O Segredo da Múmia é uma produção brasileira que mistura elementos de filmes de gênero, variando entre o terror e a comédia. Dirigido por Ivan Cardoso, com roteiro de R.F. Lucchetti, a obra lançada em 1982 brinca com elementos de vidas passadas, reencarnação, mitologia egípcia, clichês de cientista louco, tudo isso sem deixar de ser uma obra tipicamente brasileira.
A sinopse é rocambolesca, trata de uma herança dada a um grupo de parentes, também fala sobre experiências de um doutor genial e insano e lida com a ressurreição de uma figura secular, que retoma a existência como uma espécie de morta-viva imortal, sendo assim justamente com todas as contradições semântica que as duas expressões podem reunir.
O filme não possui um protagonista muito claro, ainda mais se levar em consideração que não há um herói clássico ou qualquer pessoa digna de torcida.
A figura que mais tem tempo de tela é o Professor Expedito Vitus, um sujeito recluso, que era isolado graças a má fama que adquiriu. Em determinado ponto ele recebe o mapa que revela a localidade da múmia de uma figura história, o mercado egípcio Runamb. Depois que ele encontra o corpo, passa a ser louvado e celebrado.
Com isso, o sujeito decide retomar seu antigo projeto, o tal Elixir da Vida, um experimento que se tornou piada para a imprensa e público, mas que fez ele resgatar a vida de um dos seus criados, ao menos, em teoria.
A trama pensada por Eduardo Viveiros (creditado como escritor da estória) vai nessa direção, mistura os elementos já citados com outras monstruosidades, insinuações de abusos sexuais, raptos de pessoas, escravização de mulheres e até canibalismo.
O roteiro foi assinado por Lucchetti, que na época, assinava Rubens Francisco Lucchetti. Ele vinha das parcerias com José Mojica Marins (que tem um pequeno papel nesse) em A Estranha Hospedaria dos Prazeres, Inferno Carnal, Delírios de Um Anormal e Mundo-mercado do Sexo.
A equipe de produção era comandada por Zelito Viana, que acumulou as funções de produtor e produtor executivo. Teve como produtores associados Lucchetti, o ator Anselmo Vasconcelos, que é o interprete de Runamb, Fernando Carvalho e Zeca Parente.
Também fez parte da equipe Sergio Farjalla, o especialista em efeitos especiais, profissional que trabalhou em clássicos como Pixote: A Lei do Mais Fraco e Eu Te Amo, mas também trabalhou em obras gringas, como Velozes e Furiosos 5: Operação Rio e Velozes e Furiosos 10.
Quem compôs a trilha foi Gilberto Santeiro, de As Sete Vampiras e O Mandarim, além de Júlio Medaglia, de Eu e Atração Satânica. Os dois trilharam juntos Escorpião Escarlate, também dirigido por Ivan Cardoso.
O longa-metragem foi rodado nos anos oitenta, aparentemente estava pronto em 1981, mas foi exibido pela primeira vez no Festival de Gramado de 1982.
Os estúdios por trás foram a famosa Embrafilme - fato que ajuda a explicar o motivo de terem tantos paralelos dessa obra com as pornochanchadas da época - a Mapa Filmes e a Super 8 Produções Cinematográficas. No ano de 2023 o filme foi distribuído em internacionalmente pela One Eyed Films.
Na maioria dos países o filme tem um nome traduzido para o inglês de maneira literal, como The Secret of the Mummy. O nome mais diferente talvez seja na Finlândia, Muumion salaisuus. Ele passou na União Soviética como Секрет мумии e na Grécia foi chamado de Το μυστικό της μούμιας.
O longa foi premiado em alguns festivais. Em Gramado venceu nas categorias de melhor roteiro, melhor trilha sonora e melhor ator coadjuvante para Felipe Falcão. Wilson Grey recebeu o Prêmio Especial do Júri e o longa foi indicado na categoria de melhor filme.
No XV Festival de Brasília 1982 recebeu os prêmios de melhor direção, melhor montagem e melhor ator (Grey). Teve também o Prêmio APCA 1983 da Associação Paulista de Críticos de Arte, recebeu os prêmios de melhor ator para Grey, melhor cenografia e melhor figurino. Ivan Cardoso foi indicado ao Prêmio Especial. No Fantasporto 1983 de Portugal foi indicado na categoria de melhor filme.
Cardoso havia realizado os curtas Sentença de Deus, O Conde Gostou da Coisa, O Universo de Mojica Marins. Fez o longa O Lago Maldito, de 1980, depois desse filme analisado, fez Os Bons Tempos Voltaram, Vamos Gozar Outra Vez, As Sete Vampiras entre outras obras.
Viana trabalhou em Os Condenados, Morte e Vida Severina e Avaeté: Sementa da Vingança. Viveiros escreveu também os curtas Curiosidades de Vidas Irregulares e A História do Olho (ambos que ele também fotografou) e A Cocheira do Inferno. Foi consultor na série Somos 1 Só.
A obra teve locações no Rio de Janeiro, na cidade de Petrópolis e algumas em pontos turísticos do Egito.
A narrativa começa misteriosa, em uma cena que infelizmente foi bem mal guardada nos releases veiculados a programação do Canal Brasil. Aparece um carro, correndo pela estrada, que viaja com pressa, para uma reunião familiar em torno de um senhor idoso, vivido por José Mojica, sujeito que está quase morrendo, chama seus herdeiros para contar da localização de uma múmia antiga, a famosa figura de Runamb. O sujeito dá um pedaço do mapa da localização para cada um deles dos parentes.
No entanto, não demora até que comecem estranhos eventos, que resultam em mortes e assassinatos, que incluem crimes misóginos, onde se estrangula as mulheres que acabaram de ser apresentadas.
A trama vai até o Cairo, no Egito, em 1954, em uma caravana do famoso professor Vitus. Ele consegue encontrar o corpo do famoso egípcio e a partir desse ponto aparecem cenas do morto, no passado, quando vivia como um rei, quase um faraó, personagem esse luxurioso.
O Runamb de Anselmo Vasconcelos era um rico mercador que amava Nadja, uma bailarina, interpretada por Tânia Boscoli, que também era dançarina. Durante essas cenas ele é mostrado em cenas tórridas, sensuais e bizarras, que incluem momentos de promiscuidade, inclusive com insinuações de relações homossexuais e bissexuais.
Também ocorrem cena de mortes, de estrangulamentos. Prazer e crueldade assassina andam juntos na rotina do personagem. Toda sua movimentação mirava alcançar o amor e o favor de Nadja, que não quis ceder a ele.
Quando ele morre tem a sua alma condenada aos despojos que deixou, sendo assim, condenado a despertar a compaixão de uma mulher, a mesma que detém a alma reencarnada dessa que ele dedicou seus sentimentos.
A questão da ressurreição do personagem é bem dúbia. Como havia essa maldição, ele poderia ter despertado graças a predestinação, não necessariamente graças a inserção do elixir da vida de Vitus. Talvez esse experimento tenha acelerado esse processo.
Essa dúvida é interessante, mas não é desenvolvida, caindo assim na parte engraçada do roteiro de Lucchetti. O escritor claramente prefere desenvolver outras questões, algumas bem cerebrais.
O grupo de aventureiros se depara com pirâmides, passa pelos pontos turísticos. Como o texto não se leva a sério, não fica tão patente que dificilmente esse seria fácil de achar, já que é próximo da Esfinge de Gizé, um ponto de turístico já nos anos 1950. Ainda assim, Expedito é louvado por ter encontrado a múmia de Runamb.
Wilson Grey era consideravelmente famoso, vinha de Chico Fumaça e Vai Trabalhar Vagabundo. Ele é canastrão e muito carismático, um personagem bobo, rico e divertido, justamente por a manifestação inconteste do espírito galhofeiro.
O personagem é recluso, não gosta de publicidade, ainda assim é tratado como um gênio e tem seus prazeres mundanos é mostrado lidando com sua namorada, a fogosa Gilda, da atriz Clarice Piovesan, famosa por filmes de cinema, como O Pornógrafo e Esquadrão da Morte.
Não há muita cerimônia ao retratar o eminente doutor como um cientista louco, que usa cobaias para tentar pôr para frente o seu elixir da vida ou Elixir Vitae.
Entre os seus experimentos, se destaca Igor, um homem careca, que serviu de cobaia e é vivida por Felipe Falcão. Ele é um capanga e amigo dele, que se diz -supostamente - imortal.
Curioso que as cenas no Egito têm bons figurinos, ainda se pensar que é uma obra sem recursos, feito pela Embrafilme. Ainda assim, é mais elaborada que as superproduções bíblicas da Record, mesmo sem ter um orçamento minimamente condizente que as novelas das últimas décadas, produzidas pela emissora de Edir Macedo.
Esses trechos são bem picantes, há danças sensuais, seduções entre personagens.
Além de Gilda e Igor, há outros pessoas, inclusive funcionários em volta do doutor, como o auxiliar calvo Rodolfo, interpretado pelo compositor Júlio Medaglia e a empregada Regina, interpretada por Regina Casé.
Ela protagoniza uma cena com o repórter de rádio (supostamente, pelo menos, ele se apresenta assim) Everton Soares de Evandro Mesquita. Vale lembrar que os dois vinham do grupo de teatro Asdrubal Trouxe o Trombone, que revelou também Luiz Fernando Guimarães, Cazuza e tantos outros atores, como Patrycia Travassos e Nina de Pádua, ambas atrizes que tem pontas aqui.
Há uma cena de nudez específica que chama muito atenção, já que beira o sexo explícito. Regina está toda nua, com Igor em cima dela, gemendo e urrando, fazendo menção a praticar o sexo oral nela.
Cardoso é ousado, mas não chega a mostrar momentos picantes ou explícitos, mas deixa claro que Igor é uma pessoa muito sexual, com impulsos quase incontroláveis. Devido ao seu visual, careca, quase sem pelos e sempre tenso com mulheres, fica a impressão de que ele é eunuco. Mesmo sem essa certeza, é mais do que dado que ele é um sujeito tarado.
Cardoso é conhecido por fazer obras engraçadas e esse obviamente tem muitos momentos engraçados, mas há vários momentos estranhos e idílicos. Na cena de nudez e sexo que envolve Vasconcelos e Tânia Boscoli há uma interação com tapas trocados, uma violência no sexual, cujas intenções não ficam claras, terminando trágica para uma das partes, embora não fique claro se foi intencional ou não.
Esse trecho pode ser o catalisador da tal maldição, já que são utilizados os clichês de mitologia egípcia no filme. Como o roteiro não é dedicado a esclarecer esses meandros, fica a impressão de que essa violência é ligada a essa condição.
Rubens Lucchetti parecia estar particularmente inspirado nesse, mas não exatamente na trama mística e sim na pseudocientífica. A amargura pela qual Vitus passa parece caricata, mas faz sentido. Ele ter encontrado a múmia o fez ficar famoso e até respeitável para a sua sociedade, o que não faz sentido nenhum, afinal, são eventos que não tem ligação nenhuma.
A verdade é que ele só deixou de ser intragável por conta de ganhar fama.
O elixir da vida, que era tratado como piada por todos, é o motivo da vida do cientista, tanto que ele se descuida de tudo, até da relação com sua amada, que aos poucos, o abandona, para se envolver com Rodolfo.
A suspeita de Everton, de que algo está errado na mansão, é correto, já que Expedito misturou os dois projetos, inserindo o elixir na múmia, que se levantou. Ele até confidencia isso a Miriam, a personagem da rádio, que também é interpretada por Tânia Boscoli.
A galhofa reside nas ações do monstro, que em seu primeiro ataque, invade um quarto de motel, onde amantes estão. Quase toda vez que ele aparece não há como não rir.
Vitus não quer ser um teórico, não se contenta em ser como os seus "professores" e mentores literários, não quer publicar livros, quer ser um cientista prático.
O fato dele ser genial agrava essa questão. Não fica totalmente claro, mas como ele lê muito, o texto deixa entender que ele é um autodidata. Ainda assim ele quer pôr em prática suas ideias, não quer ser um escritor ou cientista que faz notas.
Há uma cena específica em que aparece uma biografia de Boris Karloff, embaixo dele, enquanto seu personagem descansa, depois de muito trabalhar em seu laboratório. Como uma biografia de um ator ajudaria ele a fazer experimentos, é um mistério. Na verdade, parece ser apenas um fan service, em atenção ao ator ter participado em A Múmia.
Ele também afirma ter lido os estudos de comportamento humano de Arthur Frankenstein, um gênio que não conseguiu pôr em prática suas teorias, já que morreu cedo. Esse é obviamente uma referência ao personagem que dá nome ao clássico Frankenstein, que também estrela Karloff.
Igor segue parecendo sádico e tarado. Além de Regina, ele agarra mulheres, leva moças nuas para serem acorrentadas, também vigia de maneira lasciva Gilda. Ainda tem uma voz possante, como um tenor, até canta para deleite do seu patrão e mentor. Vitus gosta de colocar ele para cantar ópera...
É uma galhofa, mas é divertido demais.
Igor também percebe o caso de Gilda e Rodolfo. Os amantes se mantém perto, mesmo achando que o professor está louco - curiosamente, depois que Gilda manifesta seu nojo quanto ao cientista, o personagem aparece gargalhando com um homem preto e careca, em uma piscina imunda, a mesma onde mulheres canibais (provavelmente fruto de experiências) residem.
Entre assassinatos de Igor e ataques da múmia, aparecem Travassos e Claudio Marzo, em uma cena muito aleatória, onde os futuros atores e astros da tv são pegos transando, em um carro, sendo assim atacados como se fossem parte do elenco de um filme de Jason na saga Sexta-Feira 13.
Uma dúvida que fica é sobre o comportamento da múmia e de Igor, que parecem tarados por conta do elixir. Ou isso ocorre ou a vida de ambos era tão promíscua antes e eles foram potencializados dessa forma.
Essa questão também não é desenvolvida, o que é uma pena, aliás, talvez o experimento não modifique nada, essa pode ser uma história de gente tão patética que consegue inventar até isso. Eles podem apenas ser pessoas delirantes, que tiveram sorte de arrumar um mapa.
A múmia caminha às vezes lenta às vezes de maneira veloz, não fica claro se é culpa do ator ou descuido da produção ou se a monstruosidade está evoluindo e se fortalecendo à medida que se fortalece.
O radialista entra na propriedade, para investigar, enquanto isso, os personagens se preocupam com o sumiço de Rodolfo. Everton encontra as moças, as vê servindo de alimento para uma pessoa selvagem, de aparência monstruosa, como um homem das cavernas.
Perto do final ocorre muita coisa, Regina e Gilda fogem, o delegado Almir, de Jardel Filho pratica batidas pelas redondezas, acreditando que as mulheres são atacadas por maníacos sexuais (de certa forma, são) então Vitus fica em alerta.
A múmia se levanta e salva Nadja/Miriam de ser pega pelo seu companheiro de elixir - a entrada da personagem na mansão é absurdamente tosca,diga-se - ela acaba decapitando Igor, quando o professor encontra seu criado, chora, afirma que não poderá viver sem seu amigo.
Esse momento parece de fato sincero, o que é incrível, por conta de ser um trecho curto, não se dá muita importância, mas Grey está muito bem. Há espaço até para entender que há uma paixão mal resolvida ali, mas essa também é outra questão mais mencionada e menos desenvolvida.
O Segredo da Múmia é uma tentativa boa de fazer cinema de horror no Brasil., tem suas questões problemáticas, vícios de linguagem cinematográfica, mas é feito com muito carinho, indiscutivelmente. Cardoso estava inspirado, o elenco estava bem e o roteiro é pontual, mesmo sendo uma doideira, tal qual a maior parte da filmografia de seu diretor, embora seja bem mais sério que outras obras.
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