Psicose de Hitchcock: o pai dos filmes de matança

Psicose de Hitchcock: o pai dos filmes de matançaPsicose é um clássico do mestre do suspense Alfred Hitchcock famoso romance homônimo escrito por Robert Bloch e é considerado por muitos o slasher primordial. O que normalmente o público médio não sabe - apesar de haver dezenas de estudos, documentários e até um cinebio chamada Hitchcock sobre esses bastidores - é que o longa teve uma infinidade de problemas para ser executado, mesmo que seu idealizador já tivesse grande sucesso.

Foi preciso um esforço hercúleo e táticas mirabolantes para executar a obra que hoje é conhecido por sua virada de roteiro e por seu final potente e surpreendente.

A trama começa simples, acompanha uma bela moça, que se apropria de uma quantia de dinheiro considerável, mas que tem sua jornada de fuga interrompida de maneira abrupta após chegar ao Bates Motel, uma estalagem que fica na beira de uma estrada antiga, via essa quase não utilizada pelos locais, fato que faz o hotel estar quase sempre sem movimento.

Não sei se é necessário salientar o óbvio, afinal Psicose é uma obra já clássica, e conhecida por ter um final surpreendente. Se por ventura alguém ainda não sabe dos fatos ocorridos nessa obra com mais sessenta anos, há aqui um aviso de spoilers.

Psicose de Hitchcock: o pai dos filmes de matança

A trama se inicia em dezembro, na cidade de Phoenix, no Arizona, região sudoeste dos Estados Unidos. Antes mesmo de mostrar seus personagens há uma bela demonstração da música icônica de Bernard Herrman, acompanhada do igualmente sensacional letreiro de Saul Bass.

Para Hitchcock era necessário dar um recado no início, precisava que o filme parecesse grande desde os primórdios. O cineasta vinha de um insucesso de Um Corpo que Cai, filme hoje tratado como um clássico absoluto, mas que não foi bem de bilheteria.

Após executar Intriga Internacional, o diretor quis buscar uma alternativa de gênero costumeiramente mal falado, para demonstrar seu instinto de se provar diante de desafios, e fazer um filme com elementos violentos e de horror parecia a escolha lógica.

Sua teimosia é bem registrada na já citada Hitchcock que Sacha Gervisi conduziu em 2012, mas lá boa parte das questões mais polêmicas não são abordadas, quando muito, mostram-se suavizadas.

Um dos pontos bem lembrados era a dificuldade de conduzir uma obra que tinha ambições grandiosas, mas com um orçamento discreto. Tudo foi feito para baixar custos, a começar pela escolha em filmar sem cores, doze anos após Festim Diabólico, o primeiro filme do cineasta totalmente colorido.

Outra saída foi a utilização da equipe do seriado Alfred Hitchcock Apresenta, produzido e apresentado por Hitch entre 1955 e 62. Foi dali que saíram Vera Miles, que faz a segunda mocinha Lila Crane, o veterano Martin Balsam que faz o detetive Milton Arbogast, John McIntire que fez o xerife Al Chambers, coadjuvantes como Frank Albertson, John Anderson até Patricia Hitchcock a filha do homem, que já havia atuado no seriado.

Também vieram de lá membros da equipe técnica, como o saudoso diretor de fotografia John L. Russell, que morreu sete anos após o lançamento do filme, fato que o impediu de seguir a carreira promissora que tinha. Antes, havia feito o trabalho de cinematografia em 75 capítulos da série. Também fez 21 capítulos em The Alfred Hitchcock Hour.

George Milo que cuidava dos cenários e fez com o diretor Marnie: Confissões de uma Ladra e Cortina Rasgada, também trabalhou em "Hour".

Da parte do elenco, o primeiro pilar sem dúvida é Janeth Leigh, a moça que foi uma das pioneiras no papel de scream queen. Sua Marion Crane é uma moça diferenciada, a começar pela mudança no nome, já que no livro era Mary - reza a lenda que optaram por Marion para não perturbar a homônima real que tinha seu nome na lista telefônica do Arizona.

Psicose de Hitchcock: o pai dos filmes de matança

A personagem é feminina, bela e decidida. Sua função no escritório onde trabalha é meramente operacional, mas ela claramente parece ter ambições, antes mesmo de decidir se apropriar do dinheiro confiado a ela por seu patrão.

Ela também tem pretensões além da relação puramente sexual com seu par, Sam Loomis, exigindo do sujeito interpretado pelo apagado John Gavin, algo mais do que ser apenas a amante.

Como bom planejador de registros visuais, Hitchcock usa as cores das roupas de baixo da musa para determinar suas intenções. Em um primeiro momento, ela usa lingerie de cor clara, remetendo claro ao desejo bom e justo de ser notada por seu par como a mulher ideal para a sua vida. Quando ela decide retribuir o mau tratamento que recebe do patrão, planejando o roubo dos milhares de dólares, suas roupas passam a ser escuras.

O jogo de luz e trevas é estabelecido até antes de adentrar na trama o monstro.

A partir da decisão de revide, o longa segue crescendo em tensão. Mesmo que Marion tenha ações de vilã há uma boa construção de atmosfera de suspense, tornando o público cúmplice do seu crime, torcendo por sobrevivência da "mocinha".

Assim segue até a introdução e consequente enfoque em outro personagem, mais tarde.

Essa construção possui um momento tão singelo e icônico que foi referenciado e homenageado sem a menor cerimônia por Quentin Tarantino em Pulp Fiction. O boxer Butch observa Marcellus Wallace de modo idêntico ao receio que Marion tem ao enxergar seu antigo chefe, logo depois de subtrair dele a quantia de milhares de dólares. Bruce Willis e Vingh Rhames fazem as vezes de Leigh e seu chefe, com consequências mais agressivas no filme de 1994, mas igualmente aterrador em seu final.

Psicose de Hitchcock: o pai dos filmes de matança

Depois da tensão, quando diminui o receio de ser pega, Leigh muda sua expressão, trazendo em seu belo rosto um semblante malvado, quase psicótico, antevendo o mau que cairia sobre a fita antiga inclusive ouvindo vozes e testemunhos incrédulos em sua cabeça, murmúrios impossíveis de ocorrer, já que ela estava longe das supostas vozes.

A face do mal é acompanhada dessas vozes, antes mesmo do acréscimo de Norman Bates na história. O caráter de Psicose é dúbio, sobretudo quando acompanhada da voz em off.

A montagem assinada por George Tomasini é claramente contaminada pela influência do cineasta soviético Lev Kolechov, que afirmava que sequências de cenas separadas determinam o sentimento que o público julgará, e as brincadeiras que Hitchcock pede ao editor realmente mudam o entendimento do público.

Tomasini já havia trabalhado com Hitch em Janela Indiscreta, Ladrão de Casaca, Um Corpo que Cai e Intriga Internacional, fora o clássico sci fi A Máquina do Tempo, lançado em 1960 junto com este Psicose. Curiosamente, esses trabalhos têm algumas semelhanças com essa obra, mas dentro da estética do horror, boa parte dos tentos do profissional são esforços de ineditismo. A boa construção do suspense é culpa também desse empenho, junto claro ao trabalho de Joseph Stephano, o roteirista que adaptou o livro.

A contratação de Stephano ocorreu por ser ele iniciante, um escritor com potencial, de perfil maleável e custo barato. A ideia de colocar Marion morrendo sem mostrar o assassino foi do roteirista, Alfred gostou da sugestão, e foi a partir dessa ideia que ele decidiu chamar alguém em ascensão, no caso, Janeth Leigh.

Ao chegar no motel, Marion vai para o quarto, e é recepcionada pelo simpático Norman Bates, interpretado pelo ator de teatro Anthony Perkins, um homem esguio, jovem, de boa aparência, com a principal característica sendo a timidez, que busca ser rompida de qualquer forma, como um clamor forte e silencioso, que sai de seu âmago e contamina quem é apresentado a ele.

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Norman tem seu estado de espirito antecipado pelos elementos de cenário, sobretudo pelos pássaros que decoram sua casa tanto nos quadros que habitam as paredes, como as aves que empalha, já que é um taxidermista bastante hábil.

Quando vi Psicose pela primeira vez, já sabia da reviravolta. Possivelmente foi por conta desse filme que jamais liguei para spoiler, já que eu já vi o filme que mais precisava do ineditismo para apreciar, e ele não deixou de ser sensacional por isso.

Essa sensação é bastante vívida pelas migalhas que vão sendo deixadas ao longo do caminho, como os pedaços de pão que João e Maria espalhavam em seu conto.

Como mago da expectativa, Hitchcock utiliza bem essas questões, usando os pássaros inclusive para demonstrar as mudanças de pensamento do seu "novo" protagonista.

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Outros elementos são vistos nos quadros, como o clássico de Rembrandt, chamado Suzanne Et Les Vieillards onde uma mulher é atacada por homens ávidos por seu corpo. A cópia da arte é retirada por Norman para espiar sua vítima, resultando em um ato de voyeurismo bastante agressivo em essência, já que não é consentida, e também estabelece o caráter misógino antes mesmo de começar a série de assassinatos, a mesma que culparia a mulher por ter uma sexualidade ativa.

O conjunto de sentimentos prevê tendências, como ocorreria em Sexta-Feira 13 e dezenas de outros filmes slasher ou os filmes de matança.

Outra questão curiosa é a escolha dos nomes, presentes no livro de Bloch e reutilizadas aqui. Norman é quase homônimo de sua mãe, Norma, e não à toa permite (ou é obrigado) a deixar um fragmento dela viver em sua própria mente.

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Reza a lenda que Hitch mandou fazer fotos com uma cadeira na produção, escrito "Sra Bates", e fez acreditar que a atriz que a faria, seria uma estrela do cinema. A construção de atmosfera era algo importante para o cineasta, mesmo longe da produção em si. O artefato teria sido feito pelo diretor de arte Robert Clatworthy, responsável pela direção de arte, o mesmo que fez Adivinhe quem vem para Jantar de Stanley Kramer e A Marca da Maldade de Orson Welles.

Clatworthy também trabalhou bem na construção visual da mansão. A casa é icônica e mesmo que haja pouca variação de cenário, é impossível não lembrar de toda a organização meticulosa, tanto que serve de inspiração e referência para produtos diversos, como as escadas na casa de Stu em Pânico, ou a mansão do seriado recente Shining Vale.

Outro bom trabalho é o da figurinista Rita Riggs, cujo esforço fez na época crer que havia a ação de uma mulher assassina, mesmo que todas as evidências apontassem para um homem forte. Riggs trabalhou com Hitchcock também em Os Pássaros, Marnie e também foi elogiada por A Força do Destino.

Hitch optou por gastar pouco com equipamentos, utilizando o orçamento para remunerar a equipe mais experiente. Não usar cores baixaria os custos, além de claramente conversar com filmes de horror que ainda eram produzidos nesse esquema desde os anos 1950, sem falar que os trajes poderiam ser mais baratos, e poderia substituir sangue por chocolate, curiosidade essa tão alardeada que se tornou clichê citá-la como algo surpreendente.

A icônica cena do chuveiro é construída baseada bastante no mistério, e teria que ser bastante baseada em sua estrela principal. Quase não se percebe a troca de Leigh por sua dublê de corpo, Marli Renfro.

Em 78/52, filme de Alexandre O. Philippe, Renfro afirma que as pessoas esperavam que ali viria uma stripper, e não alguém da indústria. Eram outros tempos, com um conservadorismo atroz, e ela surpreendeu a todos com sua expressão corporal. A dublê se entregou bastante, chegando ao cúmulo de se oferecer para gravar sem tapa sexo, mas o diretor falou que não queria, guardando assim ao menos um pouco de elegância, indo na contramão das críticas que se fazia a ele no trato com as atrizes.

A cena de assassinato é agressiva para a época. Engana-se quem pensa que foi Perkins que a fez. O ator estava ensaiando a peça Greenwillow, que estrearia em circuito de Broadway logo, quem faz Norman tomado pela segunda personalidade é Margo Epper.

Depois desse ato maléfico, a obra se torna frenética, mais rápida. Os novos personagens como Lila e Arbogast são introduzidos no mesmo momento, e tem suas intenções reveladas imediatamente, com economia até na construção dos laços sentimentais.

O ritmo aumenta e a velocidade com que os corpos são empilhados impressiona, como se após a quebra do tabu da morte liberasse uma onda de homicídios. A trilha sonora se fortalece, ajuda a assustar e a estabelecer o horror, compensando a violência que quase se torna explícita, mas que obviamente puxa o freio de mão.

A cena de queda do detetive particular foi filmada só com o ator em um fundo falso, e não envelheceu bem, consistindo num dos poucos problemas reais de Psicose.

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Stephano ainda tenta enganar o público mais uma vez, levando a dúvida sobre a condição de morte de Norma, que teria ocorrido dez anos antes. O policial que conversa com Sam e Lina afirma que poderia ter sido uma enganação ou um engodo pré-agendado.

O suspense segue variando entre cenários, com a mansão Bates sendo analisada de dentro, pontuada com uma tomada vinda do teto da casa, onde o filho leva a mãe no colo, para um cômodo incógnito, no porão.

Os momentos finais exploram uma classificação meio genérica do conceito de múltiplas personalidades, e ainda conta com uma exposição que simplifica de certa forma a condição de homem perturbado, corroído pela culpa e pela insegurança de viver sozinho após o matricídio.

A psicose enquanto condição de saúde é definida como uma síndrome neurológica que se caracteriza por mal funcionamento de algumas partes do cérebro, geralmente associada à ação de um neurotransmissor nessas áreas, chamado dopamina.

Teoricamente, Norman tem um transtorno dissociativo de identidade, popularmente conhecido como caso de múltiplas personalidades. A condição é caracterizada por estados de personalidade diferentes entre si, que se alternam e são comumente chamados de alter egos ou estados do eu ou identidades diferentes.

Há um personagem, no final Dr. Fred Richman (Simon Oakland) que serve de esteio de exposição, e está lá basicamente para diferenciar essas condições explicadas acima, da condição de "travestismo", onde um homem projeta uma personalidade feminina, condição essa que Norman não teria.

É bom lembrar que essa é uma obra de época, carregada de pensamentos típicos de sua época. Se crimes e ofensas transfóbicas são infelizmente comuns atualmente, que dirá entre os anos 1950 e 1960. Para todos os efeitos, o assassino não é tratado como crossdresser ou transexual, é sim perturbado pela personalidade copiada de sua mãe morta.

Psicose de Hitchcock: o pai dos filmes de matança

O final real de Psicose mostra uma expressão bizarramente bem pensada por Perkins, com a voz da velha dentro da mente do filho, a personalidade dominante, controlando os atos do rapaz, com voz em off e a aparência dele ali.

Sabiamente o roteiro de Stefano escolheu deixar a questão edipiana menos explícita do que no livro, em camadas menos obvias, mas ainda assim se percebe a influência da matrona no rapaz.

Hitchcock acertou demais em fomentar essa produção, cada escolha sua foi milimetricamente pensada e arquitetada, e de fato, não há o que reclamar a partir dessa experiência, para além de polêmicas em volta.

Psicose marcou época e ajudou a pavimentar histórias de assassinato em série, sendo claramente a maior influência dos Giallo italianos e dos Slasher dos Estados Unidos, embora seja mais sutil e melhor pensado que esses filhos bastardos.

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