Jogos Mortais: Jigsaw é um filme de horror estadunidense que explora os clichês de narrativas sobre serial killers, além de se valer espólios da saga Jogos Mortais. Capitaneada pelos irmãos Spierig e lançado em 2017, é uma tentativa de recontar a mitologia em torno do assassino em série John Kramer.
O longa tenta se diferenciar do seu anterior Jogos Mortais: O Final, abrindo mão de boa parte dos tropos visuais típicos da franquia, fugindo do que deu errado na saga, em especial nos últimos três capítulos da cinessérie.
O primeiro sinal de que o filme era super diferente dos outros é o abandono do nome e da numeração. Esse não é chamado de Jogos Mortais VIII e sim Jigsaw. Em algum ponto da produção esse se chamaria inicialmente Saw: Legacy.
A distribuidora brasileira ignorou essa questão, colocando o nome da franquia antes do termo escolhido. A obra também pode ser encontrada pelo nome original nos streamings. No resto do mundo, teve pequenas variações na nomenclatura, como Jigsaw: O Legado de Saw, Saw VIII, Saw: Legacy, Jigsaw: El Juego Continúa.
Essa é mais uma produção do tradicional estúdio Twisted Pictures, dessa vez, junto a Serendipity Productions e A Bigger Boat. Foi distribuído novamente pela Lionsgate e assim que o longa estreou, foi dado sinal verde para o nono e o décimo episódios da série, a saber Espiral: O Legado de Jogos Mortais, de 2021 e Jogos Mortais X, lançado nesse ano de 2023.
O roteiro mudou de mãos. Saem Patrick Melton e Marcus Dunstan e entram Josh Stolberg e Peter Goldfinger, dupla essa de Pacto Secreto e Piranha 3D. Vale lembrar que Melton e Dunstan vieram da mesma franquia, já que escreveram juntos Piranha 2 (ou Piranha 3DD), ou seja, a franquia Piranha, em seu reboot, tem grande ligação com Jogos Mortais, especialmente após a saída de Leigh Whannell dos roteiros, pós Jogos Mortais III.
Apesar de ser uma ruptura com o antigo, houve o cuidado de chamar gente da produção dos outros filmes, a fim de garantir alguma identificação com o que foi estabelecido como "marca" de Saw.
Se destacam dois nomes, do compositor Charlie Clouser e do montador Kevin Greutert, que retorna a função depois de ter dirigido Jogos Mortais VI e Jogos Mortais: O Final, além de Jogos Mortais 10, lançado obviamente depois dessa obra analisada.
A direção de Michael Spierig e Peter Spierig é acostumada com cinema de gênero. Os dois fizeram juntos Os Canibais, 2019: O Ano da Extinção, O Predestinado e A Maldição da Casa Winchester.
O longa tem vários dos produtores antigos, como o trio Gregg Hoffman (in memorian), Oren Koules e Mark Burg, além da produção executiva de Peter Block, Jason Contantine, Daniel J. Heffner, Stacey Testro, James Wan e Leigh Whannell.
O que de fato mudou - e bastante - foi a fotografia, assinada aqui por Ben Nott, cinematografo acostumado com filmes e séries de horror, como Mansão Marsten, Noite do Terror e Operação Zodíaco. Ele trabalhou com os Spierig em alguns filmes, especialmente em O Predestinado.
Os produtores resolveram surfar na onda conservadora oriunda da eleição de Donald Trump nos Estados Unidos, colocando o slogan Make America Bleed Again, que é uma corruptela de Make America Great Again. Apesar de ser apenas uma piada, isso ajudou a fazer a fita parecer pior do realmente é em matéria de reacionarismo dramático.
Como John Kramer é um personagem muito moralista, obviamente que esse material de divulgação não pegou bem, afinal, filmes de assassinos geralmente são chamados de reacionários, mesmo quando não são assim.
O boneco Billy é reapresentado aqui, com um design diferente, com olhos neon que são uma aparência de porcelana mais polida, além de ter cabelos mais longos e cacheados. A ideia de querer tornar ele diferente foi alvo de muitas piadas, algumas pessoas falavam que ele estava em fase de transição capilar.
É o tipo de interferência tola, que mira em tentar tornar um objeto tradicional em algo diferentão, mas que esbarra na mesmice, já que as ligeiras mudanças são pouco notáveis e absolutamente gratuitas.
A narrativa é apresentada de maneira apressada e frenética. Em um ambiente aberto e urbano é mostrando um homem latino, Edgar (Josiah Black) que segura um controle remoto com gatilho. Ele exige a presença de Halloran, policial investigativo, feito por Callum Keith Rennie, que vai junto ao detetive Keith Hunt (Clé Bennett) ver o sujeito.
A interferência do agente acaba atalhando o início dos jogos, já que o homem armado acaba levando tiro, fato comum em ações policiais, diga-se, já que foi um disparo para desarmar e não matar o rapaz.
A questão aqui é o abandono de uma estética realista, até esse ponto o filme parecia sóbrio. O tiro foi tão agressivo e certeiro que decepou a mão do sujeito, em um efeito que faz lembrar os exagerados filmes de Robert Rodriguez, em especial, o engraçado Machete.
Depois que Edgar apertou o gatilho que lhe cabia, aparece uma armadilha coletiva, que envolve pessoas com correntes presas ao pescoço, com baldes nas cabeças.
Ao menos se acerta na abordagem visual, que é muito mais limpa, culpa da já citada fotografia de Nott. Saíram os filtros esverdeados horrorosos para entrar um método de filmagem mais clean, que deixa tudo mais claro, fácil de compreender, além de garantir a obra um aspecto mais bonito. O trabalho da direção de arte também acaba sendo bastante contemplado com essa escolha estética.
Até os momentos corriqueiros, como a apresentação dos personagens, acabam tendo alguns trechos belos. Os carros caros e os equipamentos ultramodernos da polícia investigativa demonstram isso, assim como a armadilha coletiva, que é enquadrada com uma qualidade de quadro considerável, cheia de detalhes legais, com uma arquitetura distante do rústico que o Kramer de Tobin Bell fazia.
Isso depois traria um ligeiro problema, que abordaremos na parte do texto com spoilers.
Também há bons efeitos práticos no gore. As feridas, a exposição de sangue, vísceras etc é bem utilizada.
Também há um avanço tecnológico considerável, com a (tão esperada) aposentadoria das velhas fitas cassetes de Jigsaw, para o uso de pendrives, que são encontrados no corpo de uma vítima, justamente no pedaço de quebra cabeça talhado na pele da pessoa.
A comunicação de Jigsaw evoluiu e ainda bem que isso ocorreu. Isso aliás reforça a ideia de que John Kramer de fato faleceu, há 10 anos, mais até do que a exposição textual que explica isso.
A armadilha coletiva tem vários problemas. Um deles é a construção narrativa do jogador que é mais proativo e mata as pessoas, para abreviar a agonia de jogar. Obviamente que os outros vitimados olham para esse alguém de maneira negativa e a grande questão é que isso é apresentado como se fosse algo revolucionário, mesmo tendo ocorrido várias vezes, em especial em Jogos Mortais V.
A outra questão são trechos do jogo que dependem da sobrevivência de um jogador específico, que poderia ter morrido antes. Isso se também viu antes, principalmente em Jogos Mortais II.
Se por um lado os Spierig deram uma nova cara e novo estilo a saga, por outro parece que esse Jigsaw é um fanfilm diferentão, que mostra outro tipo de abordagem sobre a mesmíssima história de sempre.
Os legistas ficam fascinados com a possibilidade de estarem vendo o trabalho de John Kramer, especialmente se considerar que ele morreu há tempos. É legal ver algo da saga com um trabalho mais bonito de imagem, mas também fica a sensação de que o público está sendo tapeado, já que é o mesmo prato de sempre está sendo servido com novos temperos, embora sejam poucos.
A pretensão de estar servindo uma refeição rebuscada esbarra na mesmice e pouca variação de gosto, ou no caso da narrativa, de temática mesmo. Servir Jogos Mortais com televisões mais finas, com tecnologia atualizada ainda é o que é, ainda é Jogos Mortais, é mais do mesmo, não uma inovação.
Passar um vídeo de Jigsaw em uma tela plana está longe de ser algo ousado ou inovador, é só uma atualização mínima, que se torna ainda mais vergonhosa quando se força como algo pomposo devido a virada presente no final.
Halloran começa a investigar no laboratório de legistas, após perceber que todos da equipe de Logan Nelson (Matt Pasmore) se impressionam com os métodos desse novo assassino.
Entre esses, se destaca Eleanor (Hannah Emily Anderson), uma moça que é aficionada por Kramer/Jigsaw, que coleciona restos das armadilhas dele, guardando tudo em um estúdio. Nesse local aparecem armadilhas como The Angel, The Water Cube e Reverse Bear Trap.
Ela é a candidata natural a assassina e possível discípula do psicopata. Até remontou uma armadilha baseada em um rascunho de John, no entanto, para qualquer espectador minimamente atento, ela acaba sendo também a maior candidata a pista falsa da história.
Normalmente os filmes da franquia tem armadilhas legais, com tramas emocionais de qualidade duvidosa. As motivações de John poderiam ser forçadas, mas não necessariamente.
Aqui as máquinas não são ruins, mas são muito comuns, mesmo sendo elaboradas. A motivação de Jigsaw segue péssima, beirando o ridículo, já que ele se vinga graças a morte de pessoas próximas, até um sobrinho.
Ele lembra o Paul Kersey de Charles Bronson, que nas sequências de Desejo de Matar tinha parentes cada vez mais distantes sendo mortos, só para ter algum motivo para se vingar.
Os produtores pensaram o filme de uma forma de minimizar a violência torturante e extrema dos episódios da série anterior, optando por uma sensação de claustrofobia. A ideia não é ruim, mas é subdesenvolvida.
Outro aspecto pouco aproveitado é o aceno ao livro Não Sobrou Nenhum de Agatha Christie. A medida que Halloram avança investigando, aparecem papéis indicando quantas pessoas estão vivas e quantas estão mortas, em uma contagem regressiva. É uma pena que as referências ao romance sejam basicamente essas, das cartas e a armadilha final, que lembra muito o visto no livro, assim como o fato do vilão ter saído impune.
A investigação sobre quem está envolvido com os crimes é bem mais interessante que os rumos do jogo. Os personagens mais carismáticos são os dessa linha.
A partir daqui, falaremos sobre as viradas. Haverá spoilers.
Kramer é um suspeito e todo o formato da história é orquestrado para tentar tornar plausível a participação dele no filme. Tudo leva a crer que ele pode ter retornado, sabe-se lá como, afinal, Jogos Mortais IV começa com a autopsia do sujeito, que é aberto do pescoço até a cintura.
No entanto, Tobin Bell aparece aqui, vivo, com uma hora de filme, junto a dois dos sobreviventes. Esses dois também tem relação com John, algumas bem íntimas, mas a essa altura, não poderia ser mais desimportante isso, afinal, o fim de sua vida foi mostrado quatro filmes antes.
Ainda assim é muita coincidência que os dois que sobreviveram para o último teste sejam exatamente esse. É contar demais com o acaso, de uma forma que não faz sentido algum a não ser a conveniência do roteiro.
A brincadeira com as linhas temporais e com a armadilha grupal conversa diretamente com o plot twist de Jogos Mortais II e as fitas gravadas da armadilha da casa, mas aqui só parece mais tolo e mais forçado. Já o projeto de armadilha de laser é qualquer nota. A motivação do novo discípulo de John é ridícula.
Também se força bastante, ao dizer que essa é a primeira armadilha de Jigsaw é a apresentada nesse filme. Há quem defenda que essa foi a primeira sim, mas primeira armadilha grupal, com a primeiríssima sendo ainda com Cecil em Jogos Mortais 4. É forçado demais, não se salva quase nada.
O que fica sem resposta é por qual motivo ele ficou distante, deixando Hoffman e os outros discípulos ficarem com o crédito e com a proximidade de John.
Diante disso, Tobin Bell estar mais velho do que quando morreu é até passável, é menos vergonhoso. O personagem é uma repetição, é mais um sobrevivente agradecido que ama demais Kramer e tenta fazer ele ser eterno, mas é tão desimportante que jamais foi citado antes e não foi depois, nem em dois filmes posteriores.
Jogos Mortais Jigsaw tenta ser uma renovação na franquia, mas é meio torto, bobo e tolo, se acovarda diante da possibilidade de apelar para o sobrenatural e tampouco consegue seguir em frente sem aludir a John Kramer como líder máximo de uma seita homicida. A melhora visual esbarra na mesmice, superando muito pouco a obra anterior.