Havia muita expectativa em relação ao lançamento de Drácula: A Última Viagem do Deméter, e motivos não faltavam para isso. O primeiro deles, certamente é sua premissa de adaptar o capítulo do romance de Bram Stoker, conhecido como Cutting from 'The Dailygraph", onde é encontrado o Diário do Capitão (The Captain's Log no original), mas também pela direção, que foi delegada ao norueguês André Øvredal, que vinha de bons trabalhos em sua terra natal e em Hollywood.
Sua história mostra e embarcação conhecida como Deméter, navio que passou por maus bocados no mar, enquanto levava em seu interior a estranha carga de vários caixões cheios de terra, sendo um deles o recipiente que guardava o corpo do Conde Drácula da Transilvânia.
O roteiro de Zak Olkewicz (Rua do Medo 1978: Parte 2 e Trem-Bala) e Bragi Schut Jr. (Escape Room e Samaritano), com argumento baseado em texto desse último. Schut afirma que concebeu a ideia do filme enquanto trabalhava em uma loja de modelos em Hollywood. Ao ver uma miniatura de Deméter usada em Drácula de Bram Stoker de Francis Ford Coppola, ele teve a ideia de adaptar fielmente esse trecho do livro, claro, colocando algum enchimento.
O nome original nem faz menção ao vampiro, se chama apenas The Last Voyage of the Demeter, foi produzido pelo trio, Bradley J. Fischer, Mike Medavoy e Arnold W. Messner e foi rodado no arquipélago europeu de Malta, com cenas pontuais em Berlim.
É uma co-produção entre cinco países, com os dois já citados além de Estados Unidos, Reino Unido e Itália, foi feito pelos estúdios DreamWorks Pictures, Reliance Entertainment, Storyworks Productions, Studio Babelsberg, Phoenix Pictures e Wise Owl Media, além de ser distribuído pela Universal Pictures, que é a detentora dos direitos dos filmes clássicos de monstros.
O Deméter é uma escuna russa comandada pelo capitão Elliot, personagem esse interpretado pelo icônico Liam Cunningham. O navio tem a árdua missão de fazer o transporte de uma carga valiosa da Romênia para Inglaterra, e deverá fazer isso sem interrupções.
No entanto o ponto de partida do filme é a Bulgária, fato que faz o caminho soar confuso, já que os tais caixões entram no navio nesse país e não na Romênia, ou seja, trabalhadores levaram a carga entre países. Confusões geográficas à parte, fato é que o protagonismo "humano" recai sobre Clemens, um homem negro e letrado, interpretado por Corey Hawkins de Infiltrado na Klan e A Tragédia de Macbeth.
Esse é um personagem misterioso em essência, uma vez que afirma ser um estudioso, formado em Cambridge, mas que está longe de sua terra natal. Ele diz ser médico e argumenta que tem conhecimento de astronomia, dessa forma, poderia ser útil em alto-mar.
A questão pontual do filme é que sua sinopse já dá qual será o destino final, denunciando o que ocorrerá na história, desse modo, a trama não é nenhuma novidade, o que realmente importa é a forma como a história será contada.
Mais tarde daremos um aviso de spoilers, dedicamos esse trecho da análise para falar a respeito de aspectos técnicos e trechos que já são sabidos do público que não viu ainda.
O longa tem alguns momentos bastante bonitos. Como se esperava da parte do cineasta que entregou O Caçador de Troll. A fotografia ficou a cargo de Tom Stern, profissional acostumado a fazer filmes com Clint Eastwood como Sobre Meninos e Lobos, e Roman Osin, que trabalhou com o diretor em A Autópsia e Histórias Assustadoras para Contar no Escuro. O trabalho da dupla acerta em criar uma atmosfera assustadora, a câmera passeia bem pelos momentos em terra firme, além de registrar os detalhes internos do navio, que por sinal é muito bem-feito, mérito da direção de arte de Marc Bitz.
Já a criatura monstruosa é bem-feita, tendo variações de qualidade ao longo do filme. A parte em CGI é feita pela equipe da Twilight Creations, e fora um momento ou outro de irregularidade, o que se percebe é uma boa construção, às vezes escondida, desnecessariamente.
Infelizmente o material de divulgação não levou a sério a ideia de esconder também a criatura. A versão mais selvagem de Drácula é largamente utilizada em pôsteres e artes, possivelmente por medo da distribuidora, de ninguém ir assistir o filme só pela premissa.
Curiosamente o trabalho de divulgação foi bem pequeno nos Estados Unidos, ou seja, não havia da parte da Universal uma grande expectativa, ainda mais depois que Renfield: Dando o Sangue Pelo Chefe foi mal de bilheteria.
A partir daqui falaremos com spoilers. Como o filme é um lançamento optamos por avisar.
A ideia de adaptar o capítulo de Drácula em um filme solo é antiga. Na época de Drácula que Coppola fez em 1992, já havia da parte do roteirista James V. Hart a ideia de explorar esse trecho do livro de maneira destacada, mas não foi feito, nem na época e nem nos anos seguintes.
O filme ficou em um verdadeiro limbo, por mais de vinte anos. Foi oferecido para alguns diretores, como Robert Schwentke (Red: Aposentados e Perigosos), Marcus Nispel (Massacre da Serra Elétrica de 2003), Stefan Ruzowitzky (Os Falsários), Neil Marshall (Cães de Caça) e David Slade (300 Dias de Noite e Menina Má.com), mas não prosperou, até se chegar a Øvredal.
A trama começa em 1897, em Whitby, uma cidade litorânea da Inglaterra. O Deméter aparece batido no cais, praticamente vazio e sem sobreviventes, fato que já de início desmonta qualquer esperança do espectador.
Estabelecer que não haverá por quem torcer já é um problema por si só. Isso certamente não é novidade para quem conhece a história, mas diante do público geral esse argumento é irrelevante, uma vez que um filme feito para o cinema não abarca somente fãs de um livro, romance ou conto e sim toda sorte de gente.
Logo a trama retorna a um breve passado, onde mostra o Deméter carregando uma carga valiosa, cuja procedência é misteriosa. Para a tripulação foi dada a missão sem grandes explicações, o que aliás é normal. Esse é um aspecto até positivo, pois traria algum mistério ao filme e fitas de horror normalmente são melhores quando não explicitam muito, quando guardam mistérios para si.
A ausência de informação funcionaria bem, mas a sinopse, o trailer e todo material assessório não cansam de avisar que esse é um filme de vampiro, então o esforço por esconder qualquer fato é meio inútil. Vale apenas para reforçar a ideia de que a tripulação seria melhor paga se entregasse a mercadoria o mais rápido possível.
São preciso poucos marujos para conduzir a escuna, ainda assim é curioso como quase todas as pessoas que passam pela embarcação consideram ela como condenada. Na Bulgária desce um senhor que pragueja, que deseja que Deus tenha misericórdia de quem embarcará.
Enquanto isso, o imediato Woljneck (David Dastmalchian) contrata três marujos, mas antes de subir a bordo, um desiste ao perceber que uma das caixas tem o desenho de um dragão.
Marinheiros são supersticiosos, mas nem mesmo esses sinais diminuem a pressa dos marujos, que decidem ir rumo ao Reino Unido o mais rápido possível, incluindo aí, Clemens, que havia sido recusado por Woljneck mais cedo.
Obviamente os dois desenvolveriam uma rivalidade a partir desse ponto, sendo essa uma relação absolutamente forçada desde que nasce até o final da fita. Esse é um dos clichês desnecessários que são levantados.
Quando já estão em alto mar eles encontram uma mulher, que a parece estar morrendo. Clemens identifica que ela está doente e que é vítima de uma condição feia e possivelmente viral.
Ela é Anna, personagem de Aisling Franciosi, uma romena, que vai ganhando forças depois de transfusões de sangue, que Clemens ministra nela. Com o decorrer do filme ela melhora, mas demora a conseguir interagir com todos, mesmo que (magicamente) fale inglês muito bem.
Ao longa da viagem se desenrola com o anúncio do capitão de que aquela seria sua última viagem. Assim que pisasse em Londres, ele se aposentaria e recomendaria ao seu imediato a capitania da escuna. Qualquer pessoa que tenha assistido mais de um filme de horror ou ação, sabe que esse tipo de fala é um mau presságio, pois normalmente equivale a uma sentença de morte.
Como é de se esperar, ataques vão ocorrendo pelas noites marinhas. Aos poucos, a pequena tripulação é dizimada, mas a maior parte dos marinheiros se nega a acreditar que há um monstro a bordo, especialmente Clemens, que sempre que tem a oportunidade de falar, ressalta que é um homem que crê apenas na ciência. Claramente ele reforça essas falas para si mesmo, para se convencer do que está falando.
Ele sofreu muito e jamais conseguiu trabalhar como médico, mesmo tendo se formado em uma boa universidade e a razão é mais do que óbvia: as pessoas não o contratavam por ele ser preto.
A crítica social não parece forçada. Essa era uma realidade bem possível de ocorrer no final do século XIX, mas a grande questão é que isso é levantado e nunca mais é mencionado. Não há nenhuma diferença substancial no fato do personagem ter sido tão excluído e preterido de trabalhar. É apenas um chiste, uma questão anedótica mal trabalhada em tela.
O que se vê realmente é uma exploração do sobrenatural bastante supersticiosa da parte dos marujos. Um deles testemunha a monstruosidade que é o vampiro em fase animal, mas não consegue descrevê-lo em palavras. Olgaren, personagem de Stefan Kapicic, atua bem, especialmente nos momentos em que demonstra pânico e pavor.
As reações de medo do elenco inteiro são boas, nesse ponto não há do que reclamar.
Eventualmente Olgaren é pego pelo vilão e depois disso, acaba agindo de maneira monstruosa também, com um comportamento típico de um zumbi, com os olhos claros, como se não tivesse pupila.
Fica claro no que ele está se transformando, seu andar animalesco faz lembrar a postura típica de um possuído em filme de exorcismo. Apesar dele ser um vampiro, mas parece um deadite, como nos filmes de A Morte do Demônio/Uma Noite Alucinante.
Essa poderia ser uma boa brecha, a desculpa que faltava para o filme emborcar para um lado mais cômico, já que a obra lembra a trilogia que Sam Raimi concebeu, mas não, a opção narrativa é a de falar sempre de maneira séria.
Caso fosse mais despojada, uma comédia de época, as inúmeras conveniências que o roteiro carrega seriam mais fáceis de relevar. Mas o tom solene atrapalha a apreciação.
A pior dessas convenções é a aceitação quase automática da tripulação em relação ao seu destino. Os animais vão morrendo, a comida fica escassa, as pessoas morrem e os que sobrevivem não conseguem responder minimamente aos ataques do bicho, não até que seja tarde demais, até que o navio esteja a um dia de Londres.
Não é como se eles fossem ignorantes completos, uma vez que eles têm indícios de que há uma sina sobre o navio. Eles também têm um cientista a bordo, há uma mulher romena, que conhecia a lenda de Drácula e que foi sua escrava. Para piorar, eles veem uma das vítimas pegando fogo no sol, mas não resolvem nada, não tentam capturar o Morcego nos momentos diurnos, só resolvem agir quando chega a noite.
O filme poderia explorar detalhes pontuais, como o fato de o navio ter o nome da deusa olímpica da colheita e agricultura, mas também não o faz. Também poderia explicar as dificuldades que foi o transporte dos caixões, que saíram do interior da Transilvânia, passaram pelo Mar Negro, para então viajar pela estrada, descendo pelo mar através do Estreito de Bósforo, passando também pelo Estreito de Gibraltar em direção à Inglaterra.
Toda essa jornada é longa, árdua, difícil, mas não é valorizada em tela, ao contrário, a noção que o público tem é que o único percalço real é o vampiro, fora uma ou outra tempestade marítima.
O longa também carece de dinamismo. Seu ritmo é desnecessariamente lento. Além disso, se passa quase toda a noite, basicamente para esconder os efeitos especiais. Se Øvredal tem orgulho de suas monstruosidades em Caçador de Troll, aqui é o inverso. Ele parece ter medo de mostrar o morcego gigante, o que é uma pena, já que a caracterização é boa na maior parte das cenas, copiando um bocado da versão alemã do vampiro, vista em Nosferatu de F.W.Murnau.
Javier Botet usa a roupa de morcego, e utiliza bem a sua experiência em filmes de horror. Esteve em A Múmia com Tom Cruise, em IT: A Coisa e o Homem-Torto de Invocação do Mal 2. Caso ele tivesse mais tempo de tela, certamente o filme pareceria menos tedioso do que é.
Ao menos há uma cena genuinamente trash, no final, quando a criança pentelha chamada Toby (Woody Norman) resolve despertar como morto-vivo bem no momento em que vai ter seu cadáver jogado ao mar. O capitão, que é o seu tio, não lida bem com o luto.
Quando ele nota uma movimentação no pano fúnebre da criança ele imediatamente abre o tecido. O menino se apressa em agir como um monstro faminto, sendo o mais burro ser da existência, já que ataca o seu parente de dia. Obviamente ele entra em combustão, se mostrando mais imprudente como morto-vivo do que na condição de pessoa viva.
Vale lembrar que Toby testemunhou a morte de Olgaren momentos antes desse trecho, além de ser mostrado como um garotinho supostamente brilhante. Não havia desculpa para ele agir desse modo, pois seria mais fácil ele ser jogado no mar para depois retornar ao barco, quando estivesse de noite. A sequência é histericamente engraçada, termina com o capitão todo queimado, chamuscado tal qual o Patolino ou o Wile E. Coyote nos desenhos Looney Tunes, depois de dar um tiro que sai pela culatra de uma arma.
O comandante termina no chão do convés, tremendo, enquanto o corpo carbonizado do menino afunda no mar, mostrado em detalhes por uma câmera submarina.
Se o filme decidisse no desfecho se assumir como comédia, funcionaria maravilhosamente, até para justificar todo o desempenho solene do elenco, especialmente a atuação de Hawkins e Dastmalchian, mas não, o que ocorre é o inverso. O final é demasiadamente sério, cheio de discursos piegas e óbvios, além de inúteis, pois qualquer pessoa que viu ou leu qualquer versão de Drácula sabe quem derrotou o Conde.
Ao menos o combate final tem bons momentos, que valorizam bem a aparência animalesca do monstro, que possui asas assustadoras e aspectos horripilantes em sua pele vascularizada. Ainda assim essa caracterização é subaproveitada, aparece de maneira plena muito tarde na trama.
Drácula: A Última Viagem de Demeter decepciona, não cumpre quase nenhuma de suas expectativas, entristece especialmente quem gosta de Øvredal, já que é o filme menos divertido e mais pretensioso desde que ele veio para Hollywood. É o que menos entrega e irrita especialmente por não abraçar a condição de se assumir como filme B, carecendo também de um roteiro que justificasse todo o seu tom solene.
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