No dia 8 de março é comemorado o Dia Internacional da Mulher, e para tal, decidimos resenhar algumas produções que são capitaneadas por mulheres ao longo dos próximos dias. Para a estreia desse ensejo, analisamos O Convite, do original The Invitation, que é um drama com pitadas de horror conduzido pela diretora Karyn Kusama, famosa por conduzir obras cujo subtexto é sempre provocador, quando não, feminista.
O longa se concentra em uma reunião de antigos amigos que tem potencial para ser incômoda e explosiva, uma vez que entre esses, há pessoas que tiveram relações amorosas no passado, além de grandes eventos chocantes e traumáticos do passado, que vem à tona exatamente por reunir esses amigos no lugar onde será o jantar.
Produzido pelo pequeno estúdio Gamechanger Films, o roteiro do longa é escrito por uma dupla, Phil Hay, que vem a ser o esposo da diretora, além de Matt Manfredi, É produzido pela dupla e também por Martha Griffin e Nick Spicer e tem um orçamento bem pequeno, se baseando em praticamente um cenário, onde usa e abusa de seu elenco.
A narrativa começa pela perspectiva de Will, personagem de Logan Marshall-Green, que viaja junto com sua namorada Kira (Emayatzy Corinealdi) para uma confraternização na casa onde ele mesmo morava. O tal jantar é organizado por Eden (Tammy Blanchard) sua ex-esposa, que agora, tem um novo marido, o produtor de cinema David (Michiel Huisman).
Will é apresentado como um sujeito melancólico, calado e triste.
Supostamente ele não era assim, mas a força das circunstâncias o transformou em uma pessoa introspectiva e que olha para si mesmo o tempo todo. Os motivos para tal sentimentalismo são explicitados no desenrolar dos fatos daquela fatídica noite.
Esse é um filme com muitas reviravoltas, e falaremos tentando dar o mínimo de spoilers, mas ao final do texto, não haverá como. Leia por sua conta ou aprecie depois de ver.
Antes mesmo de chegar a casa no morro - que fica em Los Angeles, em um bairro nobre próximo de Hollywood - ocorre um problema, com os dois atropelando um coiote na estrada.
Will então decide dar fim a vida do animal, aplicando nele um golpe de misericórdia, que mais tarde, conversaria com a experiência dele e de todos os outros.
Esse é um filme normalmente recomendado como um terror de relacionamentos. Isso se dá não só graças ao confinamento da trama, já que se passa praticamente no mesmo cômodo confinado, mas também - e principalmente - por lidar com conflitos sentimentais entre gente que se amou ou ainda se ama, fora a inserção de pessoas e elementos que não estavam lá antes, e que não eram convidativos para ninguém em absoluto.
Ao chegar na casa, e cumprimentar todos, inclusive os donos, Will observa uma bela mulher, que está em outro cômodo, nua da cintura para baixo. Vem a ser Sadie, personagem de Lindsay Burdge, que é mais explorada um pouco depois na trama.
A reunião de amigos é cercada de piadas, constrangimentos e lavagem de roupa suja, mas o sentimento mais predominante é o de receio que Will provoque algum mal, seja ao grupo ou a si mesmo, já que ele é encarado como alguém autodestrutivo até por seus amigos.
O tempo mudou a postura de Eden, que parece ser bem mais otimista que antes. Uma possibilidade levantada nesse início, é que a distância de Will também parece ter colaborado para isso, com uma ausência que pode ter feito bem a ela, afinal, estar com ele trazia lembranças do que eles perderam, fora as consequentes brigas de casais, que já ocorrem normalmente e podem se agravar depois de uma grande perda.
De qualquer forma, a postura dela é suspeita, com um discurso adocicado, que repete platitudes, cheio de frases de feitas. Ela diz que se livrou da "dor inútil", e tem junto a ela um discurso em uníssono, com seu novo marido e com os novos amigos, apresentados aos outros nesse ponto da história.
Ela está mais bela, usa um vestido branco que delineia bem as curvas de seu corpo, e ajuda a exalar dela essa posição de pessoa tão otimista que extrapola, e se torna uma postura digna de reprimenda, como popularmente se fala nas redes sociais atualmente, se torna uma positividade tóxica.
Por mais que ela não queira transparecer, a mulher não se torna imune a emoções extremas, tanto que dá um tapa em Ben (Jay Larson), o amigo piadista, por conta de uma referência/piada meio suja que ele conta, que até poderia soar inapropriada, mas que não era tão ofensiva ao ponto de merecer um golpe no rosto.
David e Eden fazem parte de um culto que renega sentimentos como dor, amargor, sofrimento pelo passado etc, e junto deles há também a já citada Sadie e o calado e misterioso Pruitt, de John Carroll Lynch.
Depois de tomar um vinho caríssimo da coleção do dono da casa, o grupo passa a confraternizar, conversar, assistem a um vídeo institucional de uma religião/seita que prega que a morte é um caminho válido e caem na besteira de fazer um drinking game bizarro, que claramente não combina com a maturidade de pessoas de meia idade como todos são.
Will se sente cada vez mais incomodado, não só pelo reencontro com amigos que ele não vê há mais de dois anos, mas também pela negação do óbvio, já que durante todo o filme, as lembranças vêm até ele, enquanto todos negam que algo errado aconteceu e está acontecendo.
Enquanto ele é invadido por cenas com uma criança, no caso seu filho que teve um fim trágico, enquanto ele confunde realidade com as lembranças, todos tentam celebrar e fingir que está tudo certo, e que esse discurso de conformidade de Eden e David é o mais correto.
Sublimar memórias não é algo que ele ache bom. Diante da negação dessa dor, a questão do culto estranho se torna apenas mais um ingrediente esquisito, e que aparentemente, só Will se incomoda de fato.
Entre as possibilidades plausíveis, ele pode estar mais sensível que os outros graças ao que lembra, se tornando mais propenso a estourar diante das estranhas propostas dessa religiosidade forçada, ou ele está afetado e por isso, se torna refém da paranoia, ou finalmente ele está correto, e o público é convidado a partilhar com ele essa última opção.
Uma possibilidade válida e muito viva é que de todas que estão ali estão incomodados, mas não querem falar nada em respeito ao casal, sobretudo, por conta de Eden, que está tentando superar o passado.
Em alguns pontos o roteiro lembra momentos tragicômicos reais, como convites de amigos de longa data para entrar em esquemas financeiros criminosos, os populares esquemas de pirâmide, e como nessas reuniões, é chato para o convidado falar o que pensa, manifestar incômodo ou descontentamento, imagina quando o caso é de luto mal digerido.
Fato é que o texto de Hay e Manfredi é uma crítica aos ricaços entediados, que abraçam crenças religiosas sem fundamento, sejam elas ligadas a suicídio assistido, como essa ou outros sectos religiosos e seitas já famosas.
A cientologia acaba sendo uma referência meio óbvia, graças a natureza do antigo trabalho de David como produtor de cinema e por eles morarem numa área nobre, mas a comparação e alegoria tem mais a ver com seitas mais indiscutivelmente violentas, lembrando até a Família Manson.
A direção é bastante discreta, até por conta do texto se basear no nonsense e nas bizarrices que o acaso traz aquela estranha reunião, como não há tanto arrojo na forma de filmar, a sensação de naturalidade prevalece até o momento derradeiro, onde a entropia invade o drama.
Desse modo, Kusama consegue fazer uma obra cuja atmosfera é de estranhamento, mesmo que o seu trabalho enquanto cineasta seja absolutamente conservador.
Curiosamente, a dupla de roteiristas escreveram juntos Æon Flux (2005) da própria Kusama, a comédia R.I.P.D. - Agentes do Além (2013) e o remake de Fúria de Titãs, três produções diversas, com elementos de ação e bem diferentes dessa, sem qualquer subtexto ou discussão que meramente lembre os elementos vistos aqui.
Entre seus temas mais espinhosas, há a exposição de Eden como uma viciada, uma adicta, que toma muitos remédios, fenobarbital, que se usados em excesso, podem propor perigo.
Curiosamente, David é ex-viciado em cocaína, mas mantém droga em casa, a um passo de ter uma recaída, mas não tropeça nisso em momento nenhum. Ele parece ter uma certeza e uma resolução que não é compartilhado pela mulher, fato que o coloca na frente dela nesse processo de conversão e convencimento.
A condução discreta serve ao intuito do longa, que é o de supostamente vender um discurso, vender uma alternativa. Até há quem fale abertamente sobre o incomodo dos convidados, no caso Claire (Marieh Delfino), resultando em uma fuga, em uma saída antes da reunião acabar.
Esse segmento gera discussões entre os fãs do filme, não ficando claro se ela conseguiu sair de lá bem, ou se Pruitt fez alguma mal a Claire, assim como faria a cada um dos que ficaram na casa.
O brilho maior da produção mora na atuação de Marshall-Green. Seu personagem é alguém triste e traumatizado e não é preciso dizer isso com todas as letras, afinal tanto a sua postura quanto a montagem do filme permitem ao público perceber o incômodo e a dificuldade de seguir em frente que o personagem carrega.
Além dele, a participação de Blanchard é ótima. Ela tem uma química inegável com o interprete de seu ex-marido (quase sem faíscas no reencontro deles), também é ótima, e de maneira bem diversa de Green, já que se apresenta como uma mulher que parece segurar um mundo de sentimentos em seu semblante. O tempo inteiro ela parece estar segurando o choro, e parece estar dopada. Já Will lembra alguém que ou está entorpecido ou é o único lúcido, o detentor da verdade absoluta.
Corinealdi também faz bem seu papel de namorada super compreensiva. Certamente Will só está em condições de se dizer minimamente bem graças a intervenção de Kira, que é das pessoas mais bem resolvidas e compreensivas possível. Sua capacidade de entender as posturas de todos desafia os limites da realidade, caso fosse adepta do catolicismo certamente poderia ser canonizada, de tão boa que é.
O filme em alguns pontos se arrasta, carece de dinamismo e ritmo, claramente guarda forças e revelações para o final. Passados mais de uma hora, finalmente o que era preparado acontece, uma série de mortes de diversos tipos, com envenenamentos, pancadas na cabeça, golpes de arma branca e tiros.
Vira uma perseguição e uma promessa de que todos que perecem, vão se encontrar em algum lugar, possivelmente no além.
O golpe de misericórdia no acidente inicial, com o coiote que Will atropelado é a largada para essa crença, o primeiro ato que ajudaria a justificar todo o número homicida e suicidado culto. A desculpa é a de trazer alívio para todos que sofriam, para todos que faziam parte do estranho credo, para todas as casas que tinham lanternas vermelhas na frente de suas casas.
O Convite mira ser perturbador e consegue isso, sobretudo graças as belíssimas atuações, suas rimas visuais. Ele tropeça em alguns pontos, especialmente por ter uma grande ambição em seus próprios subtextos. Acaba atirando para muitos lados, mas em seu final, retorna aos trilhos, com uma cena pré-créditos niilista e triste, que abre a possibilidade de vitória por parte da seita.
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