Três anos antes do início do Universo Cinematográfico da Marvel com Homem de Ferro de Jon Favreau as adaptações de quadrinhos da editora ocorriam com produções esparsas e de qualidade variável, cada uma em um estúdio, sem a fixa ideia de reunir todas as figuras em um universo compartilhado. Um grande exemplo disso foi O Homem Coisa: A Natureza do Medo, um filme de baixo orçamento que adaptou o personagem para o audiovisual em longa-metragem, com direção de Brett Leonard.
O estúdio por trás dessa adaptação foi a Lionsgate, que resolveu lançar ele como um telefilme, comercializado no formato home video, chegando ao Brasil em DVD apenas.
Escrito por Hans Rodionoff - que vinha de O Santo Pecador (2002) e Halloween Macabro (2004) - o longa foi produzido por Avi Arad, que adaptava filmes e desenhos animados da Marvel desde os anos 90, incluindo materiais do Homem-Aranha, Motoqueiro Fantasma e X-Men.
O Homem-Coisa é um monstro da Marvel Comics, mas não é super popular, é de escala distante do topo da cadeia alimentar de heróis e vilões da empresa, é um personagem terciário da Casa das Ideias, nunca foi um personagem de glamour ou grande apelo comercial.
Ele é uma criação de Stan Lee, Roy Thomas, Gerry Conway e Gray Morrow, debutou na revista Savage Tales #01 de maio 1971, era uma criatura empática de olhos vermelhos, porte enorme, movimentos lentos, vagamente humanoide e que vive nos Everglades na Flórida perto da reserva Seminole.
A adaptação mira características típicas de produções de horror e já começa em um pântano profundo, onde luzes verdes predominam.
Para o espectador mais atento é fácil perceber que o laboratório que fica perto da água claramente é um cenário no estilo dos pilotos de séries antigas, daquelas que o SBT passava no Cinema em Casa com a famosa cartela "O longa-metragem que deu origem a série".
No meio desse cenário, um casal interpretado namora, boiando em um lago insalubre. Momentos antes de concluírem o ato libidinoso acabam morrendo, atacados por algo ou alguém, em uma tentativa do filme em referenciar o cinema slasher.
Esse início já mostra a qualidade do elenco. Nenhum dos atores está bem e o quadro piora ao analisar o entorno, a construção visual que claramente não mira a verossimilhança.
Tudo é artificial e mesmo que o casal não morresse no ataque, poderia cair na água, que era tão suja que parecia tóxica, já que a dupla decidiu transar em uma jangada nem um pouco segura, sob uma água turva e esverdeada.
Ao menos a morte deles é gráfica e bem enquadrada.
Logo aparece o letreiro de anúncio do filme, tão mal encaixado que chega a ser charmoso. A transição é mecânica, parece que foi preparada para um seriado antigo, não se encaixa muito bem no formato de um longa-metragem, mesmo que esse tenha sido mirando plateias menos exigentes.
A verdadeira trama só começa de verdade após essa introdução. Logo é apresentado Kyle Williams, personagem do desconhecido Matthew Le Nevez, que vem para ser o novo xerife de Bywater, a cidade onde ocorrerão todos os casos.
O sujeito é caracterizado de modo posado demais. Parece um rockstar mal localizado, se assemelha a vários personagens de John Stamos perdido no tempo, localizado nos anos noventa. De certa forma ele lembra o personagem bufão de Sean William Scott em American Pie, o alívio cômico Stifler, mas sem o charme a presença do personagem copiado.
É um Stifler Série B, moreno e muito mais calvo.
Ele vem para substituir o antigo chefe de polícia, que enlouqueceu. Essa questão por si só poderia acrescentar suspense e mistério na trama, mas é apenas um elemento jogado e nunca mais abordado. O primeiro trabalho de Kyle é ver o cadáver destruído de Billy, fato que desperta o seu senso de alerta.
A cidade que cerca o pântano é bastante falsa e a fotografia saturada de Steve Arnold não ajuda a aplacar essa sensação, ainda mais quando apela para tons de laranja, que ao invés de mascarar o paupérrimo só evidenciam o quão barata é produção.
Faltou um maior apuro visual e isso é responsabilidade direta de Leonard, que não conseguiu fazer do pouco orçamento uma mola para uma abordagem mais criativa e inventiva.
O roteiro também não é grandes coisas. O texto base tenta forçar uma briga entre o proletariado da cidade, pondo frente a frente ecologistas e trabalhadores braçais.
Os funcionários da construção civil têm entre seus líderes o confederado Jake (Patrick Thompson), que parece uma versão mais magra do crítico musical Régis Tadeu e ele ao invés de lutar pelos direitos dos seus, é mais preocupado em fazer lobby para os patrões.
Como contraponto a Schist (dono da empreiteira destruidora) e ao xerife, há a Teri, uma moça cheia de ideologias interpretada por Rachael Taylor, uma moça animada, cheia de ideias. É inegável que ela é o ponto mais positivo do filme, já que Taylor é uma das poucas atrizes que levam o filme a sério, mas é inegável que ela é mais lembrada por ser parecida com Alicia Silverstone e menos por seus papéis no cinema e televisão.
Brett Leonard fez algumas pérolas do cinema trash. Dirigiu Assassino Virtual com Denzel Washington, O Passageiro do Futuro com Pierce Brosnan e O Esconderijo com Jeff Goldblum ambos nos anos noventa.
No entanto, nem a experiência com esses astros o ajudou a lidar bem com a quantidade grande de personagens que aparecem em tela. A maioria das pessoas dentro da trama são caricaturais saídos de esquetes ruins de programas de humor.
Falta personalidade aos personagens, é difícil até lembrar quem eles são, tendo o maior diferencial entre eles a forma como se vestem, os penteados e a forma física de cada um.
Entre os personagens arquétipos, há o careca místico Rene LaRoque (Steve Bastoni), que mais parece um cosplay de Yul Brynner quando novo.
Tem também o icônico Ian Bliss que fez o maquinista em Matrix Reloaded e Matrix Revolutions. Aqui tem um papel de dar pena, fora as péssimas abordagens a personagens nativo americanos.
Ao menos no quesito gore o filme não decepciona.
Em uma das cenas, o cadáver de um vilão é preso a uma árvore na água e o efeito do corpo sendo destruído é legal, com maquiagem de efeitos práticos cuja construção é surpreendentemente positiva, considerando as proporções comuns ao comum dentro das expectativas com um filme C.
A criatura monstruosa é vista poucas vezes. Ocorre praticamente uma hora de filme e o máximo que se assiste são os braços do personagem-título.
É preciso que algum tropo místico explique ao público quem é aquele ser e obviamente que essa responsabilidade recai sobre o velho Pete Horne de Rawiri Paratene, que é uma espécie de xamã caricatural, quase um insulto aos índios nativo-americanos.
Ele explica o fenômeno do guardião das "águas sombrias", que é a reunião de fúria, que usa a poluição, a corrupção, ganância e sangue derramado.
Ao aparecer em corpo inteiro, passados mais de 700 minutos, a produção parece ter vergonha do Man-Thing. O CGI é bastante vagabundo e a criatura mata Pete, transformando esse em um ser deteriorado, mostrando que não há respeito pela figura espiritual, nem da parte do personagem e muito menos do filme.
Alguns efeitos acessórios, dos tentáculos do ser funcionam, são bem encaixados. Caso esse tivesse sido um filme que investisse mais em efeitos práticos, o visual da criatura poderia ser melhor, caso seguisse nessa linha, mas esses são breves momentos, o que realmente preenche o conteúdo são tomadas com os da explosão artificial no final e não de variações de horror corporal ou monstros feitos de maneira artesanal.
Leonard faz tomadas muito distantes do monstro, deixando claro que se gastou pouco com ele, fato que o faz quase sempre ser escondido, ou pela fotografia escura ou pela penumbra. Quase nunca ele está em foco, praticamente não há close.
O final tem cenas bem agressivas, com o Homem Coisa matando Schist de maneira cruel, fazendo ele vomitar gosma preta, fruto da poluição do pântano, a tal água preta.
O Homem-Coisa: A Natureza do Medo é uma produção sem qualquer pudor e vergonha e é até hoje bastante escondida dos fãs da Marvel e do público em geral. Vale pela curiosidade em assistir uma adaptação de quadrinhos pré entrada no UCM e para quem é muito fã da podreira cinematográfica, faz lembrar de épocas mais simples, onde filmes sobre gibis eram mais pueris.