Calafrios : O bizarro e especulativo filme do início de carreira de David Cronenberg

Calafrios : O bizarro e especulativo filme do início de carreira de David CronenbergCalafrios é um filme canadense tão curioso e pitoresco que é difícil de encaixar ele em qualquer dos gêneros clássicos do cinema. Como é conduzido pelo mestre do horror corporal David Cronenberg, normalmente se associa ele a ficção científica ou ao terror.

Lançado em 1975, contém um orçamento modesto, ainda que seja mais pomposo que o valor de produção dos dois longas anteriores do cineasta, Stereo (Tile 3B of a CAEE Educational Mosaic) e a versão de Crimes do Futuro de 1970.

Apesar de ter uma identidade bem diferente das outras duas obras, o cineasta trouxe consigo alguns dos colaboradores antigos dele, como Ronald Mlodzik, ator que esteve nas duas outras obras como narrador, mas que aqui interpreta um papel mais "comum", no caso, Merrick, um homem que fala diretamente do Starliner Power, um prédio de luxo dentro da ilha onde se passa a obra.

No Canadá o longa se chama Shivers, mas durante a pré-produção e rodagem mudou de nome algumas vezes. Originalmente seria Invasion of the Blood Parasites, na época das filmagens, tinha como nome Orgy of the Blood Parasites, mas na época das filmagens teve o título The Parasite Murders.

Quando o filme chegou aos cinemas ainda seguiu com a tradição de ter diversos nomes. Podia ser encontrado como The Parasite Murders and They Came from Within, em inglês, já na distribuição em francês feita no Canadá, chamava Frissons.

O longa foi rodado brevemente, em uma quinzena, durante o verão de 1974, na Ilha das Freiras em Montreal. Os momentos nos apartamentos da Starliner foram filmados em 200 Rue de Gaspé, Île-des-Soeurs. Foi produzido por três estúdios em conjunto, DAL Productions e Cinépix Film Properties (CFP), e o estúdio público e estatal Canadian Film Development Corporation (CFDC).

Houve um cuidado em tentar tornar a história no mais realista e crível possível, tanto nos primeiros momentos da história se percebem menções a uma disputa trabalhista real, a respeito da construção do Estádio Olímpico de Montreal para os Jogos Olímpicos de 1976, dentro do noticiário jornalístico televisivo.

Uma questão levantada na época é que a Cinepix não confiava em permitir que Cronenberg dirigisse o filme. Eles tinham concordado em comprar o roteiro, mas não confiavam nele para direção, afinal, era um cineasta iniciante. David conseguiu o posto de diretor, bancado graças a Ivan Reitman, produtor que se dedicou tanto que acabou também sendo supervisor musical aqui, participando da trilha sonora do filme.

A partir daqui falaremos abertamente sobre partes da trama. O aviso está dado

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A história é tão confusa que é difícil até definir sua sinopse. Ela se passa em um condomínio fechado, localizado por sua vez em uma ilha canadense que recebe muitos turistas. No meio dos "civis" começa um contágio, de origem desconhecida, mas que rapidamente se alastra.

Esse estranho vírus contagia as pessoas de maneira curiosa, já que não possui sintomas comuns, não é uma enfermidade parecida com gripe ou resfriado, o efeito colateral que chama a atenção é um comportamento nervoso e agressivo, mas não parecido necessariamente com o vírus da raiva.

Homens e mulheres começam a ter acesso de fúria, em um primeiro momento não se entende como a contaminação ocorre, fato é que as pessoas passam a agir de maneira predatória e agressiva. Dentro dos apartamentos as pessoas vivem suas rotinas normalmente em um primeiro momento, mas isso não dura.

A maioria das pessoas - mesmo as contagiadas - tentam viver normalmente, participam de eventos e acontecimentos corriqueiros de uma colônia de férias, desfrutam de refeições abastadas como um café da manhã entre hóspedes, fazem breves atividades ao ar livre, mas não demoram a demonstrar o nervosismo que marca as pessoas adoentadas.

Nesse trecho inicial se destaca o casal Nicholas e Janine Tudor, interpretados por Allan Kolman (creditado como Alan Migicovsky) e Susan Petrie. Os dois são a linha guia da normalidade junto ao público, o pontapé emocional de toda a ciranda desvairada e descontrolada que ocorrerá em tela. Os outros personagens que os orbitam já parecem estranhos, deixando claro que esses possivelmente estão infectados.

O doutor Emil Hobbes (Fred Doederlein) é mostrado como um homem simples, um senhor idoso, baixinho, com porte físico nada ameaçador, que seria encarado como um bonachão, não fosse seu ato posterior a primeira aparição.

Sem falar uma palavra, ele parte para cima de uma moça muito nova, de idade tenra, provavelmente adolescente, visto que está utilizando um uniforme de colegial normalista. Ela poderia facilmente ser filha dele. O espectador mais "maldoso" pode acreditar que ele tem um caso com a moça, mas essa resposta não pode ser testificada, já que as informações são escassas nesse e na maioria dos casos.

A moça se chamava Annabelle Brown (Cathy Graham) e logo após a sua morte, ela tem suas roupas tiradas, para ser examinada por seu algoz.

Por mais que a sequência se dê em silêncio, é notável que não há malícia ou lascívia da parte dele. O sujeito parece querer fazer algum tipo de experimento com ela, mas não fica claro nem como e nem para que ele fará aquilo.

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Essa sequência é um bocado perturbadora, uma vez que Emil é interrompido pelas pessoas que estavam perto dos seus aposentos. O doutor é encontrado pelos "invasores", que se chocam, já que ele está sem roupas, de máscara, ferindo o próprio pescoço, em um sinal suicida.

Não fica claro nem a causa e nem a forma de contágio do tal vírus, não na primeira hora. Até a ciência de que a doença invade a ilha é dada aos poucos. Fato é que até os personagens supostamente heroicos dão sinais de enfermidade, com parte dos mistérios sendo revelados gradativamente.

Nick começa a passar mal. Seu dia ocorre corriqueiramente até que ele é tomado por uma espécie de paralisia. Visualmente não há nada demais em sua atitude, exceto o fato dele sangrar pelo rosto, sem razão aparente. Esses efeitos fazem ele retornar para casa, afinal, não estava passando bem.

O estágio contagioso em Tudor parece estar em um nível ainda "embrionário", mas em outros setores do condomínio ocorrem episódios mais avançados, demonstrando a evolução da doença. Ataques ocorrem no prédio, nas dependências dos apartamentos se percebe uma estranha manifestação física.

Sai uma espécie de parasita de uma máquina na lavanderia e ataca uma mulher corpulenta. O que não fica muito claro nesse trecho é se essa criatura é um ser real e literal. Ainda que pareça ser isso mesmo, há a possibilidade de ser apenas uma manifestação simbólica do vírus que acomete a ilha.

Com o tempo, fica claro que aquela é a aparição é literal. A dúvida que resta é se esse ser é o vetor da doença ou uma questão colateral, algo que é expelido da pessoa envenenada.

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O ser tem um aspecto viscoso, lembra o corpo de um verme grande, feio e nojento. Quase dá para sentir o cheiro dele.

O doutor St Luc (Paul Hampton), é introduzido já em meio a ação. Ele recebe pacientes e segue tentando lidar com mais e mais casos estranhos em seu consultório. Os eventos aumentando de gravidade após a morte do doutor Hobbes e de Annabelle, algo segue atacando e maltratando as pessoas, as vítimas se avolumam, tomam o cenário paradisíaco.

O drama também reside no fato que a história se dá em um lugar isolado, qualquer resgate ou tentativa de ajuda passa pela problemática da emergência acontecer afastada do continente.

O parasita - ou a evolução dele - ataca Betts, a personagem da icônica Barbara Steele, enquanto a mesma está na banheira. A cena acabou se tornando icônica, mesmo que não seja gráfica. A atriz já era bastante conhecida na época, vinha de bons trabalhos no cinema italiano, sobretudo com Mario Bava.

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Ele vinha de uma leva de sucessos, fez com o mestre do horror europeu A Maldição do Demônio, depois esteve no clássico surrealista de Federico Fellini, voltando a fazer horror com Amor de Vampiros, além de ter participado de O Incrível Exército de Brancaleone, outro filme bastante conhecido do público.

Curiosamente a atriz sempre se recusava a aparecer nua nos filmes, mesmo sendo voluptuosa e um sexy symbol. O momento em que ela mais se aproximou da nudez explícita é aqui, onde ela aparece em uma banheira, com uma expressão que, vista de maneira isolada, contém insinuação sexual, já que parece que ela está gemendo de prazer.

Os efeitos especiais e a criação dos monstros as criaturas ficaram a cargo de Joe Blasco. Ele foi chamado para trabalhar aqui uma vez que não havia uma indústria canadense no campo de efeitos especiais práticos. Sua experiência era bem diversa, já que havia trabalhado na versão animada de A Família Addams, também nos filmes Ilsa: A Guardiã Perversa da SS e voltou a trabalhar com Cronenberg em Enraivecida na Fúria do Sexo.

O aspecto das criaturas é feio, viscoso e escuro, parecem seres oriundos da terra, meio larvais, lembram minhocas agigantadas. Elas ferem a pele com queimaduras. Certamente o filme inspirou James Gunn em seu Seres Rastejantes.

As pessoas que sofrem a influência do parasita agem de maneira alterada possivelmente graças ao calor que os seres emanam. As vítimas ficam excitadas e agressivas, atacam as outras sexualmente. Isso ocorre tanto com homens quanto mulheres, mesmo Nicholas ataca sua esposa Janine, obrigando ela a fazer sexo com ele, mesmo que ela não demonstre qualquer vontade disso.

O ser é tão sem escrúpulos que faz suas vítimas cometerem tipos de violência que incluem estupro. Isso pode deixar partes mais sensíveis da plateia incomodada, não à toa. Cronenberg desde sempre gostava de lidar com temáticas espinhosas, especialmente no que diz respeito a sexo, mas aqui ele não faz juízo moral ou de valor, a selvageria dos possuídos tem mais a ver com pulsão do que com maldade.

As pessoas são reduzidas a instintos básicos, perdendo assim sua identidade civilizada e humanizada. Ainda que esse possua um bocado da linguagem mais especulativa dos primeiros longas, já se percebe que o cineasta gosta de abordar o aspecto mais violento da mente humana, tendo assim apreço pela nojeira e escatologia, associando momentos nauseantes a práticas comuns e corriqueiras como o sexo.

A crítica foi bastante azeda com o filme, houve um jornalista, famoso na época, que criticou o financiamento público via National Film Board of Canada (NFB/ONF). Essa atitude foi uma reação bastante conservadora em relação a arte e até não seria um grave problema em teoria. No entanto, Cronenberg disse que o artigo, assinad0 por Robert Fulford, tornou mais difícil obter financiamento para seus filmes subsequentes.

Conservadorismos interpretativos à parte, fato é que as atuações são exageradas, em um grau que beira o cômico escrachado, mas voltado a um humor irônico e ácido. Considerando as referências ao canibalismo, a antropofagia e até a zumbificação dos personagens, o desempenho do elenco funciona.

É perceptível que Cronenberg bebeu da fonte aberta por George A. Romero em A Noite dos Mortos Vivos, lançado em 1968, poucos anos antes desse. A diferença é que o terror ataca os vivos, não os revividos, mas entre eles segue a coincidência de aderir a necessidades instintuais e mais básicas possíveis.

Próximo do final, o diretor ousa, colocando uma cena de beijo lésbico entre Betts e Janine, onde fica clara a transferência do parasita de uma para a outra. É mais do que dado o paralelo entre a criatura e as DSTs, em tempos onde a preocupação com doenças venéreas aumentava. Curiosamente essa sequência ocorre sem nenhum tipo de erotização das mulheres que a protagonizam.

Uma personagem peculiar é enfermeira Forsythe, interpretada por Lynn Lowry. Ela passa por muitas fases, é mostrada como uma menina que lida com sua sexualidade sem muito tabu, no início se exibe nua para o médico, mas ao ser confrontada com os infectados, trava. Lowry já tinha uma certa experiência, esteve em Exercito de Extermínio de Romero, tinha familiaridade com a temática cinematográfica do horror.

Seus talentos são cobrados aqui, ela fica catatônica ao ver os doentes, em referência possivelmente a reação comum a quem sofre abusos sexuais, resultando em uma atuação que mira demonstrar em tela as consequências da frigidez sexual, fato que faz sentido e dá camadas ao filme.

Já Nick Tudor e o doutor Rollo protagonizam uma cena que certamente influenciou a direção de Ridley Scott, com uma criatura saindo da barriga de um deles para atacar, feito com um efeito prático visualmente impressionante, ainda mais sangrento que a fase larval do xenomorfo do Alien: O Oitavo Passageiro. Reza a lenda que Dan O'Bannon, roteirista do clássico de 1978, gostava demais do cinema de Cronenberg, fato que explica a emulação dessa criatura fálica também na obra de 1978.

Perto do fim, no ataque dos infectados, fica a sensação de que haverá uma grande orgia, já que as pessoas se atacam, beijando umas nas outras, se esfregando em quem está próxima, algumas terminam se mordendo.

O momento é sanguinário, com bastante gore, mas a sensação que prevalece não é asco ou nojo e sim a desolação, especialmente para Roger, que em certo ponto, está solitário, como o único são em um cenário de loucos, tal qual era Robert Neville em Eu Sou A Lenda, romance de Richard Matheson. Em comum com o personagem literário e o doutor há também a sensação sufocadora de rejeição a mudança, retribuída com uma captura impossível de escapar.

Luc enfim aceita sua condição, ao contrário de Neville, se permitindo enfim ser capturado para ser transformado. Isso torna Calafrios ainda mais arrepiante que os seus pares de filma catástrofe, uma vez que contaminação está indo para o continente.

Cronenberg faz um filme sufocante, violento e nauseante, já mostrando nessa época todas as marcas que fariam parte de sua criativa filmografia, mas em seu trabalho não falta apelo a um estilo de contar história mais divertido e popular, bastante equilibrado em sua proposta.

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