1968, Londres. Em um palco qualquer, um teste de atuação para um filme está prestes a acontecer. Na plateia, um homem semelhante a um senador romano: Nariz meio curvo, cabelos grisalhos, um pouco acima do peso, baixinho e com olhos marcantes. Subindo no palco – atrasado – um jovem rapaz com os cabelos loiros e um tanto longos, olhos profundamente azuis, sorriso cruel e um corpo magro. O pequeno e velho homem se apresenta: “Olá, sou Lindsay Anderson. O que anda fazendo, garoto?” Logo o rapaz jovem, de nome Malcolm McDowell, começou a fofocar a respeito de como o Royal Court – famoso teatro inglês – era horrível e como a peça em que ele participava – Noite de Reis, na qual interpretava Sebastian – possuía uma péssima montagem, principalmente por conta de seus figurinos modernos “ridículos”. Uma pausa se seguiu e Anderson disse: “Malcolm, você sabe, claro, que eu dirijo o Royal Court.” Outra pausa se seguiu: “Bem, então acho que não vou conseguir esse papel, certo?”. Um sorriso surgiu no rosto de Anderson: “Não necessariamente...”. Entregaram-lhe um roteiro e uma linda moça de olhos negros entrou no palco para atuar com McDowell, seu nome, ele saberia depois, era Christine Noonan. Eles começaram a cena e, um pouco à frente, o roteiro dizia:
MICK pega a GAROTA, e a beija com paixão.
Malcolm, talvez envolvido pelo personagem, a beijou com tanta força, que seus dentes se bateram e Christine cortou seu lábio inferior. No outro parágrafo estava escrito:
GAROTA bate na cara de MICK.
Antes que Malcolm pudesse terminar de ler a frase, Christine bateu em seu no rosto. Mas não foi um simples tapa, se tratava de um soco, um soco tão forte que o ator caiu de costas no palco.
Aquele tratava-se de um empurrão para o estrelato. Malcolm conseguiu o papel para “If...” – filme de 1969, dirigido por Lindsay Anderson, um dos mais importantes diretores ingleses do pós-guerra – que trata de uma insurreição estudantil armada numa escola pública inglesa e foi um divisor de águas no cinema de contracultura no Velho Continente.
Lindsay, um dos líderes do “British New Wave”, movimento de cinema vanguarda dos anos 60, equivalente à “Nouvelle Vague” Francesa – fez um filme com vários diálogos e frases contestadoras e apologias revolucionárias como: “A Violência e a Revolução são os únicos atos puros”, recheando também a obra com uma série de cenas surrealistas e alegóricas.
Mesmo com a alta classificação Britânica, o longa teve grande sucesso em sua arrecadação e abocanhou o premio de Melhor Filme no Festival de Cannes em 1969. Em 2004 a revista Total Film o classificou como o 16° Melhor Filme Britânico de Todos os Tempos: “If... foi um tremendo sucesso e mudou minha vida. Deixei de ser um simples ninguém para ser o cara que é recepcionado em um restaurante com uma ótima mesa na janela, mesmo sem ter reservado uma”, recorda-se Malcolm. A vida do garoto que fazia pequenos papéis em peças, arrastava cenários e trabalhava no PUB dos pais servindo café, havia mudado para sempre.
Em uma pequena sala de cinema particular em uma casa a uns 35km ao norte do centro de Londres, um homem barbudo assistia repetidas vezes uma pequena cena no começo de “If...” onde Malcolm McDowell fazia alguns movimentos frente a um espelho: “É o Alex, Christine. Ele é exatamente assim!” ele dizia entusiasmado à sua esposa – tratava-se de Stanley Kubrick.
Stanley ligou para Malcolm e ao encontrá-lo, disse que havia assistido If... inúmeras vezes e disse também que estava pensando em fazer um filme baseado em um livro, mas que preferia não dizer nada a respeito naquele momento. O diretor entregou o livro Laranja Mecânica à Malcolm, e pediu que ele lesse e então ligasse para que pudessem conversar a respeito. McDowell leu o livro três vezes e ligou para Kubrick: “Stanley, você está me oferecendo o papel principal?”. Por ser inocente no ramo, nem percebeu a terrível gafe que havia cometido, mas ainda assim, após uma longa pausa, o cineasta espondera: “Sim...”.
Após inúmeros meses de pré-produção, as filmagens de Laranja Mecânica começaram, e como era típico de um filme de Stanley, o dinheiro era pouco, – 2,2 milhões apenas – a equipe era pequena e dedicada, e sempre, sempre filmava-se muito. Por exemplo, a cena em que vemos Alex a transar de forma acelerada, com duas garotas, ao som de “William Tell Overture”, tem em sua totalidade 28 minutos, sem a aceleração, e para ficar pronta, foram necessários 74 takes.
O perfeccionismo exacerbado de Kubrick fazia que mesmo cenas simples demorassem semanas para serem concluídas, pois cada detalhe era extremamente importante ao diretor. “Víamos ele mexendo no nível dos copos de vinho da cena, nos discos nas prateleiras e etc, mas não imaginávamos que aquilo significava algo, pois Stanley nunca abria a boca para comentar tais coisas” recorda Jan Harlan, cunhado e produtor executivo dos filmes de Kubrick.
Malcolm ainda fraturou algumas costelas durante a cena em que o personagem é apresentado ao público, logo após o tratamento. Foi quase afogado nas inúmeras vezes em que fez a cena em que é violentado por seus antigos parceiros – Droogs – e teve sua córnea aranhada naquela em que é obrigado a assistir filmes de violência.
Apesar das difíceis gravações, a parceria entre Malcolm e Stanley funcionou muito bem no filme, o que resultou em um desempenho extremamente brilhante e em cenas emblemáticas como a em que Alex e seus Droogs estupram uma mulher ao som de “Singin in the Rain” , que não estava escrita assim no roteiro, mas que após mais de seis dias sendo trabalhada a exaustão, Stanley sugeriu que Malcolm dançasse, coisa que o ator fez enquanto cantava a música que conseguia se lembrar no momento, imortalizando uma segunda vez a canção de Gene Kelly, que nunca mais foi a mesma.
Com o filme pronto e um sucesso estrondoso – mais de 26 milhões nas bilheterias – veio também uma avalanche de violência. Malucos passaram a matar pessoas enquanto cantavam “Singin in the Rain”, outros ameaçaram a vida de Kubrick e de sua família e etc. O filme foi retirado de cartaz em Londres, proibido em tantos outros países, mas nada o impediu de ser nomeado a vários prêmios, e de ter ganhado tantos outros, como o de Melhor Diretor e Melhor Filme dos Críticos de Nova York.
Alguns anos antes, depois da cerimônia em que “If...” ganhou o prêmio de Melhor Filme em Cannes, Malcolm e Lindsay andavam pela rua e Malcolm questionou: “Quando faremos outro filme juntos? Fazemos um belo time!”. Lindsay parou e rolou os olhos: “Malcolm, de onde acha que os bons roteiros vêm? Das árvores? Se quer trabalhar em um novo filme comigo é melhor escrever um bom roteiro!”. Lindsay virou as costas e foi para o seu hotel. Aos berros, Malcolm gritou: “Vá se Foder! Eu vou escrever um sim!”. Aí nascia as primeiras paginas de “The Coffee Man”, baseado nas experiências de Malcolm como vendedor de café. “Eram umas 40 páginas, e levei para Lindsay ler e ele me disse: ‘Não esta nada bom, Malcolm.’, mas respondi: Está, Lindsay e esse será o seu próximo filme!”. Lindsay mandou Malcolm se encontrar com David Sherwin, roteirista de “If...” para “Transformar aquilo em algo épico!”
Bastante trabalho depois, “The Coffee Man” se tornou “O Lucky Man!”, uma sequência de “If...” com o personagem Mick Travis. O simples enredo de vendedor de café se tornou uma alegoria sobre a sociedade capitalista. Mesmo assim, a trama com traços biográficos não caiu, e o fim de “O Lucky Man!” juntou a ida de Malcolm ao estrelato, o soco de Christine Noonan, e a sua escolha para o papel de Mick para “If...”
A direção realmente ficou a cargo de Lindsay, a trilha sonora de Alan Price – Tecladista da banda The Animals – e a fotografia do Checo Miroslav Ondricek – fotógrafo de “If...”
“O Lucky Man!” foi lançado em 20 de Junho de 1973 e mesmo sendo um belíssimo filme, com direção apurada, roteiro inovador e com reviravoltas entusiasmantes, sua arrecadação foi fraca e suas críticas mornas. Atualmente – 41 anos depois – o Rotten Tomatoes exibe avaliação positiva de 82%.
Mais um filme compõe a trilogia de Mick Travis, o também pouco conhecido: “Britannia Hospital” de 1982 que desta vez tem como foco o Serviço Nacional de Saúde Britânico. Novamente o grupo principal, McDowell, Anderson, Sherwin e Price são os responsáveis pelo filme.
Dentre os vários pequenos filmes que Malcolm fez em seguida, destacam-se o mal afamado “Calígula” – Tinto Brass. 1979 – que conta a história do tirano que comandou o Império Romano por quatro anos, período em que assassinou vários membros da aristocracia senatorial, casou-se com sua irmã e deu a seu cavalo o título de senador.
O longa, considerado um filme pornô/épico, foi alvo de inúmeras críticas, inclusive do próprio elenco, que tem estrelas como Peter O’Toole – “Lawrence da Arábia” de 1962 – e John Gielgud – “Elephant Man” de 1980, “Arthur” 1981 – atores esses que não sabiam dos rumos do filme e muito menos de seus mais de 20 minutos de cenas explícitas de sexo.
Certa vez, Malcolm, ao saber que Bob Guccione – criador da revista adulta Penthouse – era Produtor do filme, perguntou ao diretor Tinto Brass: “Mas esse Bob não meche com pornografia?” e Tinto respondeu com um grande sorriso: “Não, Malcolm. Pense nele como um grande investidor. Ele apenas assina os cheques”. Mal sabia o ator que ele não só introduziria toda a pornografia no longa, como também viria a dirigir algumas das cenas. De qualquer forma, “Calígula” foi um estrondoso sucesso, apesar das inúmeras críticas horríveis e das proibições em alguns países e cinemas.
Com destaque também em sua carreira está “Time After Time”, filme de 1979 dirigido por Nicholas Meyer – “Star Trek II e VI”, 1982 e 1991 – onde Malcolm interpreta o escritor e inventor inglês H.G Wells, que, ao ser transportado para o futuro junto ao assassino Jack Estripador, pretende capturá-lo, entregá-lo à polícia e então, voltar à Londres de 1893, mas se apaixona pela funcionária de um banco, interpretada pela americana Mary Steenburgen – “De volta pro futuro 3” – por quem se apaixonou verdadeiramente durante as gravações, casando-se com ela pouco tempo depois.
“Em minha carreira fiz muitos, muitos filmes, e a maioria deles são horríveis. É assustador quando vejo uma lista deles na internet. Em alguns anos cheguei a fazer sete filmes, todos péssimos, mas algumas pérolas apareceram.”. Entre elas estão: “Cat People” de 1982, dirigido por Paul Schrader – roteirista de “Taxi Driver” de 1976 – “The Player” de 1992 dirigido por Robert Altman – “M*A*S*H” de 1970 – “Gangster No.1” de 2000 dirigido por Paul McGuigan – “The Acid House” de 1998- e “I'll Sleep When I'm Dead”, brilhante filme de 2003 dirigido por Mike Hodges – “Get Carter” de 1971.
Mesmo trabalhando muito, Malcolm sempre tinha tempo para ir até a sua casa de verão na Itália. Próximo de lá, morava um amigo seu, o crítico de cinema David Grieco. Certa vez, em uma de suas inúmeras conversas, David entregou a Malcolm uma cópia de seu livro “O comunista que comia criancinhas” dizendo que gostaria de adaptá-lo para o cinema. De modo a incentivá-lo, Malcolm disse que faria o papel de “comedor de criancinhas” se ele fizesse o filme.
No ano seguinte, lá estava o roteiro. Eles leram e o ator percebeu que havia uma cena um tanto forte logo no inicio: “David, se quer mesmo fazer esse filme, não pode fazer o personagem matar uma criança de 10 anos nos primeiros 5 minutos de filme. As pessoas não vão gostar disso”. Conselho dado, no ano seguinte David tinha uma nova versão do roteiro, e o assassinato da menina de 10 anos ainda estava lá. Malcolm o alertou novamente: “Por mais três anos fui à casa de David e a menina continuava nas primeiras páginas, mas de qualquer forma, não imaginei que ele conseguiria o dinheiro para filmar aquilo. Dois anos depois, David me liga gritando: ‘Temos o dinheiro! Vamos fazer o filme!’, e eu desanimado dizia: ‘Eba... interpretarei um assassino canibal pedófilo que comeu mais de 100 crianças. Maravilhoso, incrível.’
O roteiro tomou forma e se tornou mais do que uma simples história sobre um assassino serial killer soviético, mas uma estranha metáfora sobre a queda do comunismo.
Mesmo se tratando de um ótimo texto, Malcolm enfrentava um problema sério, não estava muito feliz com o papel. Apesar do peso de todos os vilões que ele havia interpretado até então, nenhum havia existido de verdade, ou se tratava de alguém tão terrível quanto Andrei Romanovic Chikatilo, serial killer real que havia inspirado Evilenko, o personagem da obra: “Minha mulher estava grávida e eu estava em Kiev, para interpretar um assassino pedófilo. Aquilo não me fazia bem. Ao chegar ao hotel, recebi uma série de fitas sobre o cara real, então as coloquei para passar e fui arrumar minhas coisas, tomar um banho e em determinado ponto, passei em frente à TV e vi uma imagem do cara no tribunal, olhando para a câmera de um jeito extremamente estranho e rindo. Naquele momento percebi que aquele personagem era alguém que eu poderia explorar enquanto performance, em seu olhar, em seu jeito, em seu andar.”. Tal observação fez com que Malcolm interpretasse algo muito distante de seus outros personagens. Sua atuação em “Evilenco” de 2004 é assustadora. Seu andar é algo completamente atormentador, semelhante a um abutre e seus olhos na tela são uma mistura de mal e inocência, de perversão e prazer.
Apesar do tenso tema e de seu minúsculo orçamento, “Evilenco” teve uma boa distribuição e ganhou 18 prêmios, entre eles o de Melhor Filme no festival de Manresa (Barcelona) e o de Melhor Diretor no Festival Tiburon (San Francisco).
Algumas outras participações se seguiram, entre elas os filmes novos da franquia “Halloween” 2007-2009, o “Artista” 2012 e “The Employer” de 2013. Malcolm também sempre emprestou sua voz para alguns personagens, como o vilão da animação “Bolt” de 2008 e Daedalus no jogo “God of War 3”.
Em resumo, vemos em Malcolm McDowell a jovialidade de um homem extremamente talentoso que deu a sorte de fazer aquilo que o faz feliz, atuar. E essa é a sua sina, entrar e sair de personagens, às vezes pequenos, às vezes grandes, às vezes ruins, mas como diria ele mesmo: “Eu trabalho muito e faço muita besteira, e às vezes me aparece uma pedra preciosa, e é isso que eu espero e é isso que eu procuro, mas nem sempre funciona assim e eu continuo, pois mesmo nos filmes ruins eu me divirto muito. Especialmente se a comida for boa”.
Referências:
- Never Apologize – Mike Kaplan – 2007
- The Return of A Clockwork Orange - Paul Joyce – 2000
- Malcolm McDowell Interview – 17 de Maio de 1976 – BBC
- Malcolm McDowell Interview – 2005 – Q TV
- Malcolm McDowell Interview – 1994 – Q TV
- Malcolm McDowell Interview – 1994 Leterman – CBS
Para mim Malcolm Mcdowell é um excelente ator, teve alguns papéis de destaque outros não tão bons, passou por percalços em sua vida e soube dar a volta. Gostei muito da matéria que faz esse pequeno resumo a biografia desse ator que eu admiro tanto.
Muito boa sua matéria, sobre um tão bom, mas na maioria das vezes apenas lembrado por sua atuação em Clockwork Orange. Adoro o Malcolm, seus filmes com o Lindsay Anderson são ótimos, ele é meu ator preferido.