Jogos Mortais 2 é uma produção curiosa por vários motivos. Lançado em 2005, é a continuação direta de um filme que sequer era para sair no cinema, já que o plano inicial para Jogos Mortais, era ser uma obra para video apenas.
O longa segue explorando a mitologia em torno do assassino serial em estado terminal chamado John Kramer, e segue com parte da formula de sucesso do capítulo original.
O longa se chama SAW II nos Estados Unidos, segue como uma produção de baixo orçamento, mas partiu de uma gênese, já que "perdeu" o seu cineasta. James Wan estava fazendo Gritos Mortais, pela mesma Twisted Pictures junto a Universal, por isso, não conseguiu conduzir esse.
A cadeira de diretor foi então ocupada por Darren Lynn Bousman, cineasta iniciante, que vinha de experiências apenas com curtas metragens. Esse seria seu primeiro filme de maior duração. A história por trás de sua escolha é por si só interessante.
Bousman havia escrito um roteiro, chamado The Desperate e havia nele elementos de valorização de violência e tortura física, continha então muitas semelhanças com o grosso da ideia central de James Wan e Leigh Whannell.
Quando Jogos Mortais saiu ele percebeu grandes coincidências entre ambos os scripts e como as datas de registro conflitavam, a Twisted Pictures se antecipou a possíveis problemas judiciais, convidando Bousman a deixar adaptar The Desperate para ser o novo episódio de Jogos Mortais. Whannell foi chamado para polir o roteiro, para que fizesse sentido dentro da mitologia de Jigsaw e seus jogos, tanto que o texto é assinado pelos dois.
Jogos Mortais 2 é uma produção entre Canadá e Estados Unidos, sendo filmado inteiro em Ontario-Toronto, rodado em 25 dias, todo no mesmo prédio.
Teve o mesmo trio de produtores originais: Gregg Hoffman, Oren Koules e Mark Burg, e possui produção executiva de Wan, Whannell, Stacey Testro, Peter Block e Jason Constantine.
A história segue a partir dos últimos momentos de Jogos Mortais, se valendo mais uma vez da temática policial como norte, temperando a trama com armadilhas de torturas elaboradas.
Dessa vez o jogo se pauta em uma casa repleta de câmeras, com oito pessoas dentro. Emula assim a condição de um reality show, fato que era uma moda na época.
A ideia era investir na mitologia em torno do personagem de Tobin Bell, mostrando a sua humanidade, demarcando bem as diferenças entre o assassino Jigsaw e sua contraparte "humana", John Kramer.
Entre os problemas que a produção teve, um envolvia o material de divulgação. Os cartazes publicitários do filme tiveram que ser recolhidos por ordem da MPAA -Motion Picture Association, associação comercial que representa os cinco maiores estúdios de cinema de Hollywood.
O motivo era curioso, já que os dois dedos decepados que formavam o "II" não atendiam às diretrizes para publicidade de filmes. Novos pôsteres foram confeccionados, com tom mais escuros, para "esconder" que eram dedos humanos.
O longa foi bem de bilheteria e foi um sucesso ainda maior no lançamento de home video. Na primeira semana vendeu mais de 3 milhões de unidades, tornando-se o DVD mais vendido da Lionsgate.
Dessa vez o protagonista policial é Eric Matthews, personagem de Donnie Wahlberg, que investiga um dos casos de Kramer, com a tal casa colocada na sinopse.
A partir daqui falaremos sobre fatos e segredos da narrativa. Desse modo avisamos que a análise vai conter spoilers.
Ainda que o grosso da narrativa se passe em um ambiente só, a história começa em uma armadilha fora da casa, com uma única vítima.
O personagem que aparece é um informante, chamado Michael (Noam Jenkins), que tem em seu pescoço um mecanismo que lembra uma máscara carnívora, com espinhos no interior dela. A chave para ela está escondida em seu corpo.
Esse trecho parece gratuito, uma intervenção desnecessária, no entanto, há uma forte ligação com o resto da trama, já que Michael vendia informações a Eric.
O detetive é chamado a cena do crime por sua antiga parceira, a especialista em Jigsaw, Kerry, interpretada novamente por Dina Meyer.
Kerry e Eric eram muito próximos e ela tem uma grande preocupação com ele, primeiro por conta do nome dele estar escrito na cena do crime, segundo por mera observação, já que o sujeito abandonou o posto de policial, se tornou um burocrata e lida com uma grave crise conjugal, que o faz se afastar de seu filho Daniel, personagem de Erik Knudsen.
Kerry insiste para que seu amigo ajude nas investigações sobre Jigsaw. Mesmo sem querer muito, ele aceita a proposta, fazendo parte da força tarefa que vai atrás de John Kramer em seu esconderijo, ainda sem saber do envolvimento que seu familiar tem com o caso.
Bousman dirige mal as sequências da ação policial. Essas perdem importância, por serem registradas de maneira confusa, com muitos cortes e variações entre tomadas diferentes. Kevin Greutert edita esse com ainda mais liberdade do que tinha com Wan.
No entanto, Bousman acerta ao permitir que o trabalho de David Hackl no design de produção seja tão bem mostrado. Hackl levou três semanas para construir 27 cenários, reuniu eles em um espaço curto e fez cada um deles parecer bem maior do que realmente era. Sente-se profundidade ao observar eles.
A arquitetura do esconderijo de John e a casa onde os oito estranhos são colocados são grandiosos, dão uma dimensão maior a obra. Se o primeiro filme precisou ser minimalista, não é o caso desse.
Se nota um trabalho hercúleo e acertado até em simples detalhes, como o design de um cofre que contém parte da solução que os vitimados procuram.
As armadilhas seguem criativas, algumas até funcionavam de verdade. A que é vista logo no início da casa, presa a porta - conhecida como Venus Flytrap - poderia realmente disparar a arma com a chave virando. Já as lâminas de Razor Box poderiam cortar alguém, caso se fossem feitas com metal - eram de plástico, obviamente.
A equipe por trás das câmeras foi quase toda repetida, fato que ajudou que o visual do longa tivesse continuidade com o que foi proposto em 2004. Segue aqui o mesmo cinematografo David A. Armstrong, o montador já citado, além do compositor, que segue sendo Charlie Clouser.
O roteiro não é nenhum primor, mas guarda boas surpresas, especialmente pela presença da única sobrevivente dos jogos de Kramer estar na casa. Amanda desperta, interpretada novamente por Shawnee Smith.
Ela serve para explicar aos estranhos como é a mecânica do jogo e como funciona a mentalidade de Jigsaw.
Smith estava grávida durante as filmagens, mas manteve isso em segredo de todos, incluindo o diretor e os produtores. Bousman só soube que ela estava assim durante as filmagens, quando almoçou com a equipe de produção, onde a atriz assumiu sua condição.
Já era tarde demais para substitui-la, então seguiram, mesmo sendo perigoso filmar com uma gestante.
Esse roteiro é repleto de flashbacks, aspecto esse que seria marca da franquia. Até aqui eles eram breves. Há também algumas transições bem estilosas, da casa para os monitores observados por Eric e os membros do esquadrão de Kerry. Quem assiste hoje pode achar isso brega, no entanto é bem melhor que as transições em fade in e fade out que começaram a ocorrer a partir de Jogos Mortais 3.
Apesar de Dina Meyer não ter um papel muito desenvolvido no longa de Wan, aqui que ela brilha consideravelmente, sendo esse o capítulo em que ela tem participação mais ativa e por mais tempo.
Ela ganha importância e liderança, certamente poderia ser melhor aproveitada ao longo das sequências, já que é carismática, capturando a atenção do espectador sempre que aparece.
Ela opta por seguir a investigação com John solto, mantém ele sob vigia, atende as exigências do assassino para tentar encontrar o filho perdido do amigo, já que o menino é uma das oito pessoas presas na casa.
Faz isso depois de conversar com um subalterno, o agente Rigg (Lyric Bent), que se compadece de Eric graças ao fato dele ter sua família a mercê do assassino. Ela faz parte de uma ideia de continuidade que se tornaria prática comum dentro da franquia.
Em um filme apresenta um personagem coadjuvante, que pode ter maior importância nos capítulos posteriores. Isso aconteceu também com Amanda, que retorna de maneira diferente.
Young retoma a condição de sobrevivente em um ciclo de morte, provavelmente graças ao fato de ter recaído nos sinais suicidas, voltando a se cortar. Ao menos, é o que ela vende ao público. A moça é - de novo, supostamente - uma das "contaminadas" na casa, que tem pressa em achar o antídoto para a doença que o vilão impôs aos oito jogadores que lá estão.
Kramer também repete o papel em uma situação diferente. Ele está bem, acordado e desperto. Em seus diálogos, renega o nome Jigsaw, diz que é um termo que a imprensa deu.
Reforça a ideia de que o corte que ele faz no corpo de suas vítimas é um símbolo, de que aquele alvo tinha algo faltando.
Ele é o centro das atenções, tudo gira em torno dele, e Bell está desempenhando o papel de maneira inspirada. Ele é engraçado, carismático, tão convincente que chega a ser sedutor em boa parte dos momentos, mesmo sendo alguém que está a beira de morrer, em estado terminal.
Um dos problemas do filme é a sua montagem. A edição estende demais vários dos trechos. Acaba assim fazendo perder tensão na sequência. Isso causa confusão, atrapalha a apreciação do filme.
Ao longo da franquia as cenas das armadilhas eram mais grotescas do que assustadoras. No primeiro filme essa não era a tônica e aqui se sobe um degrau, tendo um bom acréscimo de violência se comparado com a versão de James Wan.
No entanto o impacto de boa parte dessas cenas é diminuído, especialmente quando se estende demais um momento de dor. Quando a câmera varia entre os jogadores e John deveria ser um momento reflexivo, com grande significado, mas isso se perde, já que tudo é mostrada de maneira mais videoclíptica e menos dicotômica.
Não se carrega importância quase nenhuma nos trechos de tortura, em muitos pontos, parece ser apenas violência gratuita.
Isso influi até em momentos pontuais, como a tentativa de suicídio fracassada de Kramer e os cortes que Amanda faz em si mesmo. Há tantos recortes e variações de cena, que fica difícil compreender o que ocorre em tela.
A trama também recai sobre muitas teimosias, como a de dar importância demasiada ao personagem de Xavier (Franky G). Havia dentro da casa alguns homens e mulheres bem menos estúpidos e com maior chance de gerar interesse no público, no entanto, ele vira o centro das atenções graças a sua brutalidade burra.
Quando ele está no centro das atenções, o roteiro perde qualidade, uma vez que o texto se empobrece. Não é incomum perceber o texto caindo de qualidade junto a ele, é como se o personagem arrastasse para baixo a qualidade dramática apresentada.
Há um cuidado visual de espalhar pela casa bilhetes, que contém o nome dos sobreviventes. Seria um aspecto legal, mas faz pouco sentido, já que eles encontram só os que tem o nome dos que estavam vivos até ali. Não havia como garantir que os que não tem papel morreriam antes. Esse é um furo que seria fácil de resolver, espalhando papéis com os nomes de todos, já que os sobreviventes exploraram todos os cantos da casa.
Há um momento genuinamente tenso no filme, que é a armadilha do buraco que cabia ao destino de Xavier. O lugar foi popularmente chamado por fãs de piscina de agulhas e é assustador, o pico mais alto do longa, com o perdão do trocadilho.
Chama a atenção a maneira como o personagem de Franky G age. Ele é tão grotesco e ruim que nem parece real. Simplesmente taca Amanda no recipiente.
O expectador sabendo que ela tinha problemas com vícios, fica ainda mais chocado com a sequência. Esse é um dos poucos trechos em que as atitudes idiotas do sujeito fazem sentido, ainda que todos se sintam mal com aquele momento, até ele vira o rosto para não apreciar a moça toda lanhada por seringas afiadas.
Esse foi um árduo trabalho da equipe de efeitos, que produziram seringas com pontas de plástico e um braço protético. Haviam ali mais de 120000 drágeas. A equipe inseriu gelatina e água, para ficar mais escorregadio. Demoraram quatro dias para preparar tudo.
Os efeitos práticos nos cadáveres e restos mortais das vítimas são bem enquadrados, muito bem-feitos. Vale falar também que o boneco Billy recebeu um upgrade, já que foi completamente refeito, para ser controlado mecanicamente e não mais com uma linha de pesca como havia sido no Jogos Mortais original.
Essa é uma trama que lida com um cronômetro que vai se esgotando, o senso de urgência aumenta com a aproximação do fim. Outro aspecto curioso é que John parece ter aumentado o seu poder e influência.
Ele passa a maior parte da história imóvel, sentado e mesmo assim segue assustador. É incrível como um idoso moribundo consegue ser tão amedrontador, tão repleto de mistério e tão dono do seu jogo mórbido.
Eric perde o controle, aceita a clara manipulação que o vilão impõe, agindo de forma agressiva. Isso conversa diretamente com o seu modo de agir como policial, já que é dado que ele manipula provas com suspeitos, fato que une inclusive sete das oito pessoas que estão na casa com seu filho.
Os 15 minutos finais são de pura tensão, com o clímax chegando para ambos os núcleos, com os sobreviventes da casa tendo enfim respostas para o seu mistério.
Há um cuidado em associar a chegada do fim do jogo a incursão policial, além da equipe de batedores na suposta casa, além de mostrar Eric e Kramer viajando sozinhos até o destino que Matthews tanto pediu. John se dobra a ele, o leva para a casa onde os jogos ocorreram, mas não sem surpresas.
Outro momento digno de nota é a visita ao cenário do banheiro onde Gordon e Adam estiveram em Jogos Mortais. O cômodo teve que ser recriado praticamente do zero para este filme e mesmo aparecendo brevemente, está muito bem.
Para esconder o final a maioria dos atores não recebeu as últimas 25 páginas do roteiro. Apenas os principais atores envolvidos na sequência sabiam o que aconteceria. Diz-se também que foram filmados vários finais alternativos.
Fato é que a ideia de Kramer era mostrar que suas armadilhas seriam facilmente desmontadas caso as vítimas não fossem afoitas. Se elas trabalhassem juntas, todas sairiam vivas, até com certa facilidade. Era só seguir as regras. Essa ideia seria reaproveitada de maneira diferente em Jogos Mortais 5, lançado em 2008.
A surpresa das gravações é de fato uma grande virada, um plot twist que surpreende tanto quanto o que se vê no outro filme. A montagem que Amanda protagoniza no final, mostrando ela como sucessora de John Kramer beira o genial, pois pavimenta uma estrada que poderia ser percorrida de maneira surpreendente e inteligente.
Claro que fica uma sensação ruim, ainda mais percebendo a bagunça em que a saga se enfiou, mas a virada acerta quase tanto quanto a do primeiro capítulo da franquia.
Jogos Mortais 2 perde em originalidade, tem uma direção um bocado frouxa, mas ainda é uma das mais dignas entre as continuações dos anos 2000, entrou para a história das sagas famosas do horror graças a cena das seringas e foi salva pelo design das armadilhas e pela entrega de Bell e Wahlberg em seus respectivos papéis.
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