O Pássaro das Plumas de Cristal : Um clássico Giallo e a estreia de Dario Argento como diretor

O Pássaro das Plumas de Cristal é um filme de horror italo-germânico de 1970 conhecido como um dos clássicos do cinema Giallo. Lembrado como um dos maiores expoentes entre os filmes sobre assassinos, é também a estreia do icônico Dario Argento na direção de longas-metragens.

A sinopse é bem simples: o escritor norte-americano Sam Dalmas, testemunha uma tentativa de assassinato, cometida por uma misteriosa figura vestida de preto. Após a sobrevivência da vítima uma onda de mortes começa a acontecer e a polícia de Roma utiliza o testemunho do artista estadunidense para ajudar a capturar o malfeitor.

Argento estreava como condutor, mas já havia trabalhado em outras obras, especialmente como roteirista de alguns filmes de gênero na década anterior. Seus trabalhos incluem a comédia Você é a Favor ou Contra o Divórcio? com Anita Ekberg, em 1966, colaboração no roteiro do policial Todo Homem é Meu Inimigo no ano seguinte, foi um dos argumentistas em Era Uma Vez no Oeste e fez o roteiro do filme de temática mafiosa Mandamentos de um Gangster, ambos de 1968. Também trabalhou no texto do drama de guerra A Legião dos Malditos de Umberto Lenzi, em 1969.

Vale lembrar que ele vinha de uma família de gente relacionada ao cinema, seu pai Salvatore Argento e seu irmão Claudio Argento foram produtores de sucesso.

Esse O Pássaro das Plumas de Cristal tem gente graúda por trás das câmeras, a começar pelo produtor, Salvatore Argento, responsável por produzir Operação Paraíso e Arabella, além de inúmeras obras que o filho dirigiu, com Prelúdio Para Matar e Suspiria. O produtor executivo foi Artur Brauner, que fez obras com western Shalako, o épico O Tirano e o drama de guerra Comando Sullivan.

Em certo ponto do projeto, Brauner quis que Argento fosse retirado da função de diretor, já que ficou desapontado com a exibição das primeiras tomadas diárias.  Se cogitou até trazer o britânico Terence Young (007 Contra o Satânico Dr. No e Moscou Contra 007) para conduzir, mas Salvatore demoveu o amigo da ideia, indo até o escritório do executivo para conversar e para convencer que a impressão ruim era passageira, prometendo que Dario melhoraria como realizador.

Como dito na introdução essa foi uma coprodução entre Itália e Alemanha Ocidental, através dos estúdios Seda Spettacoli, Central Cinema Company Film (CCC), distribuído pela Titanus na Itália e pela Constantin Film na Alemanha. Acabou se tornando um sucesso tão grande que ficou em cartaz em um cinema de Milão por 3 anos e meio, tamanha era a popularidade.

O roteiro foi escrito em 5 dias. Argento escreveu sozinho mas há uma forte inspiração no livro The Screaming Mimi, um romance de Fredric Brown lançado em 1949. Argento teria escrito o roteiro depois que Bernardo Bertolucci lhe deu uma cópia do livro, mas jamais assumiu a inspiração.

Vale lembrar que não é algo incomum na filmografia do diretor haver problemas com relação a créditos textuais, especialmente com Mansão do Inferno, o segundo volume da trilogia das bruxas, que em breve abordaremos nesse espaço.

Esse é o primeiro volume da famosa Trilogia dos Animais. Depois desse houve O Gato de Nove Caudas e Quatro Moscas no Veludo Cinza, ambos lançados em 1971. Vale destacar que esses filmes citados não são continuações diretas um do outro e sim obras cuja temática conversa entre si, reprisando elementos e marcas artísticas do condutor, além de conceitos de narrativa.

Como é comum em filmes italianos de horror, esse possui muitos nomes. No Brasil pode ser encontrado também como Plumas de Cristal, mas seu título original é L'uccello dalle piume di cristallo. Geralmente é chamado em inglês como The Gallery Murders, Point of Terror ou The Phantom of Terror, sendo o release mais comum The Bird with the Crystal Plumage.

O longa foi rodado em seis semanas em 1969, com locações entre Roma e Nápoles. As cenas de estúdio foram feitas no Incir De Paolis Studios em Lazio, teve cenas em Agnano na Campânia e em Via Pietro da Cortona 28, em Lazio, Roma também.

A narrativa começa com alguém teclando em uma máquina de escrever, batendo de forma tão barulhenta que chega a ser agressiva. A pessoa usa luvas negras e datilografa uma carta, anotando dados de uma vítima, planejando pegá-la entre Vias Nirti e Belgrado.

Além das especificidades, nota-se também que as mãos mostradas ali são do diretor.Argento imita a mania de Alfred Hitchcock de fazer aparições breves em suas obras. A carreira de Dario como autor seria para sempre marcada por emular de Hitch, a começar especialmente por esse, que guarda semelhanças com Psicose.

Logo a trama foca em Sam Dalmas, o escritor interpretado pelo cubano Tony Musante. Ele usa uma máquina fotográfica, que registra bela moças pelo calçadão, faz isso sempre de longe, mostrando um acuro de sua parte e a potência de sua câmera, que consegue fazer bons zooms, tal qual em Janela Indiscreta, outro clássico do mestre do suspense.

Não demora até que ele acabe entrando em um estranho e belo ardil, que ocorre entre outros motivos graças a observação voyeur que ele faz das belas moças européias.

Essa sequência inicial é belíssima graças as muitas cores encaixadas no quadro, além do cuidado absurdo da cinematografia de Vittorio Storaro, O enquadro é chocante e trágico, com uma "morte" que consegue ser violenta e ao mesmo tempo poética.

Mais do que de repente Musante testemunha a personagem de Eva Renzi sendo golpeada por uma arma com lâmina, em um ambiente claro, repleto de esculturas, como se fosse um museu. Aquela era uma sala de exibição, uma galeria de arte.

Dalmas se aproxima do vidro e fica preso, encerrado entre paredes translúcidas em dois níveis, entre a rua e o local onde ocorre o crime. Com receio de quebrar o mesmo e provocar algo ainda pior, ele fica parado, esperando que sua mera presença afugente o vilão e isso de fato ocorre.

Mais tarde é revelado que Renzi é Monica, a mulher de Alberto Ranieri (Umberto Raho), o dono do lugar. Os tons claros da galeria, o sangue muito vermelho e o desespero no rosto de ambos atores compõem um quadro muito bonito, de beleza ímpar.

Storaro trabalha de maneira sensacional, ainda mais se considerar que debutava em filmes coloridos. Anos mais tarde, faria Apocalipse Now de Francis Ford Coppola e O Último Imperador de Bertolucci.

É evidente que O Pássaro com Plumagem de Cristal não é o primeiro Giallo, já haviam quase uma década desde os primeiros filmes do gênero, como o descolorido Olhos Diabólicos, de 1963, dirigido por Mario Bava, de 1963, assim como Seis Mulheres Para o Assassino, A Mulher do Lado, Libido e A Morte Fez um Ovo. No entanto é dado por boa parte dos especialistas que essa obra analisada foi a que amadureceu os clichês inaugurados na década anterior, atualizando eles para novos tempos.

O personagem central também é um componente que seria repetido como arquétipo. Artistas normalmente protagonizam os gialli e no caso de Sam, há um grande acaso para ele estar na Itália. Ele buscava uma saída para o seu bloqueio criativo, decidiu então ir a terra dos seus pais, a Itália para tentar novos ares e para se inspirar.

Ele trabalha em Roma em um instituto de ciências naturais graças à ajuda de Carlo (Renato Romano), um amigo ornitólogo. É esse parceiro que tenta interceder pelo herói da jornada, para que a polícia o libere, no entanto, o inspetor Morosini (Enrico Maria Salerno) ainda quer ajuda dele, liberando-o desde que testemunhe em detalhes, sobre o caso que ocorreu na galeria.

Monica sobreviveu sem grandes problemas, já que o corte foi superficial e não profundo. Dalmas se presta ajudar na investigação, segue então entre momentos com seu par, Giulia (Suzy Kendall), além de ajudar os detetives.

Tony Musante recebeu algumas reclamações durante a produção. Ele era um ator intenso, gerava problemas até para gente da produção, aparecia de surpresa no apartamento do diretor de madrugada, para discutir sua caracterização. Isso irritava Argento, que afirmou que ele foi uma das pessoas mais difíceis de lidar em toda sua carreira.

Apesar de combinar em cena, é fato que Eva Renzi e Tony Musante não se deram bem durante as filmagens. A atriz achava o cubano um sujeito arrogante e egocêntrico.

Além disso, ela considerou que a participação nesta obra foi um suicídio profissional. Em uma entrevista, ela afirmou que interpretar uma personagem como essa estava abaixo de seu talento como atriz.

O drama segue com Dalmas traumatizado, pensando sempre nos momentos perigosos, cercado pelos assassinatos. Ele não consegue ter paz sequer enquanto dorme, já que tem sonhos ruins, em momentos de fuga do assassino.

Na memória do sujeito resta apenas aquele vulto escuro, de um homem malvado com sobretudo e cartola, fugindo em câmera lenta.

Durante as investigações ocorre um momento complicado, colocam Rubatelli Luigi, um travesti autointitulado Ursula Andress como suspeito. Até o delegado enxerga isso como algo ruim e repreende o seu subalterno por ter colocado essa pessoa nessa posição, especialmente pelo fato de só ser suspeito graças ao ato de se trasvestir.

Nas cenas posteriores a essas averiguações há um pequeno problema de continuísmo, já que o personagem sobe a um prédio com uma blusa de botão, ao passo que no momento imediatamente anterior, ele usava gola alta. Isso não atrapalha o andamento da história, mas demonstra algumas questões de cuidado com a produção.

O vilão da vez se diferencia de seus primos, os assassinos de slasher movies, já que mata mulheres não por conta de serem sexualmente ativas.

A motivação não fica clara, ainda mais no trecho do meio onde a maioria das mortes ocorre. Fica a impressão que tem ali uma intenção sexual, já que ele utiliza uma navalha de maneira fálica, com a lâmina cortando até peças de roupas íntimas.

Argento filma bem, especialmente quando enquadra partes específicas do corpo dos personagens. O plano detalhe vindo da garganta é uma ideia genial, um movimento preciso do cinematógrafo que insere o espectador em uma atmosfera de intimidade e agressividade.

O assassino tem uma marca diferenciada, já que dá pistas para o americano, telefonando para ele. Não é exatamente uma autodenúncia, até por conta de só se ouvir nos telefonemas um barulho estranho, que depois se descobre ser o som de um pássaro. A espécie de ave Hornitus Nevalis e é uma raça fictícia. O som ouvido no filme é "interpretado" por um Grou Coroado Cinzento.

A polícia tenta gravar suas falas, para tentar achar o sujeito, mas tem dificuldades. Aparentemente esses contatos foram feitos só para perturbar Dalmas, mas nem assim os tiras conseguiram.

Vale lembrar que o assassino do Zodíaco, que dava pistas com cartas só ocorreu em 1974, quatro anos depois desse filme, ou seja, há nele um pouco de caráter profético.

Do meio para o final do longa, aparece uma marca registrada do cineasta, que é a lembrança repentina do personagem. Quase todo filme de Argento começa com o protagonista ou um coadjuvante vendo algo, que fica perdido em sua memória e retorna no final, como um lapso de lembrança que o ajuda a reunir pistas sobre o matador ou sobre os assassinatos.

No entanto isso não é exclusividade dos filmes de Dario, isso já estava nas obras de Mario Bava também e em tantas outras.

Depois desse repente, o Sam vai atrás do pintor Berto Consalvi (Mario Adorf), o que fez o quadro que previu a cena inicial. O sujeito mora no interior, em uma casa com a porta murada, que é assim para afastar intrusos e visitantes.

Ele é um homem rústico, peludo de aparência e suja, um artista temperamental, cercado de gatos, que por sua vez, vivem em gaiolas. Esse trecho não parece acrescentar muito, mas serve para mostrar que o protagonista está sendo de fato perseguido, pois um ataque ocorre ali. Essa é a prova cabal que não é uma história de pura paranoia, ao menos no que cerca a figura de Dalmas.

Enquanto Sam está em viagem, o assassino vai atrás de sua amada, a encurrala, a faz se esconder em cômodos de difícil acesso. O assassino usa uma outra arma característica, um objeto pontudo para abrir um buraco na madeira e quase pega a menina.

Nesse ponto fica claro que seja lá quem for o responsável pelos homicídios, possivelmente há mais alguém auxiliando. Falaremos nos próximos parágrafos sobre as revelações dramáticas. Se quiser evitar spoilers, recomendamos ler esse trecho depois de ver o filme.

Alberto Ranieri se candidata ao posto de réu, mas só faz isso depois de cair da sacada de um prédio, em uma tentativa de fuga. Em seus últimos suspiros, o suposto culpado assume a autoria dos crimes. A polícia se dá por satisfeita, mas o herói da jornada não.

A tomada da queda de Ranieri foi obtida ao deixar cair uma câmera de seis andares em uma calçada de concreto. A câmera quebrou, mas a filmagem foi salva.

Depois desse assumir, ocorrem tomadas no ponto de vista de primeira pessoa, tal os ângulos que registram a visão de monstros, famosas em clássicos estadunidenses de horror como Tubarão e Halloween: A Noite do Terror, ambas obras posteriores a essa.

Perto do final há despistes, com relação a autoria dos crimes, incluindo até amigos do protagonista, mas depois desses fica claro que é Monica a matadora.

Apesar de Renzi estar exagerada - não à toa reclamou publicamente, já que se vê obrigada a exercer um over action terrível - ela sente prazer em impingir dor, fere a mão de Sam, depois sobe em cima da superfície artística repleta de espinhos, que caiu em Dalmas.

Perto do final ainda há uma explicação, de um psiquiatra que conversou com Monica, explicando o quadro dela, imitando assim o desfecho de Psicose, que também explica o quadro clínico de Norman Bates.

Ela teve um trauma dez anos antes, isso a fez com que ela agisse mal. Ela já havia demonstrado tendências paranoicas, foi brutalmente atacada.

Monica se recuperou, teve uma vida considerada normal, mas guardou em si distúrbios mentais, que ficaram adormecidos por dez anos, ela teve as memórias reavivadas depois de ver o quadro de Consalvi, com a obra servindo de gatilho para despertar a sua loucura latente.

A insanidade veio à superfície do seu ser de forma descontrolada, fazendo ela se transformar na mesma figura que lhe causou infortúnio no passado. Ela então inverteu a lógica, deixando de se identificar com o papel de vítima, de passiva, se tornando ativa, portanto, assassina.

Seu marido, desesperado, cometeu tentativas de assassinato, mas até onde se sabe, não matou ninguém, foi cúmplice, tentando ajudar a sua amada. Ele possivelmente sofreu de uma psicose induzida.

Esse é um dos poucos gialli que não termina assim que o assassino morre, já que dedica um tempo a explicar a trama.

O Pássaro das Plumas de Cristal é uma boa estreia de um diretor, é bonito, tenso e reverencial a Hitchcock. Seus mistérios e mortes soam poéticos e Salvatore acertou em deixar Dario dirigir, já que sem esse pontapé, dificilmente ele teria a carreira sensacional que teve.