A Órfã é um filme de terror famoso por seu final surpreendente, por seus sustos e por ter um visual único. O longa tem um início peculiar, mostrando a movimentação do casal Coleman para realizar o parto do seu terceiro filho, mas com um desfecho bastante sanguinário, que funcionaria como a previsão do mau que acometeria a família.
A sequência é uma boa demonstração do que a história proporciona, uma vez que flerta com o assombro e com o onírico. Kate é a mãe interpretada por Vera Farmiga e é levada para o parto. No caminho ela tem expressões de dor intensa, deixa um rastro de sangue atrás de cadeira de rodas que a movimenta, muito sangue mesmo, tanto que parece até a sujeira que um predador deixa depois de caçar.
O momento de introdução é obviamente um pesadelo, deixa patente que o aborto instantâneo causa em Kate um sentimento de culpa, como se seu corpo fosse o assassino de seu filho natimorto. Também resulta em um cartão de visitas, apresentado pelo diretor Jaume Collet-Serra, cineasta catalão que já havia sido elogiado por seu trabalho em outro filme da produtora Dark Castle, A Casa de Cera.
A perda dessa criança seria a primeira provação pela qual os Coleman passariam, ao menos em tela, já que seu passado já era marcado por questões espinhosas.
O maligno repousaria sobre a casa deles de maneira surpreendente e ainda mais soberana, se aproveitando da brecha deixada pela carência que cada um deles nutre.
Mas o que é mais fácil notar não é o sentimento de desolação deles, e sim o bárbaro visual, fruto do trabalho de Jeff Cutter como diretor de fotografia, potente demais, sendo um dos fatores que mais diferenciam a obra de seus pares.
Esse esforço estabelece a violência traumática da perda, coloca Farmiga em um pesadelo digno das torturas dos livros e filmes de Clive Barker, e dá uma prova do que virá.
Antes até dessa introdução se percebe um diferencial. O logo da Warner usa um colorido com neon, das pinturas, que a personagem infantil utilizaria no decorrer do filme. Mesmo antes da chegada da personagem antagonista se percebe algo espreitando, a pergunta que fica é por que o destino colocou esses dois rumos juntos.
A introdução da personagem de Isabelle Fuhrman é carregada de sensações mistas, varia entre a docilidade das crianças e uma tensão oriunda da paranoia, da percepção de que algo está errado a despeito das aparências.
Dada a rotina de quem toma muitos remédios e teve problemas com dependência química, se assustar é fácil, e há inúmeros exemplos disso na trama, como um acidente de carro com a filha mais nova delas, que por pouco não terminou na morte de ambas.
Para resolver a carência, eles procuram adotar a criança que Fuhrman faz, optam pela simpática e vocal Esther, uma menina com nove anos, que atraiu seu futuro pai através do canto, tal qual as sereias faziam nas lendas gregas, seduzindo com a voz os marinheiros de mente fraca.
Antes de sair, a irmã Abigail, interpretada por CCH Pounder, dá um aviso, de que eles deveriam se preocupar primeiro por ela ser russa, apesar de quase não ter sotaque, e também porque a outra família que cuidava dela, morreu em um incêndio, deixando somente ela viva.
Em alguma versão do roteiro os Coleman iriam adotar outra criança, que Esther mataria, para se tornar então a primeira opção. A escolha foi por adiar o primeiro assassinato e foi acertada, uma vez que demora a tratar a personagem como alguém malvado ajuda a construção do suspense.
O elenco do filme foi ganhando fama e vulto ao longo dos anos. Farmiga se tornou um ícone do horror tanto como a Lorraine Warren na saga Invocação do Mal, quanto interpretando Norma Bates no seriado Bates Motel, fazendo duas mães preocupadas com o bem estar dos seus.
Aqui ela brilha intensamente e em diversos micro papéis diferentes. Ela faz uma esposa inconformada, a mulher enlutada, alguém assustada e desesperadora (na violenta cena de introdução), e uma pessoa que não aceita o fato de ter sido ludibriada pela vilã do filme.
Furhman também está excelente, sua postura é diferenciada em cada uma de suas muitas faces, conseguindo levar bem a persona supostamente ingênua e infantil, mas mortal quando se exige.
Já o pai é feito por Peter Sarsgaad, ator também experiente em obras de horror como o filme de assassino serial A Cela e terror sobrenatural A Chave Mestra.
Ambos fazem papéis de artistas. A esposa toca piano e dá aulas, e ele é arquiteto, mas claramente gosta de pintura e queria trabalhar com essa arte, inclusive se interessa pelo trabalho artístico da órfã que eles adotam, já que a menina faz desenhos e quadros bastante bonitos.
Já as crianças são a menina surda Maxine (Aryana Engineer) e Daniel, feito por Jimmy Bennet, que também já tinha experiência no gênero, já que fez Horror em Amityville em 2005.
Os dois irmãos são bem diferentes, a Max cabe a doce e meiga menina indefesa, enquanto o garoto faz o resumo do quanto é fácil torcer por Esther, já que ele maltrata a irmã adotiva, a xinga, a humilha e comanda sessões de bullying com ela na escola.
Já Esther é simplesmente perfeita. Poliglota, educada, é prestativa, chegando ao cúmulo de treinar a linguagem de sinais para falar com sua irmã deficiente auditiva enquanto estava a caminho de casa, tem curiosidade em tocar piano basicamente para ter um assunto em comum com a mãe.
A diferença entre ela e outras crianças é que Esther não tem pudores, usa um vocabulário bastante adulto e desinibido, ainda mais para uma menina de nem 10 anos, que obviamente só é encarado com normalidade por Kate uma vez que ela e o marido se pegam na cozinha, um ambiente muito aberto.
Os Coleman são uma família pacata, mas claramente falta noção e responsabilidade. Os adultos transam em cômodos comuns, não fazem cerimônia nenhuma para o coito, fora isso, o pai da família desacredita cada um dos relatos da esposa, que é fragilizada graças as diversas tragédias comuns a eles.
O tempo inteiro o marido faz questão de tratar ela como uma desiquilibrada, o que faz o estado mental da mulher piorar, aumentando até o índice de acidentes automotivos, fora a lembrança de um quase incidente onde Maxine caiu no lago congelado da casa.
Enquanto eles brigam, o marido relembra os erros da mulher, basicamente para se blindar do fato da esposa não ter digerido bem uma traição dele no passado.
Da parte da mocinha, há um comportamento bastante suspeito. Ela decide matar um pombo com um golpe de misericórdia duro e seco após Daniel acertar ele com uma arma de paintball.
Também carrega uma Bíblia antiga, usa uma gargantilha que parece uma coleira e quando alguém a toca, ela solta gritos estridentes, incluindo aí uma tomada peculiar, com um close colado na face da menina, que ajudam a determinar que algo em sua mente não está exatamente em ordem.
Esses parecem momentos comuns ditos de maneira isolada, são comportamentos esperados de uma criança que chega a uma casa nova, ora, matar um animal agonizante é algo até humanamente esperado, mas é também uma determinação de uma maturidade não esperada para alguém tão novo.
Dessa forma Esther tenta esconder quem ela é, os acessórios de pescoço e pulsos fogem um pouco do modo comum de uma menininha se vestir, e são bons indícios dos segredos que estão sendo guardados.
O maior mérito de Serra é estabelecer tensão por praticamente todas as duas horas de filme. É perceptível que está torto naquele belo retrato familiar supostamente perfeito. Esther age de maneira sonsa, cercando a vizinhança de pequenas maldades, mas nada que seja flagrantemente maldoso.
A cena em que ela vitima uma criança em um parquinho, provoca dúvidas quanto a intenção. A situação é cuidadosamente pensada, pistas falsas sobre o paradeiro de Esther são plantadas, e uma subida brusca de volume acompanha a sequência, artifício que esse que seria um clichê negativo, na época era uma novidade.
Mas a realidade é que as conveniências do filme invertem protagonismo e antagonismo. Saber que Esther é na verdade uma assassina interpretada por uma atriz mirim varia bem entre o encantador e o macabro.
A construção da personagem é revigorante para o fã de filme B, e dado que todos em volta são pessoas horríveis, sobretudo os homens, se torna uma alegria torcer para que ela chacine pelo menos essas pessoas.
As imperfeições do filme aparecem da metade para o final, como o retorno da freira, que avisa muito tardiamente que suspeita de Esther ter matado a família Sullivan.
O roteiro de David Leslie Johnson baseado na história de Alex Mace abre uma caixa de Pandora, com um comportamento agressivo desmedido da vilã, que finalmente, consegue causar um acidente de trânsito que termina em fatalidade.
A mudança é brusca na ação, ela ameaça os irmãos, chega ao cúmulo de falar que cortará o pinto de Daniel com um estilete, até faz o menino se urinar.
E mesmo com essa subida de violência, John é incapaz de ouvir sua esposa, ficando cego para os indícios de que a violência vem de alguém que mora com eles. O personagem é a encarnação e o exemplar do comportamento típico de quem pratica o gaslighting.
Ele parece encantado pela nova moradora da casa, incapaz de acreditar na esposa, e faz questão de reforçar a pecha de que a mulher é maluca.
Considerando que Kate se auto sabota, voltando a beber depois de ter largado o vício alcoólico, o roteiro dá indícios que favorecem John. Ainda assim os crimes vão se tornando difíceis de ignorar, a tentativa de Esther em incriminar sua mãe também é fácil perceber.
No entanto o maior dos pecados da antagonista é a crueldade sentimental. Ela não tem receio em invadir a intimidade de Kate, lê seu diário e fala abertamente sobre o trauma de carregar uma filha morto no ventre por dias. E depois disso tudo, Kate consegue ser tola de não mandar prende-la.
A "menininha" consegue ainda causar grandes estragos, e virar contra quem a adotou a culpa por seus maus atos. Não basta ela tentar matar as crianças, ainda se permite que ela tenha espaço para terminar o serviço de violência.
Os últimos trinta minutos do filme são completamente insanos, incluem Esther tentando seduzir seu pai e uma conversação bastante expositiva. O doutor Värava (Karel Roden) explica o drama de Leena, fala das cicatrizes escondidas por gargantilha e pulseira - o que gera uma incongruência, já que ela coloca gesso no braço, e ninguém repara nos machucados - e em como isso era importante para que ela escondesse sua identidade.
A condição da personagem tem um nome, hipopituitarismo. Ela tem 33 anos e por conta da enfermidade, não consegue crescer. Aliado possivelmente a uma esquizofrenia, ela finge ser uma criança, fato que reafirma o trabalho exitoso de Fuhrman, já que faz bem uma menina, que parece ter 9 anos, e uma assassina malvada e deficiente, e as duas igualmente bem feitas, sendo a atriz mesmo bastante nova, em torno de nove anos na época em que gravou.
Collet-Serra acerta em explorar os chavões de filmes de crianças assassinas, mas erra ao conceder ao espectador pistas demais. Fora as óbvias ligadas ao fato de Esther ser uma adulta com nanismo, ainda se evidencia que nesse universo, acidentes acontecem o tempo todo. Isso tira a força dos eventos finais, diminuindo seu caráter dúbio.
Kate se libera muito facilmente do hospital. Teoricamente ele deveria estar presa, já que se descontrolou e agrediu a filha adotiva. Fica subentendido que ela ficou no hospital para cuidar do filho e seria medicada, para se acalmar.
Se se ela estava liberta, por que preferiu ficar no hospital, deixando seu esposo e Maxine com a pretensa assassina de seu outro filho?
Ao menos esse trecho é o momento artisticamente mais inspirado do filme, um trabalho de montagem primoroso assinado por Timothy Alverson, mostrando a crueza de Esther se desmontando, chorando por ter sido rejeitada por seu pai adotivo enquanto tira a maquiagem, ao passo que a descoberta da mãe ocorre no hospital, seguidas de uma cena de assassinato bem seca e violenta.
Os créditos finais são mostrados na mesma configuração de pintura roxa e neon, com detalhes escondidos, revelando ao pai incrédulo o plano da mulher que se infiltrou o seu lar. O aspecto é bem pensado, uma ideia visualmente potente e inteligente do filme.
A Órfã tem uma ideia original, mas esbarra em seu próprio caráter repetitivo, se sustenta graças ao cuidado com as cenas finais que mostram a patética construção de cenário erótico que Leena tentou fazer, e claro na boa atuação de Fuhrman e Farmiga, além de mostrar um monstro que demora a morrer, com uma boa apelação do clichê de assassino imortal, ainda apresenta uma personagem mortal, e que é assim por fazer todas as pessoas subestimarem seu potencial destrutivo.
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