Rebelião dos Brutos : Um legítimo Nordestern italo-espanhol

Rebelião dos Brutos : Um legítimo Nordestern italo-espanholRebelião dos Brutos é um western europeu peculiar em sua abordagem. Coprodução entre Itália e Espanha, é um dos expoentes do Western Spaghetti dos anos 1960, embora não se passe no cenário do velho oeste dos Estados Unidos. É comumente chamado de Nordestern, que é um movimento de cinema baseado no Brasil, que explora histórias do sertão nordestino, especialmente na época do cangaço.

Dirigido por Giovanni Fago e protagonizado por Tomas Milian, o longa acompanha a vida de Espedito (ou Espidito, segundo algumas traduções), um sobrevivente de um massacre em uma aldeia isolada no sertão. Ele é salvo por um ermitão fanático religioso que o faz acreditar que ele é um representante de Jesus. O sujeito então passa a ser conhecido como Redentor, anda pela Caatinga brasileira e forma uma milícia do cangaço, que defende os interesses de quem faz parte desse agrupamento, eventualmente, passa a contemplar os pobres e os menos favorecidos.

Ao longo da trama Espedito angaria aliados, inimigos e novas missões, inclusive relacionando o drama local a exploração da terra, dos homens por estrangeiros ricos. Em sua jornada também há uma sub-trama ligada a extração de petróleo em terras brasileiras, antes inclusive da criação da empresa estatal Petrobrás.

Se mostra um bocado da burocracia e corrupção que permeava o mapa e a realidade política brasileira, fazendo assim um retrato bastante fiel da época e até da atualidade em certos pontos.

O roteiro foi escrito por Rafael Romero Marchent, Bernardino Zapponi e José Luis Jerez Aloza (que assinava José Luis Jerez), com argumento de Fago, Aloza, Marchent e Antonio Troiso.

O nome da obra na Itália é Cangaceiro, mas pode ser encontrado também pelo nome em espanhol O'Cangaceiro na Espanha. Em inglês chama-se The Magnificent Bandits e na Alemanha Ocidental é Viva Cangaceiro.

Rebelião dos Brutos : Um legítimo Nordestern italo-espanhol

O tal movimento Nordestern é uma expressão criada pelo crítico Salvyano Cavalcanti de Paiva. Era usada para identificar um gênero de filmes bastante explorado pelos produtores e cineastas brasileiros desde os anos 1930. Histórias ligadas a cangaceiros reais ou imaginários foram lançadas, exemplo disso é Lampião, a Fera do Nordeste de 1930, Lampião, o Rei do Cangaço de 1936. Em 1953 Lima Barreto fez O Cangaceiro, sucesso mundial da Columbia Pictures, mas o filme mais famoso desse ciclo foi Deus e o Diabo na Terra do Sol de Glauber Rocha.

A ideia de fazer um filme italiano nesses moldes visava explorar novos modos de contar histórias dentro do gênero, gerando novas facetas no mesmo cenário árido comum as paisagens mais quentes de Estados Unidos e México, ainda carregando a estético e o estilo típicos dos bangue-bangue à italiana.

Fago, que vinha de outros faroestes como Pistoleiros em Conflito e Mais um para o Inferno, exibiu o seu nordestern junto a O Dragão da Maldade Contra o Santo Guerreiro de Glauber e acabou indo bem de bilheteria e de crítica, em especial graças aos aspectos técnicos.

A cinematografia do madrilenho Alejandro Ulloa, de Operação Irmão Caçula, ajuda o longa a se destacar. Sua contemplação explora bem as paisagens baianas que serviram de locação. As imagens registram o interior do Brasil de uma maneira melancólica.

A sensação de depressão aumenta graças ao uso da trilha sonora de Riz Ortolani, compositor de inúmeros clássico, entre eles, O Dia da Ira. Aqui ele utiliza músicas clássicas do cancioneiro brasileiro, como Mulé Rendeira do Trio Nordestino e A Bananeira Caiu, com arranjos novos, que ressignificam o clássico. O tema principal criado por Ortolani parece um bolero, se distancia assim das músicas rurais do Brasil, mas casa muito bem com essa proposta.

A obra foi produzida pelos estúdios Medusa Distribuzione, Tritone Cinematografica e Producciones Cinematográficas D.I.A.. Teve locações na Bahia, com cenas no Farol da Barra, na Casa do Comércio, no Palácio da Aclamação, Lagoa do Abaeté e em Arembepe.

O grupo de roteiristas não era formado por iniciantes, mas a maior parte do sucesso desses escritores, veio depois desse trabalho.

Zapponi escreveria Prelúdio Para Matar de Dario Argento e Casanova de Fellini, Aloza fez Johnny West: O Canhoto e Adeus Gringo, já Marchent escreveu Matarei Um por Um e Ringo: O Cavaleiro Solitário. Já Troiso escreveu A Lâmina de Aço.

Os créditos iniciais destacam o nome de Milian, enquanto Mulher Rendeira é executada pela primeira vez. A música seria repetida na história em vários momentos, mas aqui serve para estabelecer o cenário bucólico do árido sertão.

A polícia, do Coronel Minas, interpretado pelo espanhol Leo Anchoriz (de Sandokan, O Grande) cerca um grupo de cangaceiros. Eles pedem para que ele se entregue, para poupar a vila e seus moradores.

A ameaça dessas autoridades pode parecer algo caricato ou exagerado, mas esse tipo de postura era bastante comum na época do velho cangaço. Os policiais simplesmente invadem as casas, matam os "bandidos", mas executam também as pessoas comuns.

Fago é bastante inteligente, denuncia a truculência policial sem necessariamente mostrar um tiroteio gráfico logo no início. Até se percebem disparos, mas o trecho de introdução prefere focar mais nos passarinhos desesperados, cantando e se debatendo nas gaiolas. Os bichinhos ficam agitados, dão o tom do desespero deles, do abandono, descaso e crueldade dos homens da lei com o povo.

É um bocado curioso mesmo mostrando os policiais com fardas brasileiras, os mesmos acabam parecendo os carabinieri italianos, especialmente no modo de andar e se portar. Seriam facilmente confundidos com os personagens equivalentes dentro da exploração de obras sobre a Cosa Nostra ou máfia da Calábria ou Nápoles.

Logo é mostrado o destino de Espedito, um simples vaqueiro, que testemunha toda a tragédia e quase morre. Ele entra em parafuso depois que sua vaca é morta, quase morre graças ao fato de lamentar a perda de seu animal.

Chama a atenção que não havia motivo para os agentes da lei matarem a vaca, afinal, ela era inofensiva, não poderia manejar armas. Outra questão é que a miséria do personagem principal é tão grande, que não consegue sequer sentir a falta de seus conhecidos e amigos, só se importa com seu animal e com a sua forma de sustento.

Ele é salvo por um sujeito estranho, um idoso de roupas espalhafatosas, com uma barba que claramente é falsa. Sua aparência só é mais peculiar que o seu comportamento, já que ele é um homem místico, especialista em ervas e animais. Esse irmão cuida do protagonista e passa alguns ensinamentos para ele. Nesse início há uma das cenas mais pitorescas, onde o profeta diz que Espedito não vai mais sofrer, mas enfia unguento nas feridas dele, fazendo-o urrar de dor.

Em meio as lições desse "mentor", Espidito descobre os segredos de um Deus punidor. Logo ele se torna um missionário maltrapilho, aparece com um visual semelhante a de uma pessoa em situação de rua, com um cabelo grande, cheio e crespo.

Vira um anunciador do evangelho, mas é tratado como alguém esquisito, afinal, é assim mesmo.

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O caminho do protagonista é cruzado pelo cangaceiro Diabo Negro, que é interpretado pelo brasileiro Mário Gusmão, um pistoleiro valente, de pele preta, que oferece a ele vaga no cangaço. Espedito não aceita o convite e é imediatamente perseguido pelo antagonista.

Depois de levar tiros nas cruzes que carrega ele passa a pedir esmolas, na frente de uma igrejinha, durante o carnaval. Se percebe que é essa época do ano graças aos sons de apitos, pandeiros e afins ao fundo Ele reencontra o coronel Minas, mas é sábio, não faz alarde. Sabe que para executar sua vingança, precisará de tempo.

Seu destino muda logo depois de ser levado ao cárcere. Aparentemente isso foi calculado, seu propósito era o de ser encarcerado. Lá ele finge insanidade, tanto que lhe é permitido ficar com a sua flauta. Quando o carcereiro pede que ele pare de tocar, ele sopra um dardo inflamado, mata o homem e escapa, junto a todos os outros prisioneiros.

A reunião desses foras da lei torna Espedito um líder óbvio. Sua lenda se espalha, assim como a alcunha pelo qual ele seria conhecido: Redentor. Ele mesmo passa a acreditar ser uma figura messiânica, a imagem e semelhança de Cristo.

Consigo estão bandidos, assassinos e ladrões, gente excluída, que pecou e que ainda peca, mas que seriam remidos pelo sangue do Cordeiro de Deus, no caso, por ele mesmo. Ele acredita mesmo que é justo o suficiente para conseguir perdoar os seus seguidores, tanto que anuncia que o castigo divino virá sobre os seus inimigos, mostrando assim uma visão deturpada e egoísta de mundo, que chega ao cúmulo de assassinar os que resolvem largar o seu bando.

Ele passa a ser procurado por todo o estado de Pernambuco, as autoridades chamam ele de incendiário, embora nesse trecho ele não ateie fogo de maneira literal. Espedito age como um líder de bando, mas também como pastor de culto, um incendiário ideológico, que é capaz de inflamar egos e paixões do povo.

Ele reforça o ideal messiânico, chega até a acrescentar mitologia a sua fórmula. Um momento peculiar do longa é quando encontra um homem europeu, que carrega uma Bíblia Sagrada cristã. Curiosamente ele teve contato com o Evangelho, através do irmão, mas entendeu tudo por tradições orais.

Ele pede ao holandês Vincenzo Helgen - que é interpretado pelo italiano Ugo Pagliai - para ler o livro para o seu grupo. Os justiceiros param, sentam e ouvem ele declamando trechos das escrituras, enquanto o homem branco está de pé.

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Espedito passa a usar o mesmo arquétipo dos antigos cangaceiros, usa roupas iguais, tem um chapéu característico, se faz presente na cabeça das pessoas do bando.

A mensagem nada sutil que o roteiro propõe é de que o personagem está irremediavelmente condenado a abraçar os pobres e sem opção. A condição da violência o interior força uma pessoa boa a se tornar um bandido, mesmo alguém religioso, mesmo uma encarnação do Messias ou de Jesus Cristo é condenado a matar para viver e a roubar dos ricos para dar aos pobres, afinal, a justiça social só se estabeleceria assim.

Algumas das autoridades locais são religiosas. Aparecem padres, que se vestem de maneira suntuosa, com túnicas vermelhas caras, que condenam os homens ricos por serem materialistas, mesmo que eles também sejam.

A arquidiocese não enxerga os cangaceiros com bons olhos e por mais que o clero condene os homens brancos endinheirados, se associam a eles, afinal, onde está o dinheiro está o poder. Os padres fazem parte das negociatas que visam explorar Água Branca, um local isolado, que pode ser alvo de extração de petróleo.

A autoridade política maior ali é o Governador Branco, personagem do espanhol Eduardo Fajardo (de Django). Ele verbaliza que para chegar até o ponto de exploração, precisaria matar os cangaceiros.

Ele então convida Espedito, contrata ele para que possa limpar a área, logo depois de um ataque do mesmo aos policiais, que se resumiu em uma emboscada simples, que consistia em chamar os policiais para um cenário de uma casa grande abandonada, onde todos foram alvejados, depois de assobiar o tema de Muié Rendeira.

O político usa Vincenzo para tentar negociar com o Redentor. A sequência que reúne os cangaceiros com a alta roda e com a aristocracia do local é dantesca. Tudo bem que os figurinos e posturas das pessoas nada tem a ver com o retrato de época de outras obras do Brasil, todos aqui parecem ingleses ou estadunidenses no modo de vestir, mas ainda assim é impactante.

A interação mais esquisita entre os bandidos e os ricos ocorre na recepção/festa do Governador Branco, com todos sentados na mesma mesa, com um garçom servindo frango. Espedito manda que eles dividam o alimento e um dos capangas retira o pedaço de galinha da boca, divide e coloca nos pratos de um casal de aristocratas, que agradecem, usam palavras educadas, mas tem uma expressão de nojo.

O acordo seria que os cangaceiros protegeriam os interesses do governador, com Redentor e seus homens tendo direitos semelhantes aos de um exército formal. Eles selam o acordo com champanhe, mas não sem antes o protagonista atirar em uma garrafa, achando que a simples abertura dela era um disparo.

Na prática os cangaceiros fazem o trabalho sujo para o governado, matam para isolar Água Branca, até se confrontam com seus colegas de cangaço, mas em outro bando, obviamente. Há inclusive um belo duelo de machetes/peixeiras, onde Milian brilha bastante.

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Como era de se esperar, a relação de Redentor e Branco se deteriora. Cada um deles tinha uma expectativa diferente sobre o acordo, mas o político toma a dianteira, contrata bandidos estadunidenses para massacrar alguns dos homens dele.

Na verdade, miram Espedito, querem dar a ele uma lição, mas obviamente não conseguem, afinal, ele é o Redentor, tem uma espécie de corpo fechado.

Curiosamente o filme referencia os bandidos organizados de máfia como o futuro, como os soberanos da bandidagem. Nos Estados Unidos a era do Velho Oeste acabou justamente quando os criminosos passaram a se organizar em gangues mais bem estruturadas que os simples bandos de pistoleiros. A arte imita a vida e coloca uma simples tendência como o fator de mudança nesse mundo ingênuo e pueril.

O cangaceiro só percebe que algo está errado quando convida os nobres para comer com ele, depois de assar um animal inteiro. Ao não receber a honra da presença de seus supostos amigos, ele tem um ataque de vaidade, se sente mal e triste, culpa o holandês Vincenzo.

O duelo entre Redentor e o Governador ocorre embalado por um samba improvisado, que toca de maneira intermitente, para distrair o homem branco.

Até Espedito fica confuso com as motivações de Helfen. Vincenzo afirma que fazia aquilo por simpatia, talvez até por ter olhado para ele com um sentimento de amizade. A relação dos dois era de um tipo bem comum nos westerns spaghetti protagonizados por heróis latinos.

O modo como Redentor enxerga ele não é tão diferente do modo que Cunchillo via Nathaniel Cassidy em Corre Homem Corre. Nesse ponto o Nordestern converge com os Zapata Western.

Rebelião dos Brutos é pontual, bonito e inspirador. Se debruça sobre uma cultura diferente do que normalmente se falava em obra de bangue bangue à italiana e faroestes clássicos. Há claro muitas caricaturas, mas não chega a ser ofensivo, até pelo fato de não mostrar os latinos como bandidos e sim como os heróis de suas jornadas.

 

 

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