O cinema é uma arte que gosta de brincar com tabus, especialmente graças ao alcance popular que tem. É algo bastante comum que um filme lide com questões polêmicas, que incluem o sagrado e suas religiões. É o caso por exemplo da exploração de totens religiosos, e do movimento estranho dos anos 1970 chamado Nunsploitation.
A Freira Assassina é um filme italiano de baixo orçamento que se vale dessa fórmula, misturando elementos de horror pseudoreligioso (falaremos mais a frente sobre isso), com assassinatos relacionados a sacerdote religiosos.
Lançado em 1979, se baseia no clichê de personagem assassino de origem incomum e na exploração fúnebre de figuras católicas, já que coloca uma freira como ponto central do seu terror.
O longa é conhecido por ter sido banido no Reino Unido. Foi chamado de um filme que abordava temas de sacrilégio. Também é lembrado por ser protagonizado por Anita Ekberg, a atriz sueca do clássico A Doce Vida de Federico Fellini. Aqui ela faz a irmã Gertrude, uma das protagonistas da história.
Como parte da Nunsploitation, acaba se diferenciando dos seus pares, já que normalmente essas figuras são protagonistas cenas de horror explícito - isso jamais ocorre aqui, todos os assassinatos ocorrem sem enquadrar um único hábito, ou como figuras eróticas, fato que também não ocorre, já que cenas envolvendo nudez são tão destacadas da religião que poderiam estar em qualquer outro tipo de filme.
O segmento de Nunsploitation é um conjunto de filmes bem específico. Normalmente, suas histórias são sensacionalistas e alarmistas, cujo principal conflito é de natureza religiosa ou sexual. As motivações para assassinatos ou para possessões demoníacas têm a ver normalmente com opressão religiosa ou supressão sexual graças ao celibato.
A maioria dos filmes acaba abordando tramas relacionados a inquisição, quase todos se passam na Idade Média, na Era das Trevas. Comumente se diz que o movimento começou com Os Demônios (The Devils), filme de Ken Russell lançado em 1971.
Outros exemplos desse tipo de abordagem são o italiano A Monja e o Demônio (1973), Atrás dos Muros do Convento (78) e Demônia (90) de Lúcio Fulci, o italo-francês Flávia a Freira Muçulmana (74), os mexicano Satânico Pandemonium (75) e Alucarda (77), e até o brasileiro Escola Penal de Meninas Violentadas (77), que foi uma pornochanchada.
Esse é mais um dos filmes de gênero que se dizia baseado em fatos, era parte da moda de sua época. De fato, há uma inspiração, é levemente pautadaF na história de Cécile Bombeek, uma freira de meia-idade que cometeu uma série de assassinatos em um hospital geriátrico em Wetteren, Bélgica, em 1977.
Não à toa há cenas dele filmadas em Bruxelas, ainda que a maioria das locações ficassem entre Lugano- Cantore Ticino na Suíça e na Itália, em Roma-Lazio.
Na Itália o filme se chama é Suor Omicidi, que traduzido seria algo como Irmã Homicídio, mas também podia ser encontrado como Suor Omicidi: Dagli Archivi Segreti del Vaticano. No Brasil tem o nome que dá título ao artigo, mas também foi chamado de Os Crimes Sexuais de Uma Freira, já no resto do mundo tem variações entre The Killer Nun e La Monja Asesina.
Esse é um dos Videos Nasty, termo esse que já citamos recentemente, no artigo de A Casa no Fundo do Parque. Video Nasty é um nome popular no Reino Unido para se referir a filmes distribuídos em VHS cujo conteúdo foi criticado pela imprensa e por organizações religiosas, graças a violência ou graças a valores conservadores.
No caso de A Freira Assassina, a "culpada" foi a ativista social Mary Whitehouse, que denunciou acusou o longa de possivelmente afetar o comportamento humano. A alegação foi vaga, genérica e colou. Impediu o lançamento Inglaterra e demais países que respondiam a coroa da rainha em 1983. Só chegou ao público geral no ano de 2006, quando as regras de censura mudaram.
O longa conta com direção de Giulio Berruti, que é mais conhecido por ser montador e assistente de direção de Baba Yaga: A Bruxa Maldita, de Corrado Farina, um clássico do horror B italiano.
O texto ficou a cargo do cineasta e de Alberto Tarallo, que é mais conhecido por produzir séries para tv e telefilmes na Itália. Tem argumento e produção de Enzo Gallo.
O enredo é uma viagem, um convite a lisergia, já que a trama se dá a partir da experiência de uma pessoa dependente de narcóticos. Gertrude é uma irmã católica que passou por uma intervenção cirúrgica invasiva. Ela se recuperou bem, teoricamente, mas apresenta sequelas sérias depois de ter tido o seu cérebro operado.
Teoricamente, não há nada com ela. Os exames clínicos não detectam a fonte de suas dores, mas ela segue reclamando de incômodos, afirma que está sendo invadida por aflições terríveis, exige assim morfina, para aliviar o mal-estar.
Aos poucos se nota que ela está viciada em opioides, quer usar barbitúricos, se mostra adicta nas drogas utilizadas para enganar a dor. Desse modo é fácil explicar os estranhos acontecimentos que ela protagoniza, já que ela se apresenta como alguém paranoica, que enxerga sempre o pior nos eventos cotidianos. Mesmo que ela sempre exija os remédios, os médicos do lugar onde trabalha obviamente negam a ela
Ela serve como enfermeira em um hospital geriátrico, repleto de pacientes idosos e/ou dementes. Seus rompantes de raiva e violência podem ter consequências violentas, colocando em risco a sua integridade e a dos demais. O quadro piora quando uma série de crimes começa a ocorrer no interior do hospital e em seus arredores.
A narrativa se inicia com um letreiro que avisa que o filme é baseado em eventos reais, de algum lugar da Europa, há não muito tempo atrás. Nesse início fica parecendo que esse vai ser outro filme de época, da era da inquisição, mas não, é contemporâneo aos anos 1970.
Logo depois vem uma tomada do alto, que mostra freiras todas de branco, entrando na igreja. Elas se espalham de uma maneira tão uniforme que parecem estar dançando. A cena é bonita, uma das mais bem orquestradas.
A maioria dos personagens apresentados são desimportantes, são caricaturais e arquetípicos, incluindo o segundo membro do elenco mais famoso, Joe Dallessandro.
Fora Gertrude, a única pessoa digna de nota é a noviça, que divide aposentos com a protagonista. Ele é Mathieu, personagem de Paola Morra, uma moça jovem, bela e exibicionista. Não é incomum vê-la nua diante da câmera, mas só quando está no quarto com sua companheira. Não há qualquer sutileza em demonstrar que ela nutre uma paixão pela personagem de Ekberg, sendo assim possivelmente um tabu ambulante, já que é cristã e possivelmente lésbica.
É tão bela que pacientes fazem comentários lascivos a seu respeito. Alguns dizem que ela é uma pessoa bonita e que seria muito sedutora se usasse roupas comuns.
Mas o foco narrativo é de fato em Gertrude, que pede para a madre superiora para atender aos seus pedidos. Ela diz estar sofrendo com dores, mas nem os doutores e nem suas irmãs acreditam nela.
Até quando "dá ouvidos", a superiora - interpretada por Alida Valli, de O Anticristo (74) e Suspiria - afirma que sofrer é a vocação das freiras. A realidade é que ela "apenas" uma pessoa viciada, que sofre com abstinência. É ignorada por motivos óbvios, pois poderia ficar ainda pior. Durante a projeção ela tem surtos, que chegam ao cúmulo de fazer ela pisoteiar os dentes postiços de uma interna, causando tanto mal a senhora que pouco depois a mesma falece.
O roteiro não é nem um pouco sutil, mais do que de repente mostra a irmã indo para o lado externo do convento, passeando por um shopping, enquanto flerta com um sujeito.
Eles chegam as vias de fato, se isolam em um lugar fechado para transar, em um canto qualquer, em um quarto alugado, que mais parece o lado interno de alguma loja ou almoxarifado.
Considerando a fama dele, seria natural o espectador acreditar que esse seria um filme cheio de insinuações sexuais e nudez gratuita, no entanto, isso não ocorre, ou quase não ocorre. Ekberg não tira as suas roupas, mesmo as cenas que indicam que ela fez sexo não parecem reais.
A atriz estava em uma fase decadente da carreira, já não atraía grandes holofotes. Mesmo sendo bela, era considerada fora dos padrões de beleza da época, além de beirar os cinquenta anos, idade tabu para uma femme fatale setentista.
Para piorar o quadro, as cenas de supostas transas são jogadas de uma forma confusa, mal montadas, culpa do editor Mario Giacco. Ele havia trabalhado mais com som, em westerns como Procurado Johhny Texas e no terror Uma Lâmina no Escuro de Lamberto Bava, como montador tem poucos créditos, incluindo a comédia Noi siam come le lucciole, de Berruti.
Com a edição é capenga, a sensação de paranoia aumenta, e faz a abordagem geral da trama soar tão ilógica que beira o surrealismo. Há cenas grotescas de operações e necrófilas são apresentadas após um desmaio de Gertrude.
Aparecem personagens estranhos, incluindo uma senhora toda de preto, que beija a cabeça da freira. Essa pode ser uma representação do diabo ou de um mal ancestral. Caso o texto fosse melhor trabalhado, poderia ter algo dúbio nisso, afinal, em estudos bíblicos, é normal associar possessão a carências ou a dependência de narcóticos.
Como Berruti tem uma direção frouxa esse aspecto não é consertado. Quase todas as cenas que poderiam gerar burburinho parecem apenas e tão somente delírios da mente de alguém que está mal da cabeça, incluindo até invasões a sala de exames legistas, onde uma das freiras encara um cadáver de um homem nu.
É tudo muito estranho, flerta com erotismo, mas não desenvolve nada a partir daí.
A trilha incidental aumenta o clima de estranheza. É graças a música instrumental de Alessandro Alessandroni que alguns trechos ficam realmente assustadores. O musicista vem da experiência de obras diversas, como o western Vou Mato e Volto e dos filmes de horror A Mulher de Frankenstein (Lady Frankenstein) e O Demônio Sai À Meia-Noite.
O sexo é mostrado como um tabu tão grande dentro da igreja que o filme quase respeita o ato como algo indigno de mostrar. A inspiração para os crimes são os momentos lascivos dos assassinados, qualquer pessoa que faz menção de ter uma libido saudável é morto, embora não fique claro se as pessoas realmente praticam atos libidinosos ou se são apenas devaneios de Gertrude.
Depois de ver isso, a protagonista desabafa para quem quisesse ouvir, mas só Mathieu a ouve, ela é a única disposta a ignorar o vício e a abstinência dela. Certamente se ela tivesse recursos, daria a tão sonhada morfina a religiosa.
Muitas dúvidas pairam sobre quem está cometendo os assassinatos e torturas, mas há uma certeza, a de que a narradora não é confiável. Graças as ilusões metais que tem, é difícil determinar se ela é moralista como os assassinos dos Gialli e Slashers ou se é uma hipócrita, já que é mostrada sendo capaz de transar com qualquer pessoa, assim como pune quem faz sexo, considerando claro que ela é a principal suspeita da autoria dos crimes.
A maior parte dos estudos acadêmicos a respeito dos filmes de matança da Itália e Estados Unidos relega aos assassinos mascarados a condição de misóginos por impotência sexual, como eles não conseguem atingir o prazer, atacam quem o faz, especialmente mulheres.
No caso da freira matadora o pensamento não é tão diferente, embora ela puna mais homens. É uma praticante da misantropia, claramente inspirada por uma sexualidade castrada, embora o final coloque isso em cheque.
Se existe alguma inteligência no roteiro, certamente ela reside na explicação narrativa para a nudez. Mathieu aparece sem roupas obviamente para atender a um apelo onanista comum a obras do cinema B italiano, mas carrega também o simbolismo dela só estar à vontade na presença da freira que Ekberg faz. Nem em outros momentos com insinuações sexuais, se mostra mais do que o rosto de Morra.
Ela é uma pessoa com crise de fé, que tem esses rompantes graças a repressão de sua sexualidade e ao apagamento de sua identidade sexual. A homossexualidade ou bissexualidade já seria um tremendo tabu, imagine isso em um convento.
Ainda assim não importa que Mathieu seja completamente compreensiva com Gertrude, o que ela recebe é apenas desprezo, rejeição e ofensas. Ela é xingada, tratada como porca e vadia, mesmo que ela não faça nada, além de tentar se aproximar de seu amor platônico e impossível.
Gertrude segue violenta, tão paranoica e inconfiável que até os assassinatos que pratica são dignos de desconfiança. Ekberg está bem, mesmo que não esteja muito inspirada. Desempenha bem o papel de uma pessoa psicótica, a beira de um colapso mental.
A maior parte do elenco é qualquer nota, se destaca positivamente Lou Castel, que faz um interno que usa muletas, que tem um momento complicado violento no final, onde tenta subir as escadas depois de ser jogado lá. A câmera registra bem o seu desespero, mas não fica exatamente claro como ele foi parar ali.
É confuso, como a maior parte dos momentos dessa obra. O script emula a narrativa viajante de um pesadelo, com eventos que desencadeiam atos de maneira desordenada, mas não de uma forma anárquica, e sim preguiçosa.
Perto do final se repete uma das primeiras cenas, com uma freira no confessionário, confessando querer matar um homem, mas há uma inversão de papéis, já que a essa altura, Gertrude nem está mais no convento, foi recolhida para ser tratada em uma instituição de cuidados psiquiátricos.
Não vale a pena falar de maneira categórica o que ocorre. Fato é que a solução é de uma picaretagem atroz, pois ignora todas as pistas dadas ao longo da exibição. Não há qualquer menção ao mundo espiritual, não há nenhum movimento de sacrilégio fora uma ou outra indiscrição sexual e ainda se trata de maneira torta questões sérias, como o abuso de mulheres em locais de difícil acesso para autoridades competentes.
O maior pecado do filme no entanto é o de lidar de maneira rasa com questões relacionadas a perturbações mentais. Com toda a premissa é solene e como ele é todo sério, é difícil ignorar como o texto não desenvolve bem essas questões.
A Freira Assassina é difícil de definir. Tem momentos de comédia involuntária e outros dignos de uma perturbação incomum. É tenso e deliberadamente enganoso, mas erra principalmente em não é assustar e em não mostra nada gráfico.