O Dia da Ira : O western sobre invisibilidade, paternidade e revanchismo

O Dia da Ira : O western sobre invisibilidade, paternidade e revanchismoO Dia da Ira é um filme de ação e aventura localizado no velho oeste norte-americano. Coprodução teuto italiana, lançado em 1968, esse Western Spaghetti reuniu em seu elenco dois ícones do gênero, o astro italiano Giuliano Gemma e Lee van Cleef que normalmente faz o perfeito anti-herói americano.

Tal qual é comum em obras do gênero bangue bangue à italiana, esse tem vários nomes. A alcunha original era I giorni dell'ira, já no Brasil teve dois nomes muito parecidos, Dias de Ira, Dias da Ira. Em países de língua inglesa é achá-lo como Day of Anger ou Days of Wrath.

A narrativa é focada em Frank Talby e Scott Mary, vividos por Cleef e Gemma respectivamente. Sua abertura é curiosa, com uma animação super colorida, no embalo de uma música instrumental sensacional de Riz Ortolani, profissional com diversos filmes no currículo, incluindo o horror A Casa no Fundo do Parque, que já analisamos aqui.

O filme é conduzido pelo experiente cineasta Tonino Valerii, diretor de obras que passam também por elementos do Velho Oeste. São seus dois pequenos clássicos do gênero: Ele foi responsável pelo cômico e emocionante Trinity...Os Sete Magníficos e Meu Nome é Ninguém. Fora do gênero ele também fez outras obras, como Profissão: Capanga e Operação Suicida, mostrando sua versatilidade enquanto contador de histórias.

O roteiro é de Valerii, Ernesto Gastaldi (Conexão Siciliana e O Exterminador de Aço) e Renzo Genta (O Último Mundo dos Canibais e Caso Concorde), se baseia no livro Der tod Ritt Dienstags, de Ron Barker. Já os produtores são a dupla Henryk Chrosicki e Alfonso Sansone, que juntos, fizeram também Comando Sullivan.

A partir daqui falaremos mais sobre a trama e seus desdobramentos. Colocamos então um aviso de spoilers.

O Dia da Ira : O western sobre invisibilidade, paternidade e revanchismo

O drama se localiza no Arizona, na pequena cidade de Clifton, um lugar tranquilo, habitado em maioria por gente de idade, por idosos. O povo possui um discurso pacífico, com a maioria dos habitantes reclamando da condição dos pistoleiros que eventualmente passam por ali.

Boa parte dos personagens são assumidamente anti-armas e nesse ínterim, há até cenas de personagens de pijamas, indo até as suas janelas de manhã, só por conta de ter ouvido um barulho estranho no lugar. Clifton é pacato ao extremo.

O Scott de Gemma é um rapaz de boa índole, acostumado a fazer trabalhar com qualquer serviço, fazendo pequenos favores aos locais, inclusive limpando as ruas. Ele funciona quase como um zelador da cidade do interior.

Sendo assim ele é menosprezado absolutamente por todas as pessoas, até mesmo Murph (Walter Rilla), o dono do estábulo que permite que ele durma junto aos cavalos.

Scott é a demonstração perfeita de como funciona a moral do trabalhador precarizado. No receio de passar necessidade e fome, ele abraça qualquer ofício e acaba, portanto, virando alguém sem moral, sem sonhos próprios, deixando seus brios de lado, afinal, se tiver vaidade ou surtos de personalidade, pode acabar perdendo os poucos recursos que tem.

Era comum ter muita gente em situação semelhante à dele, nos Estados Unidos pós independência, inclusive em outras histórias de faroeste no cinema. A diferença é que normalmente pessoas assim não protagonizam as obras. Se torna ainda mais triste a percepção de que não é incomum que muitas pessoas seguem nessa situação até hoje, especialmente em países do terceiro mundo.

Entre as muitas funções de Scott está a de recepcionar quem vem de fora. Quando o pistoleiro forasteiro Talby chega, ele se oferece para levar o cavalo ao estábulo.

Logo o personagem de Van Cleef percebe no rapaz a sua característica maior, que é a pureza, que resulta enfim em uma certa ingenuidade, tanto que o enxerga como alguém quase infantil dada a sua inocência e falta de malícia.

Isso faz conquistar o velho homem, que por sua vez, imediatamente confia na pessoa do rapaz.

O Dia da Ira : O western sobre invisibilidade, paternidade e revanchismo

Scott é tão excluído da vida social que é proibido de entrar nos bares. A sensação de que ele é tratado como um lixo por ser malnascido incomoda não só o público, mas também Talby.

Essa condição afeta até a sua moral, tanto que ele não se lembra - ou não possui - sobrenome. A fim de tentar humanizar o rapaz, Talby usa o nome da falecida mãe dele, para dar um sobrenome, nascendo assim Scott Mary.

A relação dos dois evolui tanto que o velho defende a honra do moço o tempo todo, resultando até no assassinato de um homem, graças a ter desrespeitado Scott. Com o desenrolar da trama, pode se pensar que talvez houvesse ali outro motivo para esse homicídio.

Diferente do que era comum em fitas italianas de faroeste, esse possui até cenas de julgamento em tribunal. Como Talby é dado como culpado, o sujeito decide então sair da cidade, mudando temporariamente o rumo da trama.

Scott usa então do prestígio que tem com o velho matador. Acaba saindo da cidade, vai atrás de Talby e praticamente implora para ser treinado como pistoleiro. Mas ele é cru, muito crédulo e bonzinho, falta casca e agressividade.

Sequer tem um cavalo, usa uma pequena mula, de nome Sartana, em atenção ao herói homônimo, presente em Se Encontrar Sartana, reze pela sua morte, já analisado nessa mesma coluna.

As locações do filme foram entre a Espanha e Itália, com a maior parte sendo filmada no deserto de Tabernas, em Almeria, em Cortio El Sotillo e Albaricoques. Também teve cenas internas no Cinecitta, em Roma.

As aventuras deles seguem episódicas pontuadas pela música magistral de Ortolani. O tema foi tão característico e repetido aqui que Quentin Tarantino resolveu utilizar em Django Livre, montagem de treinamento onde Jamie Foxx está praticando tiros.

Em suas peregrinações, Talby encontra gente com que teve confrontos no passado, inclusive um sujeito que reclama ter sido preso graças a ele. Esse sujeito acaba perecendo, ao tentar atacar o personagem de Cleef, que aliás, segue instruindo seu pupilo para se tornar um matador competente.

Por ter sido filmado nos mesmos locais que Sergio Leone geralmente filmava, há algumas coincidências de cenário. Talby caminha por uma rua com prédios brancos, conjunto esse visto em Por Uns Dólares a Mais, de 1964. A cena é filmada por Valerii da mesma perspectiva do trecho onde Clint Eastwood tem um impasse com três pistoleiros mexicanos.

O Dia da Ira : O western sobre invisibilidade, paternidade e revanchismo

Quando a dupla retorna a Clifton, tudo mudou, ao menos para Scott. O rapaz não aceita mais o modo humilhante com que era tratado, mesmo que os habitantes buscassem o inverso, desejando humilhar ele sempre que possível.

Ele coloca cada um dos "abusadores" em seu devido lugar, marchando de forma tão demarcada rumo a uma nova rotina que a sequência chega a ser meio expositiva, no sentido de reforçar a ideia.

Uma das grandes questões do filme é que ele é bastante parado, com os heróis esperando os vilões chegarem, para finalmente a ação voltar. Depois que Talby pega um de seus alvos, pouco ocorre em matéria de ação. A trama só se desenvolve de fato graças a coincidência de o dinheiro que era de Talby estar localizado em Clifton.

Pode-se entender que o personagem de Van Cleef sabia desde o início que aquele era o lar do tesouro que procurava. Dado que ele é um personagem esperto, experiente e ardiloso, abre-se esse precedente, mas a realidade é que por mais que o roteiro não é desenvolve essa questão.

Há diversas tipos de exploração dentro do faroeste italiano, algumas mais sérias e épicas como as de Leone, outras mais desconstruídas em relação a papéis heroicos, como a filmografia de Sergio Corbucci e outras menos compromissadas com discurso, ligadas só a heróis ou anti-heróis, como Sabata ou Ringo.

Dias da Ira parece querer pertencer ao primeiro tipo, mas não tem elementos suficientes para determinar ele como uma obra mais séria. O roteiro tenta ousar, se focando na relação paternal entre protagonistas, mas ao colocar uma missão a ser resolvida no meio do filme, faz o restante da duração parecer despropositada, sem um alvo.

A grande questão é que o motivo principal da trama é a relação dos dois heróis e dito isso, era preciso ter percalços. Basicamente o único ponto de desafio para Scott é a desconfiança em relação a Talby, reforçada pelos conselhos do velho Murph, que acusa o mentor do rapaz de estar utilizando ele como seu auxiliar descartável, fazendo dele um possível alvo em eventuais desventuras.

Os chefes da cidade tentam ludibriar o rapaz também, falam de seu mentor como se ele fosse um problema, acreditam demasiadamente em seu poder de convencimento e logo depois, aparecem reunidos em torno de Talby, tornando os momentos finais em trechos bastante confusos.

As suspeitas de Murph aparentemente não eram sem fundamento, Talby se aliou aos homens que detinham seu dinheiro e usaria Scott como bode expiatório. Não faz qualquer sentido esse tipo de cooperação, uma vez que o rapaz era apenas uma figuração em uma cidade pacífica.

Nesse ponto o script tenta rebuscar o que não necessita de refino. Histórias de cowboys podem ser desimportantes e focadas em ação. Boa parte do longa é assim e acerta por ser desse jeito.

Gemma faz bem o papel de homem incorruptível e demonstra que aprendeu bem a sua lição. Seu desempenho é de fato muito bom, com ele variando entre o papel de moço novo e herói já maduro. Ainda fecha a sua participação utilizando uma arma especial, que teria sido do lendário e histórico pistoleiro Doc Holliday, com o segredo de ter um cano mais curto, fator esse que seria uma vantagem por antecipar a chegada dos tiros.

Já Van Cleef tinha uma carreira de basicamente dois papéis, a do canalha malvado meio vilão ou do anti-herói de atitude sem escrúpulos, mas com algum código moral. Ao aceitar fazer o filme de Valerii, ele mistura ambos utilizando a máscara do homem velho e digno, abraçando também a condição de egoísta e manipulador.

Ainda assim, parece preguiçoso e incapaz de apresentar as nuances capazes de tornar ele um alguém dúbio e digno tanto de rejeição quanto de admiração.

Dia da Ira é uma boa história sobre mentor e pupilo. O longa consegue tecer comentários sobre gratidão e sobrevivência, narra uma boa trama de superação entre gerações e conta com uma atuação inspirada de seu herói. Seu pecado maior é a extensão, uma vez que tem quase duas horas, mesmo tendo uma história que é simples e não precisava se arrastar tanto.

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