozinha e o relógio de parede marca 10:10h, posição padrão de ponteiros para anúncios publicitários destes objetos. A casa de subúrbio com bela fachada, a respeitável profissão de professor universitário, a mulher que vive da fama de uma personagem infantil cuja infância era o completo oposto da sua. Até mesmo a brilhante trilha sonora de Trent Reznor e Atticus Ross vai se desconstruindo aos poucos. Começa como um barulhinho confortável, quase zen, e se torna um incômodo zumbido, permeado por notas de piano, distorções de sintetizador, como se fosse se deteriorando conforme o espectador descobre o que está por trás das cortinas.

Contar mais sobre a trama seria um desserviço, pelas surpresas que o roteiro prepara. Basta saber que o elenco está afiadíssimo, com Ben Affleck aproveitando ao máximo seu sorriso de bom moço, que também pode ser visto como um sinal de insegurança de um homem acomodado. Nick é um típico protagonista de Hitchcock, um sujeito que se encontra em uma situação inesperada. Aliás, não é a primeira vez que Fincher flerta com o Mestre do Suspense, com O Quarto do Pânico sendo a referência mais óbvia. Pike, no entanto, é o grande destaque. Amy é de uma complexidade absurda e a atriz consegue mostrar isso em todas as suas aparições, principalmente a partir da segunda metade do longa. Não é exagero dizer que qualquer uma de suas cenas pode servir de "fita para o Oscar", ou seja, o momento do filme escolhido para garantir uma indicação entre os votantes da Academia.

Garota Exemplar se torna fruto de seu tempo também ao usar como estopim para o declínio do casamento de seus protagonistas, a recessão recente nos EUA. Até que ponto pode-se manter o amor ideal sem o conforto de uma vida financeiramente estável? Ao abrir essa discussão, Flynn e Fincher aproveitam para comentar a existência deste sentimento tão romantizado pelo cinema. Será que é real ou apenas o desejo de se ter uma companhia que transmita segurança financeira?

Muitos temas sendo discutidos? Que tal aproveitar para fazer um ácido comentário sobre o circo criado pela mídia acerca de uma provável tragédia? Sim, o roteiro encontra espaço até para isso sem se tornar cansativo ou inchado. E vai além ao acrescentar o público à equação. A massa parece estar sempre suscetível à exploração da violência, concordando com âncoras sensacionalistas que ao invés de noticiarem um fato se acham no direito de julgar os envolvidos baseando-se apenas em conceitos ultrapassados. Chega a ser desolador ver uma mulher comentando que Amy "mereceu" a suposta morte por não ter desempenhado seu "papel de esposa".

O longa é montado de forma elegante por Kirk Baxter, colaborador recorrente do diretor, que trabalha dois pontos de vista durante a trama, sem nunca deixar o espectador confuso e ainda tem tempo de estabelecer raccords fluidos (como a transição entre um beijo no passado para uma coleta de DNA no presente). Baxter também usa diálogos para dar deixas entre cenas, técnica que, bem aplicada, torna ainda mais dinâmica a narrativa. Com uma duração de 150 minutos, é fundamental o espectador não ter a atenção desviada.

Com a ambição de quebrar máscaras e analisar comportamentos sociais, o maior trunfo de Garota Exemplar (pelo menos em sua versão fílmica) talvez seja o de não julgar seus protagonistas, principalmente pela natureza de seu desfecho, que aliás é auxiliado pela trilha em uma repetição do tema que abre a projeção. Fincher sabe que despertará inúmeras reações de seu público, seja pela discordância ou pela incômoda semelhança com aspectos de suas próprias vidas. O julgamento deve vir externamente, quem sabe até como forma de autoavaliação, e não imposto dentro de uma obra cinematográfica.

Alexandre Luiz

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2 comments

  1. Avatar
    Carla Machado 5 outubro, 2014 at 23:23 Responder

    Eu adorei o filme. Amei Ben Affleck no filme.
    Tudo me surpreendeu : desde as duas horas e meias de filme ao final.
    Recomendo a todos.

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