A Múmia : a primeira tentativa de trazer o monstro egípcio ao cinema

A Múmia : a primeira tentativa de trazer o monstro egípcio ao cinemaA Múmia é um filme de horror da Universal Pictures lançado em 1932. A ideia inicial era tornar ele como parte do panteão dos monstros clássicos do estúdio e de certa forma isso aconteceu, embora a continuidade tenha ocorrido por meio de uma espécie spin-off dessa obra.

Dirigido pelo gabaritado Karl Freund, é estrelado pelo talentoso e icônico Boris Karloff, que vinha do sucesso de Frankenstein, no entanto, nem a presença desses dois sujeitos experientes garantiu o sucesso.

Essa versão começa falando de um papel antigo, o Pergaminho de Thoth, um objeto sagrado onde estavam as palavras com as quais a deusa Ísis proferiu para que Osíris ressurgisse dos mortos. Nele há preces para Amon-Ra e uma promessa de que a morte é apenas uma porta para uma nova vida, ou seja, fica patente que um dos temas explorados será o da reencarnação.

Apresentado por Carl Laemmle que proporcionou aos fãs do gênero os icônicos O Homem Que Ri, o longa é produzido por Carl Laemmle Jr. que também produziu Drácula, Frankenstein e Os Assassinatos da Rua Morgue.

The Mummy teve uma recepção mista por parte da crítica, além de ter tido uma bilheteria aquém do esperado, apesar de ter feito um certo sucesso em território britânico.

A introdução ocorre com uma expedição britânica, em 1921, onde arqueólogos escavam o território egípcio, mas encontraram poucos itens. Aqui o texto tenta soar parecer esperto e desbravador, localizando essa pesquisa fictícia um anto antes de 1922, ano em que foi encontrada a tumba do faraó Tutancâmon, que basicamente é fonte dos boatos de que múmias egípcias carregam uma maldição ancestral sobre os vivos.

Localizando essa descoberta para antes do fato histórico, automaticamente se dá uma importância grandiosa ao trabalhou idealizado por sir Joseph Whemple de Arthur Byron.

Além da questão de tentar trazer interesse do espectador apelando para o histórico, o personagem citado acima é tratado como mais preocupado em achar algo historicamente relevante do que simplesmente lucrar com a situação. Há de lembrar que na Europa se tornou uma moda consumir e ter posse de artefatos do Egito Antigo.

As casas eram decoradas até com pedaços de cadáveres mumificados, o que é um desrespeito tremendo. Transformar traços de uma cultura em um item colecionável e em um fetiche de mercadoria é desrespeitoso ao extremo, sem falar que envolve até o vilipêndio de cadáveres. Para além de qualquer justificativa metafísica e sobrenatural, é um desrespeito histórico mesmo.

Ainda assim, Whemple é mostrado como o personagem nobre na história. Sua fala mais marcante reforça que ele acredita que há mais valor em estudos em cerâmica antiga do que em achados sensacionais como medalhas, ouro e joias.

Obviamente que esse é um pensamento isolado, afinal, não era o lugar comum entre os britânicos, já que foi esse povo que explorou toda sorte de tesouros dos povos do continente africano.

O roteiro de John L. Balderston foi bastante criticado ao longo dos anos, por resumir toda a civilização egípcia a mitos que sequer tem base na realidade ou sentido. Múmias não carregam maldições, tampouco tem qualquer possibilidade de retornar a vida.

Por mais que esse não tenha sido o primeiro produto de cultura pop a abordar o tema dessa forma, o fato de ser uma veiculado no cinema que é uma arte mais durável e de mais fácil acesso dá ao longa uma responsabilidade grandiosa. O que se fala em um filme pode ficar grafado no imaginário popular por décadas.

Sir Joseph conversa com Muller (Edward Van Sloan), um velho doutor estudioso bastante supersticioso, que o aconselha a ter o máximo de cuidado possível com os artefatos encontrados, com a tumba e com uma caixa lacrada em especial. Já o jovem Ralph Norton (Bramwell Fletcher) deseja explorar tudo que acham, incluindo uma múmia de um alto sacerdote do Templo do Sol em Karnak, Im-Ho-Tep ou Imhotep.

Segundo as informações dadas pelos especialistas que averiguaram o corpo, o sujeito foi enterrado vivo, condenado em vida e no além. Seus músculos estão contorcidos, fica claro que ele forçou as ataduras e há sinais de tortura.

A Múmia : a primeira tentativa de trazer o monstro egípcio ao cinema

O que não faltam são indícios de que algo ruim ronda o morto, mas como esse é um filme de horror, ainda localizado nos primórdios de sua exploração temática, há ali quem decida mexer nisso.

Norton é o candidato óbvio e perfeito para tal. A revelia de Sir Joseph, ele abre o caixote que estava ao lado do corpo e libera algo a partir dali. A imprudência foi grande, mas fato é que até Whemple tinha verbalizado que queria estudar o que quer que estivesse dentro da caixa, a despeito até dos avisos de Muller, uma vez que acredita que o papiro de Thoth poderia estar guardado ali.

No entanto eles mal tiveram chance de analisar qualquer coisa.

Ao contrário de seus pares Drácula e Frankenstein, A Múmia aposta em uma criação de clima e atmosfera e não na exploração de monstruosidades. A famosa imagem que um homem caminhando vagarosamente, cheio de ataduras e com os braços erguidos para frente não foi inaugurada aqui. É possível ver isso em A Mão da Múmia, filme de Christy Cabanne lançado em 1940.

Apesar disso, há momentos onde Freund utiliza uma figura amedrontadora, que flerta com a condição de monstro, especialmente na cena em que uma mão em putrefação invade o redor da onde Ralph está, seguido por um absoluto silêncio da parte do jovem, enquanto observa o braço cheio de ataduras roubar um papel que ele analisava. A reação imediata após a fuga do morto-vivo é a de rir.

Norton gargalha descontroladamente, mas sua expressão não acompanha qualquer possível alegria, ele age com absoluto espanto e medo.

Aqui Freund tem seu principal momento de brilho, registrando o desespero com uma movimentação fluída da câmera pelo cenário, variando entre o jovem e o cadáver de Im-Ho-Tep. É de fato sensacional.

A Múmia : a primeira tentativa de trazer o monstro egípcio ao cinema

A intenção do argumento de Nina Wilcox Putnam e Richard Schayer é desatar o medo vagarosamente, imitando a lentidão que um corpo envelhecido por séculos teria em se desamarrar das faixas que cobrem seu corpo caso voltasse a vida subitamente.

A ideia em si não é ruim, mas o preço cobrado é alto, já que o filme carece de dinamismo. Freund é um mestre em fotografia, trabalhou em obras do expressionismo alemão como O Golem e Metrópolis. Também é codiretor não creditado em Drácula. Depois desse ele seguiu como diretor em poucos filmes, até 1935, voltando então para a função de diretor de fotografia.

Ele registra belas imagens também nesse A Múmia, mas tem dificuldade em estabelecer uma narrativa que não soe entediante e demasiadamente lenta e como o filme apela pouco para o medo, fica difícil se apegar a qualquer artifício ou desculpa visual. Faltam atrativos, não há nada explícito ou agressivo, o terror é psicológico, tanto que Karloff se move quase nada na frente da câmera.

Mesmo na cena onde ele ainda parece um morto, ele mal é focalizado, enquanto a reação de Norton ganha todo o registro possível e imaginável. Essa sensação seguiria viva o restante da história, com pequenas inserções do "cadáver vivo", interferindo de maneira subliminar e lenta, tomando posse da história como tomou o papel de Ralph.

A trama avança dez anos e passa a focar em Frank Whemple (David Manners), o filho de Sir Joseph, que vai ao Egito, para tentar seguir os estudos do pai.

Os eventos antes mostrados se tornaram uma espécie de epílogo, já que ficam a parte da trama principal. Para além disso, a introdução macabra influenciou e muito a vida dos personagens anteriormente mostrados.

Joseph resolveu não retornar mais para o Egito, o que aliás é curioso, uma vez que a produção não teve locações fora dos Estados Unidos. O deserto africano foi rodado na Califórnia, no deserto Mojave.

Já Ralph sofreu ainda mais que o velho senhor. Morreu após ser internado, vivendo seus últimos dias manietado por uma camisa de força.

Um museu inglês contratou os serviços de Whample para escavar na área anteriormente explorada. Curiosamente os nativos não tem autorização para procurar nada, o que demonstra a predação imperial ainda no século XX, além de servir de desculpa, uma vez que os locais não mexem ali também por medo de a maldição ser real.

Frank e o professor Pearson (Leonard Mudie) encontram o lacre dos sete chacais, intacto, ninguém foi ali desde que os sacerdotes de Necropólis fecharam ele. Pelo que eles mesmos discutem, naquele local teoricamente, estão os restos mortais milenares de Ankh-esen-amun, a filha do faraó Amenófis, o Magnífico.

A partir desse ponto o roteiro de Balderston é bem apressado, não desenvolvendo muito a narrativa, só joga o que há para explorar em tela.

Em pouco tempo eles convocam Sir Joseph para vir até o Cairo, fato que contradiz o discurso do próprio. De fato, ele vem, a tempo inclusive de ir até um baile inglês, feito para a burguesia europeia que invadiu o local, resultando em um evento social que causa zero interesse no espectador.

Até os personagens assumem o tédio que se encontra nesses cenários. A principal representante dessa sensação de enfado é a bela Helen Grosvenor, personagem de Zita Johann. Ela é introduzida na festa, é apresentada como alguém de personalidade, que não tem receio de reclamar ou de utilizar uma máscara de submissão e tranquilidade.

Analisando com calma se percebe que é uma das poucas personagens com nuances, mas ainda assim, é desperdiçada, principalmente quando Boris Karloff adentra a trama, como o misterioso egípcio que serve de guia nas escavações, o senhor Ardath.

A Múmia : a primeira tentativa de trazer o monstro egípcio ao cinema

Não é surpresa que Ardath na verdade é Im-Ho-Tep. O filme não faz muita questão de estabelecer um mistério nisso, até por conta de o sujeito ser apresentado como alguém com poderes sobre as pessoas desde o momento em que é introduzido. Ele convence qualquer um que conversa com ele simplesmente olhando fixamente em seus olhos.

O sujeito tenta perverter sir Joseph, movendo o aristocrata a entregar o pergaminho encontrado, mas os mocinhos são precavidos, já que escondem o papiro para que o vilão não os manipule. Curiosamente eles fazem isso mesmo sem que o antagonista se mostre por completo, simplesmente suspeitam e intuem que ele fará um uso maléfico do artefato, provavelmente o julgam como alguém desonesto só por ele ser egípcio.

Como era costume no cinema em geral o filme apela para a sina de colocar a mocinha em perigo, para movimentar a história. Helen entra em uma espécie de transe, parece hipnotizada, passa então a ter uma conexão com Ardeth.

Como é uma obra de 1932 naturalmente haveriam vários problemas e questões que envelheceram mal. Entre elas há a caracterização do serviçal nubiano, interpretado por Noble Johnson. Além de ter a pele pintada para parecer mais escura, ele é mostrado como um sujeito sem falas, quase irracional, serve como um capanga de comportamento animalesco, possivelmente um monstro no que hoje se convenciona perceber como zumbi.

Ardeth tem êxito em seus planos, consegue o pergaminho e vai até Helen, para tentar fazer seu ritual particular. Quando ele chega, simplesmente não há resistência. Além da motivação não ser muito boa, também não há desafios para o antagonista. Chega a ser curioso que os mocinhos tenham vencido a batalha contra ele no final, restando também a dúvida sobre quem é o protagonista nessa jornada, uma vez que Imhotep quem movimenta toda a história.

A caracterização dos personagens é mediana, onde se acerta bastante é na reconstrução de época. O Egito Antigo é bem retratado visualmente, ainda mais se considerar os custos e a época.

A Múmia : a primeira tentativa de trazer o monstro egípcio ao cinema

Os flashbacks mesmo sendo em cenários curtos funcionam bem para ambientar o espectador na época de mais de 3000 anos no pretérito. Os trechos podem ser breves, mas são os mais marcantes da exibição como um todo, inclusive em termos de construção de medo.

Curiosamente, em uma cena no início, Helen diz que anseia pelo Egito "real", por enxergar o clássico, depreciando o atual "estado" do Egito islâmico, contemporâneo aos anos 1930. Esse aspecto foi bastante criticado ao longo dos anos, especialmente por depreciar a condição da cultura islâmica.

É bastante salutar que já em 32 a cultura estadunidense já servia a ideais preconceituosos e xenofóbicos, retratando culturas de origem religiosa ligada ao Islã de maneira negativa.

O trabalho de John P. Fulton nos efeitos especiais foi bastante elogiado na época e de fato, não há muito do que reclamar. Quem também fez um belo trabalho foi Jack Pierce, maquiador que já trabalhou com o Karloff em Frankenstein.

Aqui ele enrugou a face do ator, deixando ela com um aspecto envelhecido, que obviamente não justifica os mais de 3000 anos de idade do personagem. Mesmo que a postura dele seja elegante e taciturna, também parece experiente e assustador.

A Múmia : a primeira (e malfadada) tentativa de trazer o monstro egípcio ao cinema

O que de fato não envelheceu bem foram as transições que Freund pensou. Elas soam piegas, mas para a época, até se releva. O que a crítica não perdoou foi o apelo ao tom melodramático escolhido para a obra, bem diferente dos outros produtos da Universal.

Com o passar do tempo, o longa também foi largamente criticado por retratar a cultura oriental como atrasada, especialmente por mostrá-la como sendo mais primitiva e supersticiosa do que a cultura do Ocidente, fato que já foi mais do que desmentida, em especial aos impérios que habitaram o território de Egito. Vale lembrar que o mesmo ocorreu com os pares de A Múmia. Drácula mesmo é visto por muitos como um registro de xenofobia e de medo do europeu do Leste.

Da parte elogiada da obra, haviam duas cenas, que chamaram bastante a atenção dos críticos. A primeira, foi a já citada intervenção das mãos da Múmia e a resposta da risada enlouquecida do rapaz.

A segunda reside em um flashback, que começa com Im-Ho-Tep sendo embalsamado vivo, com ele nervoso, com os olhos balançando por todos os lados, enquanto observa as amarras sendo colocadas em seu corpo.

A Múmia : a primeira tentativa de trazer o monstro egípcio ao cinema

É de fato assustadora a sequência, e termina pesada, já que ele é descaracterizado. Seu sarcófago é depredado, retiram possíveis formas de identificação, enterram ele em uma tumba sem nome, semelhante ao que se faz ao enterrar um indigente.

As reclamações da parte dos historiadores foram muitas, inclusive sobre o processo de mumificação.

Mark A. Hall do Museu e Galeria de Arte de Perth usou o exemplo das múmias para salientar o quanto Hollywood costuma retratar culturas não europeias de maneira caricata, sempre caindo para o lado da superstição. Segundo ele, a arqueologia irrealista desse tipo de filme funciona como uma imposição colonial pela qual a herança cultural é apropriada. Nem mesmo as falas de Sir Joseph aplacam isso.

Essa reprimenda não poderia ser mais correta e o que se viu ao longo dos anos na abordagem de figuras mumificadas como monstros é bem na toada dessa reclamação de Hall, inclusive em obras mais descompromissadas com a seriedade, como foi com A Múmia que Brendan Fraser protagonizou em 1999.

De volta a trama, Helen é levada a confiar no vilão de uma maneira sedutora, em alguns pontos, lembra o encanto que as sereias tinham junto aos marinheiros nas histórias antigas.

Im-Ho-Tep utiliza uma plataforma cheia de água e nessa superfície molhada ele consegue enxergar a intimidade dos outros personagens. Dessa forma ele apresenta uma condição de quase onisciência, já que está acima das pessoas e antecipa a movimentação delas.

O conhecimento é o seu maior poder, já que fisicamente ele não é uma ameaça. Nessa espécie de poço improvisado ele também interfere na saúde dos seus inimigos, se valendo assim de seus poderes místicos, uma vez que nos flashbacks, é dado que ele foi amante da filha do faraó e seu principal feiticeiro.

Perto do final são citadas algumas entidades egípcias, como a já aludida Isis, da qual Ankh-esen-amun foi sacerdotisa, Anúbis que é o deus guia dos mortos, além de Bastet, a entidade felina que foi erroneamente retratada como uma entidade que afasta Imhotep na versão de Stephen Sommers.

O final é confuso, com Ardeth pedindo a Helen para deixar que ele a mate, a fim de que ele entoe as palavras-chave mágicas, para trazer a verdadeira alma de sua amada de volta. Na sua explicação ele afirma que basta um momento de agonia para que as almas dos dois apaixonados se reúnam de novo.

Apesar de soar poético a sequência é pura tragédia, já que o corpo da moça, que é a reencarnação da princesa egípcia, possui feridas que aumentam ao longo do tempo. É como se ela já estivesse em processo de desgaste e decomposição, induzida por seu amado.

Curioso que Im-Ho-Tep afirma que poderia reviver o corpo mumificado da princesa, mas se fosse assim, ele teria apenas um pedaço de carne e sem alma obedecendo aos seus comandos. No entanto, quando Helen se recusa ao sacrifício, ele não tem receio de manipular ela, em nome de finalmente reunir-se com a versão antiga de sua amada. Ele se contradiz e não tem pudor em assumir isso.

No final ocorre uma interferência divina, um Deus ex Machina literal envolvendo a entidade da deusa Ísis atendendo ao apelo de sua antiga devota, transformando enfim o vilão em um ser morto de novo.

O desfecho preguiçoso é um bom resumo da problemática central de A Múmia, uma vez que o filme não sabe para onde apelar, tendo uma crise de identidade entre ser um horror mais psicológico ou uma obra de suspense, pecando especialmente por tornar desimportante os seus rumos dramáticos.

Avatar

Comente pelo Facebook

Comentários

Comente pelo Facebook

Comentários

Deixe uma resposta