Titane: a fábula de Ducornau sobre feminilidade e instintos primitivos

Titane: a fábula de Ducornau sobre feminilidade e instintos primitivos

Titane é o mais recente filme da diretora francesa Julia Ducournau. Sua formula é única em abordagem, mistura elementos de drama, ficção científica e um bocado de horror, apresentando uma jornada nada heroica e bastante errática para sua protagonista.

Bastante premiado em festivais de cinema, entre eles, o Festival de Cannes, a produção franco-belga foca na vida de Alexia, uma moça de vida e rotina bastante confusas, que vive perigosamente entre traumas, atos de violência e que segue em uma jornada nada convencional sobre amadurecimento.

A sinopse do filme é bem confusa e não faz muito jus ao que é mostrado em tela. Segundo ela, um jovem chamado Adrien Legrand é encontrado em um aeroporto, ferido no rosto e envolto em mistérios, já que foi dada como desaparecido há dez anos atrás.

Isso até explica parte da narrativa, mas não ela como um todo, claramente Ducornau conta duas histórias distintas, cuja interseção é a personagem interpretada por Agathe Rousselle.

O filme é recente, lançado em 2021, falar dele tomando cuidado com spoilers é um esforço complicado, portanto falaremos sobre a trama livremente após esse aviso.

Titane: a fábula de Ducornau sobre feminilidade e instintos primitivos

As primeiras cenas registradas pela câmera são bastante impessoais.

A lente grava um passeio pelas partes externas de um carro de forma tão próxima que lembra a filmagem do corpo de alguém, quase como registros pornográficos, que exibem a pele e corpo de pessoas em situação de nudez.

Logo é mostrada uma viagem onde um motorista e uma menina atrás vão para algum lugar. A menina, interpretada por Adèle Guigue imita os sons do motor e das engrenagens do carro, e isso incomoda o seu pai, que é feito por Bertrand Bonello.

A medida que ela aumenta o som, ele aumenta o volume da música no rádio para abafar o incômodo. Ela então passa a chutar o banco do motorista, fato que o faz se irritar e perder a atenção, batendo o carro e machucando a garota que pouco antes, retirou o cinto de segurança.

Essa sequência toda é feita quase sem diálogos, nem Alexia nem seus parentes falam, fato que caracterizaria a rotina da mulher quando adulta.

Sua forma de expressão é quase sempre corporal, e depois que ela coloca uma placa de titânio no crânio, ela abraça o veículo, demonstrando para o objeto que ela não guardou qualquer rancor da máquina.

Titane: a fábula de Ducornau sobre feminilidade e instintos primitivos

Nesse interim, o universo não grandes mudanças do dito "universo real", ao menos não visualmente, mas aparentemente há pequenas diferenças sobre o funcionamento da vida, sobre o procedimento dos objetos inanimados.

Esse é o terceiro filme da diretora, que fez Grave (ou Raw, no original), lançado em 2016 e o telefilme Mange que ela co-dirigiu com Virgile Bramly em 2012. Quando foi lançado em festivais, muito se comparou ele ao cinema de David Cronenberg, por conta do horror corporal, e também pelo amor pela adrenalina, visto especialmente em seu filme Crash: Estranhos Prazeres, de 1996.

Há aqui algumas semelhanças com Christine: O Carro Assassino, de John Carpenter, especialmente nos enlaces amorosos de Alexia.

O roteiro de Ducornau tem uma visão quase teatral, dividida em atos. No primeiro momento, após a introdução já citada, ele acompanha Alexia adulta, bela e crescida, sem qualquer pudor sobre as cicatrizes que carrega do acidente, inclusive valoriza o corte acima da orelha direita, que dá uma breve visão sobre a placa de titânio que ela carrega e ostenta.

O segundo envolve uma aproximação com Vincent, personagem do veterano ator Vincent Lindon, que é a parte que fala de Adrien Legrand, mas isso será explorado mais para frente.

Na parte um, Alexia ganha dinheiro em um ramo bem especifico, com danças eróticas em cima de carros em festivais de venda de máquinas caras e raras.

Quando ela dança, claramente fica à vontade, parece uma pessoa completamente diferente de quando tem que conversar com as pessoas. Ela parece ter uma certa fama, tanto que chama a atenção de fãs, e é perseguida por um sujeito, que tenta se aproximar de forma agressiva e invasiva.

O filme não faz cerimônia, com 12 minutos já ocorre um ato mega violento, com ela enfiando um grampo de cabelo pelo ouvido do sujeito, que convulsiona, baba e morre.

Todo esse número é bem estranho, pois ao ser abordada ela parece retraída, depois "cede" aos gracejos dele, por um momento faz o público pensar que pode ter gostado, mas ela fez isso basicamente para quebrar o sujeito, deixando ele à vontade e vulnerável.

Ducornau passa boa parte do drama expondo a personagem em banhos, que mostram sua nudez, mas não de forma glamourizada ou sensual. Quando ela dança, fica mais a vontade e muito mais sexualizada, e curiosamente tem mais apelo sexual nesses pontos do que nas cenas anteriores.

Titane: a fábula de Ducornau sobre feminilidade e instintos primitivos

Quando está ela só se limpa da sujeira de sua rotina e de seus atos, lidando assim com sensações de vergonha e culpa, exceção feita a um certo enlace que ela tem.

Ela parece estar tensa quase sempre, não se sabe se era por conta de um stress anterior ou se foi devido ao ataque que sofreu. De qualquer forma, seu momento de alívio é quando ela entra no banco de trás do seu carro, e no lado externo se percebe o veículo balançando bastante.

Quando a câmera vai ao interior, se percebe que ela está em posições sexuais explícitas, literalmente transando com a máquina.

Como a personagem de Alexia é calada e misteriosa, não dá para saber qual é sua orientação sexual quando se trata de humanos. Ela tenta transar com garotas, mas ao perceber a barriga aumentar e ao perceber que sai um líquido preto de sua vagina, ela chega a bizarra conclusão de que está grávida.

Suas tentativas de abortar falham, embora pareça ser por medo, e não por falta de tentativas. Ela simplesmente aceita a sua estranha sina e não fica claro se aquela era uma prática comum nesse universo ou se ela estava sofrendo com uma influência sobrenatural, extraterrena ou algo que o valha.

Não dá para saber se é por conta de ter entendido que está em uma situação limite ou se ela de fato tem fome por vidas, fato é que ela acaba matando muita gente e ao passar por cartazes que estampam seu rosto como procurada, ela percebe que tem semelhanças com uma pessoa desaparecida, no caso, Adrien Legrand.

A partir do ponto em que tem a ideia de cortar os cabelos, esconder seios e barriga grávida, quebrar o nariz para se parecer com Adrien, começa a segunda parte, o tomo dois do filme.

Ela consegue enganar Vincent, o pai do rapaz, que é o chefe de uma brigada de bombeiros, ou ao menos é o que parece, já que o homem de meia idade está perturbado, corroído pela culpa e carente da presença de alguém querido, já que perdeu Adrien com uma distância de tempo considerável, mais de dez anos.

O tempo inteiro Lindon parece carregar um fardo tremendo, mas tal qual os homens da antiguidade, ele fica em silêncio, não fala dos próprios problemas e anseios, só quer seguir sua vida, trabalhar, cuidar do seu filho recém encontrado,

Titane: a fábula de Ducornau sobre feminilidade e instintos primitivos

Ducornau utiliza demais de elementos visuais e de áudio para construir essa atmosfera de estranheza.

O tempo inteiro aparecem corpos seminus, com luz neon em cima. A música composta por Jim Williams é um fator poderoso, já que ajuda a narrativa sem ser invasivo e intrusivo, já que não antecipa tanto as emoções a se viver, só as agrava.

Os personagens da nova família vivem de aparências. Enquanto Adrien/Alexia sofre ao tentar esconder sua barriga crescendo e seus traços femininos, o pai postiço dela injeta testosterona nas nádegas, com seringas que não parecem seguras, é impossível assistir isso e não associar o ato ao de um viciado em drogas.

Ambos têm coisas as esconder e a compensar.

O filme faz o espectador pensar que Vincent morreu, por culpa do uso das seringas, graças a uma super dosagem. Alex chega a se sentir compelida a cuidar dele, a fingir ser o filho perdido do capitão ao invés de fugir.

Eventualmente ela é descoberta, mas a farsa é tão mal construída que pouco importa para ela e para Vincent. Por conta do fato dela finalmente ter tido algum tipo de aceitação mínima a quem ela era e ao que ela era, ela se afeiçoa, e até confunde as pulsões e o motivo da relação ali. Isso se dá sem discursos, sem problemas, sem grandes conversas sobre o que eles viviam.

Só era o que era, e para Vincent, estava bom.

Há uma cena em particular que é bem complicada. Em uma reunião dos bombeiros, onde Adrien trabalhava, ela quase "sai do armário", se permitindo dançar em cima de um carro, em um número bem estranho, pois seu gestual é feminino e seu visual é masculino. Pouco antes dela se revelar para eles, ela para, ao ver Vincent se aproximando. Correr o risco de quebrar a magia do novo pai não era uma boa opção, então ela decide simplesmente parar.

A fotografia de Jean-Christophe Bouzy valoriza olhares, sensações da personagem, tanto enquanto mulher como ser andrógeno. Esse aspecto fortifica a sensação incômoda do final, já no parto finalmente vindo.

É dantesco, poético, nonsense e bizarro, e esse momento ocorre em paralelo com seu pai estar sofrendo, depois pegar fogo quando se acidentou em sua cama com álcool e fosforo.

De uma tentativa de suicídio nasce um parto. Ela não suporta a dor, tem o abdome tomado por feridas de metálicas, dá a luz a uma criança de carne e titânio, o híbrido de homem e ferro, nunca antes pensado e bizarramente concebido.

Titane é perturbador, brinca com o horror corporal e com sua atmosfera de tensão. Ducornau pode não agradar a todos, mas aos acostumados ao cinema B, essa é uma obra digna de abraços, que conversa bem com tramas típicas de filmes de horror trash e que possui subtextos poderosos e potentes, além de ter potencial para agradar os fãs de um cinema mais hermético e de estética não comercial.

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