Desde os anos 70 já se falava da corrupção de Maluf, que entre 1969 e 1971 foi prefeito de São Paulo. Neste pequeno período ele se envolveu em um “problema” referente a um edital que contemplaria uma empresa para cuidar da decoração das ruas da cidade. O edital foi concretizado e a beneficiada recebeu uma bolada para realizar aquilo que, na cabeça de muitos, se tratava apenas de um pretexto para que a verba fosse desviada. A decoração foi feita, uma espécie de estrelas gigantes de plástico amarelo estavam nas ruas, mas de acordo com alguns documentos assinados por vereadores da época, entre eles José Maria Marin, a empresa havia realmente superfaturado o valor necessário e por isso foi beneficiada ganhando o edital, não porque merecia, mas porque alguém queria. Complexo, não? Porque estou falando disso aqui? Bem, no escritório do amigo cineasta de pornochanchada Pedro Carlos Rovai, estava Hector Babenco, na época vendedor ambulante e vendedor de túmulos, que tinha uma crescente paixão pelas telonas e diversos amigos do cinema emergente na época. Nesse dia especificamente, ouviu o telefone tocar quando Pedro Rovai não estava e atendeu: “Era uma moça da Secretaria de Cultura dizendo que queriam fazer um documentário para mostrar que, ao contrário do que diziam, a iluminação da cidade estava linda e que o dinheiro não havia sido desviado coisa nenhuma e que a obra tinha sido feita. Eu já tinha realizado um filme pro MASP, então não contei nada pro Pedro Rovai e fui lá ver como é que era e quem foi conversar comigo foi o Paulo Cotrim – que era dono da João Sebastião Bar – e ele me adorou, era Natal e no começo do ano que ia entrar, ia ter uma espécie de concorrência para o saber quem ia dirigir, mas o Paulo Cotrim gostou tanto de mim que ele falou que o filme era meu, no dia da tal concorrência nos reunimos, eles abriram um envelope e disseram que eu tinha ganho. Lá, tinha um monte de gente importante de documentários da época, inclusive o Jean Manzon, e eu, que ninguém sabia quem era, tinha ganho na mamata a concorrência.”
O filme passaria antes das sessões de cinema, então era um ótimo material com uma ótima grana. Para fazê-lo, Babenco reuniu uma equipe pequena, mas muito boa, entre eles o fotógrafo Peter Overbeck, que no primeiro dia de filmagem, com a câmera no Largo da Batata virada para a Rua Teodoro Sampaio, que cintilava com as luzes, perguntou a Hector:
– Ok, a câmera está onde você quer. Que lente você quer que eu ponha na câmera? – Disse Overbeck para Hector. Uma pausa se seguiu e com seu jeito extremamente sincero de ser, respondeu:
– Por quê? Você tem mais de uma?
O jovem de 24 anos, inocente e com uma paixão pungente em seu corpo, se tornaria um dos mais respeitados diretores do mundo, mas naquela noite, com a câmera sem lente e ouvindo atentamente a explicação sobre Teleobjetivas e grande-angulares, a mente do corajoso Argentino, só fervilhava e fervilhava, guardando o melhor para depois.
Hector Babenco
O Argentino que abriu as portas do Mundo para o cinema Brasileiro
Nascido na Argentina nos anos 40, Hector foi criado como um garoto judeu sem muita grana, que se mudou bem cedo para Mar Del Plata e cresceu naquele ambiente. Descobriu o cinema da mesma forma intensa com que levaria seu ofício a vida toda: Com uma ereção. “Me lembro de uma cena em branco e preto de uma mulher que corre pelos médanos de areia, com um vestido com um grande cinto preto, uma blusinha justa, os seios bem empinadinhos, bem biquinho, como era o charme na época, o ano era 1953 e um grupo de meninos dentro de um carro conversível seguia ela com uma super-lanterna. Era uma cena de altíssima energia sexual, essa perseguição, praticamente uma curra para a moral da época e para as nossas sensações. Se mostrar isso para um menino de sete anos hoje, ele dá risada. Mas senti que alguma coisa estranha estava acontecendo comigo. Obviamente foi a primeira vez que eu tive uma relação sexual, com um filme”.
Esse desejo estranho, um pouco animalesco, mas extremamente genuíno, não só despertava uma paixão platônica pelo cinema como o formava para ser um diretor que foi primeiramente um bom espectador. A educação extremamente rígida e uma cultura católica, nas suas palavras, “imbecilizadora” também influíram muito na formação daquele que se define como: “Um gordinho judeu em um país nazista”. Judeu, mas não praticante, Babenco sofreu muito toda a infância escolar, e ao desistir do colégio no segundo grau, trabalhou em uma livraria e depois com seu tio vendendo camisas, guarda-chuvas e outras tantas bugigangas. Logo começou a se encontrar com os loucos de Mar Del Plata, principalmente os do teatro, e entre os vários grupos que frequentava com seu papo prodígio e sua cabeça aberta, encontrou a moça que lhe tirou a virgindade, uma louca, literalmente, uma mulher que era bem mais velha que o jovem Hector e que já havia passado por algumas clínicas para pessoas com esquizofrenia e etc. O resultado foi uma paixão das mais pungentes, forte e intensa como toda a vida do argentino viria a ser.
Depois de até mesmo selarem um pacto de morte com medicamentos, o que quase o levou à morte, o jovem de 17 anos, romântico, poético, contra o exército e que faria de tudo para fugir desta tarefa, ouviu de alguém que se ele quisesse ser diretor de cinema deveria viver, conhecer coisas e a melhor forma de fazer isso era saindo da Argentina. Com uma história de que iria para São Paulo visitar uma tia, aos 17 anos desembarcou no Brasil, terra que, ainda sem saber, seria sua nova casa.
Em São Paulo, logo se deparou com a loucura de “Deus e o Diabo na Terra do Sol” de Glauber Rocha, e aquilo mexeu com seus hormônios mais uma vez. Se recusou a viver na casa da tia, mas aceitou o trabalho de vendedor de porta em porta, pois sua tia tinha uma loja de roupas na Rua Augusta. Os conselhos do tio serviram muito, e misturados com a lábia boa que tinha, Babenco se tornou um perito em vender para todos o que quer que sua tia colocasse em sua mala. Como viver para fazer cinema não incluía apenas ficar no Brasil, Babenco foi para a Europa em busca de aventura. Ao chegar à Paris, após ajudar alguns homens a empurrarem um carro que não queria pegar por conta do frio terrível que Janeiro trazia, conseguiu abrigo em um apartamento sofrível que há anos não via uma faxineira: “O homem que me acolheu falava muito rápido o Francês e eu entendia muito por cima o que ele falava. O apartamento era um nojo, só tinha caixas de pizza, uma escumadeira onde ele colocava batatas pra fritar, alguns quartos horríveis e um específico, que abrigava algo que deveria ser um berço. Ele explicou que deveria existir uma criança, mas mais uma vez não entendi coisa”. Com um colchão no chão sujo e alguns goles de vinho com batata frita, Babenco dormiu, mas pela madrugada acordou com os gritos do homem: “Vousêtesun Chrétien!!!”. Assustado com os gritos e com o sofrível francês escolar, Hector havia entendido que o cara lhe perguntava se ele era um cretino: “E ai eu tentava explicar o porquê eu não era um cretino, mas nem teve jeito, ele me botou na rua”.
Entre as muitas peripécias que ele passaria pela Europa, ainda estariam reencontrar uma antiga professora da época do colégio que, casada com alguém da indústria cinematográfica, o colocou para ser figurante em alguns filmes, que segundo ele mesmo: “Quando eu era figurante eu me escondia, pois queria mesmo era ver como se fazia cinema, mas participei de figuração em filmes de Sergio Corbucci, Giorgio Ferroni e tantos outros spaghetti da época”. Cansado de lavar pratos e já com 20 e poucos anos, a pulga volta a coçar atrás da orelha e Hector retorna para São Paulo: havia amigos aqui, havia um calor aqui que ele não entendia, mas o fascinava, havia uma sinergia aqui e ao voltar e procurar seus amigos, viu que muitos estavam engajados contra a ditadura, que muitos já haviam morrido na luta armada ou estavam em vias de serem postos para fora do país, e mais uma vez voltou a vender coisas, desta vez túmulos do cemitério do Morumbi e, como antes, se saiu muito bem, mas falar sobre vida e morte, para vender, contar histórias inusitadas aos amigos já não lhe satisfazia. Estava na hora de completar o ciclo e fazer filmes, e, cara de pau como sempre foi, certa vez ao circular de ônibus pela Av. Paulista notou a beleza do inusitado prédio que mais tarde veio saber se tratar de um museu, e de uma obra arquitetônica revolucionária, o MASP – Museu de Arte de São Paulo: “Entrei como qualquer visitante e tomei coragem, procurei o responsável pelo museu e disse que queria fazer um filme do lugar. Sem mais nem menos”. Direcionado para falar com Luiz Osaka, na época diretor técnico do museu, contou sua tarantela e Osaka direcionou Babenco para falar com o crítico Pietro Maria Bardi que lhe disse: “Olha, não sei. O Nelson Pereira dos Santos falou que faria um filme sobre o MASP, mas ainda não fez, não falou mais nada”. Do outro lado da grande mesa, o jovem Argentino consentia com a cabeça e disse: “Bom, eu gostaria de fazer o filme”. Bardi logo questionou: “E o que o senhor fez?”. Babenco logo se adiantou com extrema calma e sinceridade: “Bom, eu não fiz nada, mas gostaria muito de fazer esse filme”. Novamente convencendo outra cabeça dentro do importante museu, foi levado para conhecer melhor todo lugar, suas plantas, suas origens e logo foi levado para encontrar Raquel Arnaud, na época Diretora do Museu e que bateria o martelo quanto à produção e procuraria formas de viabilizar monetariamente o projeto: “Acabou que ela era linda, eu me casei com ela, tive uma filha e vivi 15 anos muito felizes da minha vida, o que possibilitou eu ser essa pessoa que hoje vos fala.”
Alguns documentários depois, em 1975, com a ajuda de vários amigos e colaboradores, “O Rei da Noite”, primeiro longa de Babenco com Paulo José e Marília Pera, ganhava as telas. Meio Dalton Trevisan, meio Oswald de Andrade, conta a história de Tezinho, malandro que, amaldiçoado pelo destino, tentou seguir o caminho certo, mas sem conseguir se manter, logo decidiu trilhar uma vida fácil. De um melodrama quase novelístico e de uma sensibilidade sexual e dramática típica de um argentino, o filme é um grande exercício para o diretor que mais tarde realizaria clássicos: “Você não sabe de sua masculinidade até transar pela primeira vez, então “O Rei da Noite” me provou que eu era capaz de fazer, e não me envergonho do filme em nada. As pessoas viram, gostaram e foi de alto valor acadêmico pra mim, se é que assim posso dizer”.
De enredo e direção elegante, com bela fotografia, movimentos arrojados e fora dos padrões vigentes exigidos pelo cinema novo, o filme criou polêmica nos círculos da época, e Babenco foi vítima de críticas externas – por parte dos críticos acostumados com o marginalismo e extremismo visual do cinema novo – e internas –“Marília Pera me disse assim que acabaram as filmagens: ‘Você está muito aquém do que eu esperava de um diretor. Você é muito novo, ainda não sabe dirigir atores’ um sabão elegante”. – mas ele havia aprendido de vez a fazer cinema com as próprias mãos, e seu próximo projeto – "Lucio Flávio, O Passageiro da Agonia", de 1977 – história de um personagem real, inspirado no livro jornalístico de José Louzeiro e que é muita coisa, mas principalmente, um retrato áspero, cru e jornalístico de uma década bombardeada por diversos problemas, inclusive pela violência policial e pela violência dos marginalizados, excluídos e reprimidos, seria um uma bela obra em sua filmografia.
“Bandido é Bandido e Policia é Policia”, diz Reginaldo Farias na pele de Lucio Flávio, que impressiona como herói bandido. Forte, o filme é como uma navalha quente em cima da ferida aberta. Mostra a podridão do corpo policial e suas raízes no crime, um jornalismo fraco e oprimido pela censura e um povo, que assim como os bandidos no filme, corre para um lado, se esgueira pelo outro, mas no fim é esmagado pelo enorme pilão.
Com uma direção apuradíssima, o filme continua com o que se tornaria marca de Babenco, que é o seu cuidado técnico, em particular com os enquadramentos e os movimentos de câmera, e aqui o "sabão" que Marília Pera havia lhe passado, havia sido trabalhado e todas as atuações são de extremo cuidado, de extrema força e dizem muito, contribuindo para a narrativa. Algumas gordurinhas permeiam a obra, mas nada que tire sua a força, se mostrando pouco datada e de força narrativa equivalente a qualquer grande filme produzido na época em todo o mundo.
Seu próximo projeto, “Você Nunca Viu uma Mulher Feito Shirley”, que contava a história de um homem que se apaixonava por uma mulher e muito depois descobria que ela na verdade era um Travesti e enfrentava seu próprio preconceito, pois a amava, estava em pé de preparação, quando um amigo fotógrafo de Hector o chamou para ajudá-lo em uma foto-reportagem que o mesmo faria na FEBEM do Tatuapé, instituição de menores infratores que era reconhecida nacionalmente como um lugar violento e uma verdadeira escola do crime para os aspirantes a delinquentes em São Paulo. Horrorizado pelo que via, pela violência que aqueles meninos e aquelas paredes haviam testemunhado, Hector voltou para casa certo de que tinha de falar daquilo. Sua primeira imersão foi a leitura do livro do amigo e ponto de partida para seu filme anterior, José Louzeiro e seu livro “A Infância dos Mortos”, inspirado no caso dos meninos de Camanducaia, município mineiro onde quase 100 garotos foram espancados e jogados em um precipício em meados da década de 1970. A força das imagens criadas pelo autor fez com que o livro servisse de base para o filme que Hector faria a seguir, “O Mundo é Redondo Como uma Laranja”.
Em um processo de mais de um ano de pesquisa, Hector já tinha em si a identificação necessária com o tema para que fizesse um relato devastador, realista e verdadeiro, não de um modo recortado, contando a história de alguém que havia passado por aquilo, mas criando meninos de papel, que se nascessem de verdade, nas mesmas condições que qualquer um às margens da grande metrópole paulista dos anos 70, passariam por aquilo que os personagens que vemos na tela passam, e que por mais terrível que possa realmente ser, outras milhares de crianças passaram e passarão.
Construído em 4 grandes atos, o filme aborda a questão social/política desta instituição que pune e vicia os menores os tornando monstros institucionalizados, a fuga deste lugar punitivo e a necessidade da sobrevivência, tirando dos outros aquilo que os negaram, a tentativa da reconstrução familiar, buscando nos parceiros de crime o pai, a mãe, a afetividade e a base e por fim, mostrar, assim como em seu filme anterior, que todos estão na prensa que esmaga, e não existem muitos caminhos para aqueles que desde o princípio foram destituídos das coisas mais básicas para um ser humano. Esta última sequência, que no filme é representada por Pixote, o protagonista da trama, a tentar se equilibrar nos trilhos de uma abandonada linha de trem caminhando para um futuro não muito colorido, renomeou o filme que passou a se chamar “Pixote: A Lei do Mais Fraco” de 1980. O longa fez de Babenco um diretor mundial, com um estilo sólido, um contador de histórias ávido por sentimento e humanidade, e não sentimentalismo, péssima vereda por onde alguns diretores se refugiam e levam suas filmografias em caminho ao medíocre.
Com visual forte e direção primorosa a cada plano, Babenco ‘criou’ o cargo do Preparador de Elenco junto a Fátima Toledo, que mais tarde se tornaria famosa nessa função, e enterrou as dificuldades do cinema brasileiro na época como o financiamento, o péssimo trato com o áudio e a falta de arranjo em movimentos de câmera e composição visual, entregando ao público um filme único, que conquistou o Brasil e o mundo, recebendo honrarias muito maiores que seu filme anterior – que ganhou diversos Kikitos de Ouro e o prêmio de melhor filme na Mostra de São Paulo – sendo indicado ao Globo de Ouro de Melhor Filme Estrangeiro, ganhando Menção Honrosa no Festival de San Sebastián, o Leão de Prata em Locarno, Melhor Filme Estrangeiro no Los Angeles Film Critics e no New York Film Awards Critics, além de dar o prêmio de melhor atriz para Marília Pera na Sociedade Nacional de Críticos de Cinema dos EUA e no Boston Society of Film Critics.
Críticas empolgadas de Pauline Kael e Roger Ebert ainda viriam para fechar a chuva de louros que o filme trouxera, mas: “Por outro lado eu estava quebrado, não tinha dinheiro para pagar o plano dentário da minha filha. Fiz dois filmes que juntos tinham mais de 10 milhões de espectadores e eu duro, então eu disse: ‘Tenho de fazer um filme que dê certo! Eu vivo disso!’”. Endurecido pelo mercado brasileiro fragilizado pela dura inflação e toda a hierarquia do meio cinematográfico, onde “o ingresso custava 80 centavos de cruzeiro, o cinema te roubava, pagava pra distribuidora que ficava com outra metade e se sobrava um troco, te pagava em 90 dias fora um mês, e quando o dinheiro que você ganhou no outro mês chegava na tua mão, ele valia 40% menos do que quando você ganhou, e você que era o primeiro que bancava o filme recebia por último e era uma merreca, então não dava”. Compreendendo melhor o mercado externo, Babenco entendeu que seu filme havia sido bem recebido lá fora, mas o fato de ser falado em português dificultava sua distribuição para um público maior, deixando ele restrito a um pequeno público, o que não agradava nem um pouco o diretor, que queria atingir o maior número possível de pessoas. Convencido de que a melhor saída era o mercado e que o mercado estava nos países de origem anglo-saxônica, decidiu que faria um filme totalmente em inglês, mas: “Eu não podia fazer ‘Pixote’ em inglês, tinha de ser um filme que em seu conteúdo em sua forma, possa ser feito em inglês e que esse fato não agrida a etnia, a origem do filme”.
Dado o ponto de partida, a busca começou e logo Babenco se deparou com a obra do também Argentino, na época morando no Brasil, Manuel Puig. “O Beijo da Mulher Aranha”, originalmente publicado em 1976 se tornou o projeto a ser filmado.
Já vinculado ao projeto, o produtor e cineasta experimental poliglota David Weisman logo se conectou com o temperamento e a energia de Hector, que já tinha um plano de ataque de como levantar o dinheiro para o projeto. Weisman, que havia feito um filme –“Ciao! Manhattan” de 1972 – e produzido um par de outros, passou a buscar investidores para a película, que na época estava sendo escrita por Leonard Schrader, colaborador frequente de Weisman, e seria atuada por Burt Lancaster e Raul Julia.
Sem falar muito inglês, mas aprendendo, Hector trabalhava: “Cotovelo a Cotovelo” com Leonard e um tradutor, até que pôde o dispensar. Em pouco mais de um ano o roteiro estava pronto em duas línguas, o orçamento levantado entre o Brasil e os Estados Unidos e, diferente do que se imagina por ser um filme em inglês com grandes astros, nada foi muito incomum em relação à outras produções que Babenco havia encabeçado antes: “Não tínhamos muito dinheiro, ao contrário do que pensam todos. William Hurt me ligou, pois havia lido o roteiro e sabia que Burt Lancaster não mais estaria no elenco por motivos de saúde e perguntou se podia fazer uma leitura, eu me encontrei com ele e o aceitei no elenco, mas eu lhe disse que não tínhamos dinheiro, e ele aceitou participar assim mesmo, ou seja, nem Hurt nem Raul Julia receberam mais do que a passagem e o dinheiro necessário para ficar no Brasil durante as filmagens. Buscamos financiamento com quem estivesse a fim de se ariscar no filme. As cenas de Paris na ocupação foram gravadas em São Paulo mesmo, em um apartamento que alugamos, com móveis Art Deco de uma amiga minha. Produzimos placas com Luxemburgo a direita e colocamos no Trianon. Coisa de Chanchada, o filme fez o sucesso que fez por causa da força que o roteiro tinha e do esforço que colocamos sobre ele, assim como foi com Pixote”.
Babenco se apropria da obra de Puig para fazer um estudo muito interessante sobre metalinguagem. O filme dentro do filme é citado diversas vezes, muitas delas para fugir da prisão em que está a dupla de protagonistas, ao mesmo tempo em que serve para botar o dedo na ferida da América Latina e suas ditaduras, além de apresentar uma excepcional Sônia Braga em três papeis distintos: a Mulher Aranha, Leni, a espiã e o amor de Valentin na vida “real”. É uma crítica sólida ao totalitarismo e ao próprio preconceito sexual, visto que o personagem que mais chama a atenção, Molina, é um “gay clássico” do cinema e da literatura, mas com contornos muito mais profundos do que uma simples afetação ou feminilidade latentes. Por sinal, William Hurt se entrega totalmente ao seu personagem, sendo merecedor de todas as láureas que recebeu na época. O ator cuida sempre para não cair no escracho e no deboche, tornando Molina uma pessoa totalmente real, mesmo que viva num mundo de fantasias, aplacado, especialmente, pelas desilusões amorosas que sofreu. Seu colega de cena, o saudoso Raul Julia, não fica muito atrás, mostrando todo o sofrimento que os rebeldes de um regime militar sofrem, sem abrir mão de sua visão política. Um embate forte de ideias emocionais e racionais.
Com mais um filme que lida com a ditadura e as chagas que ela abre no interior de nossa sociedade, Babenco fecha uma trilogia sobre a violência militar em nosso solo, colocando inclusive Milton Gonçalves mais uma vez como policial a serviço da ditadura, pela primeira vez em "Lucio Flavio" como 132, e aqui como um personagem sem nome.
Em resumo, "O Beijo da Mulher Aranha" não é apenas um filme político-gay-contra-opressão. É, antes de tudo, cinema de extrema qualidade que fala da própria sétima arte como arma de combate e de ilusão. Algo que muitos tentam, mas poucos conseguem unir.
Show de direção, é um filme extremamente econômico e utiliza-se de todos os recursos possíveis para contar sua narrativa, sem destoar ou parecer pretencioso, entregando uma obra densa, mas deliciosa de se assistir.
Sendo honrado com indicações para os principais prêmios no festival de Cannes, Globo de Ouro, BAFTA, Seattle International Film Festival e no Oscar de 1986, levou somente os prêmios de Melhor Ator, para Willian Hurt, mesmo assim, tornando o filme Brasileiro falado em inglês que custou menos de 3 milhões e faturou mais de 17 milhões, um dos melhores da década, levantando e consagrando de vez o nome de Hector Babenco como um grande cineasta.
ESSE ARTIGO CONTINUA NO PROXIMO CINERAMA....
Imagens: Arquivo Cinemateca Brasileira
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