A Última Noite: o melancólico conto de natal britânico

A Última Noite: o melancólico conto de natal britânicoEntre os filmes de horror com temática natalina, A Última Noite se destaca especialmente pelo fato de não haver um algoz malvado, visível e óbvio. A obra capitaneada por Camille Griffin trata com melancolia e tristeza a data festiva de 25 de Dezembro, uma vez que uma doença mortal cairá sobre a humanidade, inevitavelmente, pelos idos do final do ano.

O longa inicia com Nell aumentando o volume de The Christmas Sweater uma música natalina, de Michael Buble que toca no rádio, abafando assim o som da reclamação das crianças, buscando uma alienação impossível de alcançar dado o cenário bizarro instalado na casa e no mundo.

A história estabelece já na introdução uma sensação de que algo está muito errado, afetando todos os seus personagens que aparecem em tela, todos membros da família que se reúne para a noite de natal, antes da tragédia anunciada.

O início de fato faz lembrar uma comum comédia parental de final de ano, com as pessoas abraçando os clichês da época, ao som de Buble.

Esse trecho dá um caráter lúdico, com cada membro da família atrapalhada, tentando arrumar tudo para que a ceia saia perfeita, entre quem a arruma e quem meramente está indo ao local.

A Última Noite: o melancólico conto de natal britânico

Já na chegada ocorrem trocas de farpas, com parentes falando sobre toda sorte de bizarrices do passado, exibindo as suas vidas como se fossem mais glamorosas do que realmente são.

Cada um deles tenta, a sua maneira, esconder o medo do desconhecido que tomará o globo, enquanto também competem, eventualmente, por atenção.

A trama não é dada logo de cara. Aparentemente todos os adultos tem receio de falar do tal gás tóxico em breve tomará a humanidade. Segundo os cientistas, o fim é inevitável, todos morrerão.

Por isso, decidem passar a ceia natalina juntos, mesmo que cada um deles tenha alguma questão pontual e pessoal a lidar, mesmo que todos os adultos estejam a ponto de surtar.

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A abordagem escolhida é a de mostrar as pessoas em colapso mental, mas ainda assim hipócritas, esperando o fim chegar, tentando manter a pose, já que essa é uma família inglesa tradicional, rica já a gerações, formada por gente tão pretensamente organizada e unida que são capazes de fazer um pacto de suicídio.

O núcleo familiar que cuida da casa são o casal Nell e Simon, vividos pelos veteranos Keira Knightley, conhecida por Piratas do Caribe e Orgulho e Preconceito, e Matthew Goode, de Watchmen de Zack Snyder e pela série recente (e ótima) The Offer.

Os dois trabalharam juntos no filme Segredos Oficiais, e tem uma certa química, inclusive na demonstração desesperada de que são pais previsíveis e super protetores, que se sentem impotentes por não haver chances de futuro para eles e para os seus.

O casal tem três filhos, os gêmeos Hard e Thomas, e o mais velho, Art, interpretado por sua vez pelo ator mirim “veterano” Roman Griffin Davis, (que brilhou em Jojo Rabbit) e concentra em si toda a espiritualidade e inconformidade do filme, já que é uma das poucas pessoas que discute o diagnóstico fatalista de médicos e especialistas, sendo obviamente ignorado, afinal, é uma criança de menos de 10 anos de idade.

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Eles recebem a irmã Bella (Lucy Punch) e sua namorada Alex (Kirby Howell-Baptiste, que fez a Morte em Sandman da Netflix), o casal formado Sandra (Anabelle Wallis, de Maligno), e pelo esposo agregado Tony (Rufus Jones) e a filha deles Kitty (Davida McKenzie), além do irmão adotivo nigeriano James (Sope Dirisu) e sua namorada nova Sophie (Lily-Rose Depp). A junção dessas pessoas proporciona claro um sem número de fofocas, envolvendo outros natais, lamentando as perdas, reclamando de quem não pôde vir, mas quase nunca tocando no nome dos mais velhos, que resolveram se recolher sozinhos.

Mesmo sem explicitar o porquê dos idosos não aparecerem, se nota desde a gênese um incomodo, por essas ausências. A pessoa mais velha desse cenário curto não parece ter chegado sequer aos cinquenta anos, e aparentemente existe uma razão para tal.

A despedida desses é diferenciada, a exemplo da videochamada com a matriarca da família, Nicole (Trudie Styler), que tem sua entrada na trama de forma repentina e sai dela de uma maneira igualmente abrupta.

As crianças estão livres também, para falar palavrões, para discutir como adultos, por mais que os mais velhos não queiram. Eles não têm direito a futuro, então ter algo antecipado a sua idade é o mínimo de alento que lhes resta.

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O fim do mundo afeta as pessoas de modo diferente e particular. As reações variam entre cinismo, vaidade, catastrofismo, exacerbação dos ensimesmados, e há os que tentam posar de fortes.

O ideal de Art se resume bem em sua tentativa de libertar uma galinha, Belinda. A ideia de liberar um animal doméstico não funcionaria com o mundo comum, imagine esse cenário em colapso. A ingenuidade soa como algo poético, digno de um breve sorriso, valorizando essa singeleza.

Não se gasta um tempo nem em pequenos ritos e gestos. Os presentes das crianças não são embrulhados em papel especial e sim em jornais, que falam a da tragédia do gás supostamente trazido pelos russos (sempre eles de vilões), não se sabe se por descuido (natural que fosse) dos pais ou por simples escassez de produtos mesmo.

Mesmo entre as crianças há uma impaciência, inclusive discutem o motivo de receberem brinquedos, já que não terão tempo para usufruir deles. No final das contas, a obra versa sobre o inevitável, sobre o fim.

Também fala de teorias da conspiração, da possibilidade de todo o diagnóstico ruim ser apenas mentira, abrindo margem também para diversas críticas ao governo da coroa inglesa, a lembrar que na época, a Rainha Elizabeth ainda era viva.

Uma pílula de descanso foi produzida para os cidadãos, que ao tomarem ela, sofreriam uma morte voluntária, ou seja, eutanásia.

Assim poderiam morrer em paz, mas esse direito de um fim indolor era só para pessoas "importantes", já que imigrantes ilegais e pessoas em situação de rua não tiveram distribuição. Nem mesmo na hora essas pessoas, fora das castas superiores, tiveram sua existência legalmente assumida e reconhecida.

Knightely dá um show a parte, em matéria de dramaturgia. Na cena das graças ela é o belo resumo da melancolia. Ela está soberba, especialmente quando sorri de maneira assustadora, usa sua face como uma máscara de normalidade bastante frágil, que não se permite esconder minimamente a tristeza da desgraça que se avizinha.

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A cena é seguida do depoimento de Sophie, que é sufocado, silenciado, em nome da inocência das crianças, que tenciona ser preservada em vão, uma vez que as crianças sabem do desastre, e tem mais sobriedade que a maioria.

A trilha incidental de Lorne Balfe dá uma boa dimensão da tristeza incompreensível que em breve chegará. Especialmente quando a música acompanha Art, se percebe um diferencial, de que ele é o não anestesiado da família, novo demais para se acomodar, e maduro o suficiente para negar a alienação a respeito do mau.

A narrativa varia bem entre a condição de besta e bestial, sendo tolo e sábio ao mesmo tempo, fato normal aliás, afinal, o mundo está acabando.

As atuações são excelentes, todos interpretes parecem desesperados, tentando claro se conter para não fazer cena, embora cada um deles entre em colapso alguma vez, afinal, a linha entre a moderação posada e o infortúnio da morte são bem difíceis de se conter, especialmente no momento derradeiro.

Os agregados, sobretudo Alex e Sophie que acabaram de chegar, ficam totalmente deslocados. Nem mesmo no drinking game de verdades do passado eles conseguem se inteirar.

O roteiro é sútil até na hora de ser expositivo, a conversa com os adultos bêbados, que serve para discutir detalhes incestuosos e traições trata de questões pesadas, citando palavras pesadas através do jogo Scrable, de caça palavras para falar sobre esses pecados, que Alex maneja.

O tom e a franqueza são dois aspectos bons. Questões sensíveis são abordadas, e como não haveria tempo hábil para discutir qualquer uma delas, elas simplesmente são sufocadas pela liberdade da exposição.

Há muito cuidado com detalhes, a família encontrará por Art, em um carro abandonado, é toda interpretada por familiares. Juntando isso ao fato dos gêmeos, irmãos de Art serem feitos por Hardy Griffin Davis e Gilby Griffin Davis, é possível notar que essa composição em formato de comédia de humor negro, é um filme familiar.

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Ao menos não demora a mostrar a despedida, se atalha para algo emocional e desesperador, para todos tomando uma latinha como de refrigerante, quente, junto a pílula que daria fim. Pesado, simbólico, cômico de um jeito sujo para alguns deles...

No final volta a tocar Michael Buble, com as despedidas, variando entre o cômico e o melancólico, entre a poesia de uma morte escolhida, entre a assistida e a violenta, essa última da parte de quem não conseguiu o efeito da pílula, mas sem abrir mão do cômico.

A Última Noite é potente, forte e desbravador. Pesa contra ele ter um texto de contestação que a altura de 2021 poderia ser encarado como negacionista, a luz de que a pandemia de Covid 19 ainda era um perigo imediato.

Tirando isso a obra de Griffin é uma baita comédia de erros, com desdobrar trágico e desesperançoso.

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