Bruxas e feiticeiras sempre habitaram o imaginário do aficionado por fantasia, horror e terror. Há mais de cem anos a sétima arte aborda temáticas nesse sentido, a exemplo do filme suec0-dinamarquês Häxan - A Feitiçaria Através dos Tempos, lançado a exatos 100 anos. Levando isso em conta, é bem comum ver a temática sendo alvo não só de obras assustadoras, mas também em sátiras, comédias e afins.
É o caso do ícone queer de 1993 Abracabra, ou Hocus Pocus no original, que recentemente, ganhou uma sequência lançada para o streaming da Disney, Abracabra 2.
O primeiro longa é dirigido por Kenny Ortega, que era mais conhecido por seu trabalho como coreógrafo de Gene Kelly e do clássico dos anos 1980 Dirty Dancing - hoje, ele segue conduzindo filmes da Disney, tanto na série Descendentes quanto em High School Musical.
O projeto foi idealizado por dois figurinhas carimbadas do medo, David Kirschner, criador e produtor da franquia Brinquedo Assassino e Mick Garris, contumaz parceiro de Stephen King em adaptações de O Iluminado para tv e A Dança da Morte também em minissérie, conhecido também por sequências mequetrefes como Criaturas 2 e Psicose 4.
O roteiro ficou a cargo de Neil Cuthbert de A Volta do Monstro do Pântano e a trama gira em torno de três irmãs Sanderson, as bruxas de Salém Winnie, Mary e Sarah, respectivamente interpretadas por Bette Midler, Kathy Najimy e Sarah Jessica Parker.
As personagens aparecem primeiro envelhecidas, mas ao conseguir a alma de uma criança, simplesmente ganham de volta sua juventude, podendo ser interpretadas pelas atrizes com uma maquiagem que mira menos em disfarçar e idade e investe mais em soar espalhafatosas, grotescas e engraçadas.
O artifício funciona a contento e ajuda cada uma delas a ter sua própria personalidade. Winnie é a liderança destemida, Mary é a atrapalhada e abobalhada careteira, enquanto Sarah é a encantadora e sedutora.
Graças aos seus crimes, elas são encerradas em vida no ano de 1697, morrem diante dos homens da inquisição, mas não sem levar consigo uma última vítima, o menino Tackery Binx (Sean Murray), que vem a ser o irmão da menina que elas mataram. Depois de falhar em salvar sua parente, ele é transformado em um gato que deve cuidar para que elas não retornem.
Eis que uma criatura virginal as desperta, em 1993, dando início a uma saga que deveria ser de sangue e horror, mas acaba sendo uma belíssima desculpa para inúmeros choques culturais e sustos das três com os novos hábitos e objetos do homem do século XX.
Não só de aspectos narrativos e pitorescos o filme vive. Há um belíssimo trabalho musical nas composições de John Debney., que ajudam a embalar bem o drama, que é cheio de números de cantoria.
A direção de arte é assinada por Nancy Patton que havia trabalhado em produções de visual singular como O Sobrevivente e Os Fantasmas Contra-Atacam. Aqui seu trabalho é primoroso, não só nos figurinos de época, mas também nos artefatos, como o livro vivo caolho que a principal bruxa maneja. O objeto é tão bem feito e sua participação é tão marcante que ele quase tem personalidade própria, lembrando um pouco o Necronomicon dos livros de HP Lovecraft, mais lembrado por estar em Evil Dead.
Os efeitos digitais pecam um pouco, especialmente os digitais ficaram datados, sobretudo no gato preto, mas há de entender, afinal era uma produção infantil, sem enormes recursos.
O elenco infantil é ok, embora não se destaque tanto. De curioso há a participação de Thora Birch que faz Dani, a caçula da turma dos anos noventa. Depois que cresceu ela passou a fazer papéis conhecidos e premiados, a maioria bem agressivo como Jane em Beleza Americana, personagem essa com tendências de misantropia e suicídio. Também participou do peculiar Ghost World: Aprendendo a Viver, que adapta o quadrinho adulto de Daniel Clowes.
Os personagens vívidos, icônicos e dignos de lembrança são as três irmãs, nada além disso, talvez acrescido ai o gato já citado, e o zumbi de boca costurada Billy Butcherson, interpretado pelo icônico Doug Jones. Da parte dos humanos, não há qualquer mínimo destaque, servem apenas de escadas para esses seres mágicos brilharem.
Um fator legal é o fato que as bruxas e o gato falante usam uma linguagem mais formal, com conjugações mais parecidas com o que se falava séculos atrás.
De negativo para o fã de horror certamente é a falta de um gore mais explícito. Há poucas cenas de nojeira, quase não há sangue e a temática de feitiços é mais para distrair e descontrair do que para atemorizar. Há pouco entre essa comédia e o cinema de horror, exceção ao largo uso de efeitos práticos.
Já as atuações são ótimas, exageradas, histriônicas e caricatas. Não é à toa que a comunidade LGBTQI+ abraçou a obra e a tornou um clássico a ser lembrado todo outubro, já que as três se inserem em um mundo novo, tem dificuldade de se encaixar, e ainda assim não tem vergonha de sua própria natureza e manifestação.
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Eis que nesse 2022 foi lançado para a plataforma Disney+ o segundo filme da franquia, Abracadabra 2. O roteiro é de Jen D'Angelo, baseado no argumento de Kirschner, Blake Harris e do próprio D'Angelo. Mais uma vez a música ficou a cargo de John Debney, e direção da também coreógrafa Anne Fletcher.
A trama é bem parecida com a do outro filme, com pequenas adições, como uma cena no passado, mostrando a infância das três irmãs e seu primeiro contato com a magia.
A ideia é dar um pano de fundo para as maldades que elas fazem, para a ânsia delas por almas de crianças, mas sem abrir mão da característica básica delas. Elas seguem malvadas, mas não maniqueístas.
Não há redenção, o roteiro não se acovarda ao ponto de tentar transformar as três em heroínas, ao aludir o passado delas ajuda a temperar a percepção de suas identidades, do que são capazes e o que farão ao longo de 1993 e 2022, mas não se aplaca nada.
Os novos personagens não são marcantes em quase nada, exceção a Gilbert, personagem de Sam Richardson, que vende para menininhas alguns exemplares de velas negras. Ele havia sido testemunha ocular da aparição do trio em 1993.
Fletcher é bem sábia em não tentar disfarçar a idade de Middler, Najimy e Parker, simplesmente joga na conta delas serem bruxas as marcas comuns ao envelhecimento de suas atrizes. De fato não faria sentido trazer uma sequência sem elas, que de quebra, ainda tem Doug Jones de volta também, esse, sem o mesmo brilho de antes.
O roteiro segue cheio de piadas com a modernidade, como as portas automáticas, o fascínio com vendas em mercados, uma evolução da surpresa delas com o asfalto ou com ônibus no primeiro filme.
Elas também seguem ingênuas, enganadas pela vaidade, são facilmente ludibriadas por meninas que afirmam ter 40 anos, falando que parecem jovens graças a maquiagem, feitas de crianças...
É bem inofensivo, resulta em um filme para ver completamente descompromissado, fácil de gostar e até de esquecer, mas de carisma, feito como um programa de televisão que visa homenagear uma obra com um revival ou reunião de elenco.
Se Abracadabra 2 não é tão acertado quanto o antecessor, certamente é um bom aceno ao fandom, e termina com abertura para continuar a história, com um gancho para a possibilidade de mais velas negras. Hocus Pocus 3 é improvável, ainda mais pelo fato de ser essa uma franquia para streaming, por reunir um elenco já estabelecido e famosos, com algumas sendo semi aposentadas.
Melhor ficar com uma das últimas falas de Winifred, que não imagina uma vida minimamente feliz sem ter a presença de suas duas irmãs. De fato, Abracadabra é sobre as três personagens e suas atrizes respectivas, todo o entorno, por melhor que seja pensado é apenas secundário.
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