O Confronto: o pioneiro filme de arte marcial sobre multiverso

O Confronto: o pioneiro filme de arte marcial sobre multiversoEssa coluna busca toda última sexta-feira do mês falar de alguma peça de ação de origem asiática. Para isso, falamos do clássico Luta sem Código de Honra de 1973 anteriormente e nesse dia "roubaremos" de leve, falando de um filme norte-americano, mas conduzido por um diretor e o protagonista chineses.

O Confronto é um filme de ficção científica e artes marciais protagonizado por Jet Li, que tem em sua essência bastante semelhanças ao recente vencedor do Oscar, o curioso Tudo em Todo o Lugar ao Mesmo Tempo.

Li é Gabriel Yulaw, tanto no universo "prime" quanto em suas diversas versões. Na maior parte do tempo, ele é um policial que se vê obrigado a enfrentar o pior dos inimigos: ele mesmo, uma contraparte sua de outra realidade, que busca zerar as versões de todos os universos para se tornar o ser definitivo, reunindo a força e poder de cada uma dessas partes.

Logo no início há uma explicação bem simples e direta sobre o conceito de realidades paralelas e multiverso, fala também sobre uma força externa que busca poder e o desbalanceamento do multiverso, buscando ser o único ou The One, como é o nome original do longa.

A cena imediatamente posterior é a de policiais se paramentando com armaduras, coletes grossos e trabucos enormes, determinando que aqui nessa realidade, há um caráter mais armamentista do que a realidade que vivemos.

O Confronto: o pioneiro filme de arte marcial sobre multiverso

Na televisão há o anúncio de que o presidente Gore, em uma clara referência a Al Gore, político que foi vice-presidente na época de Bill Clinton, provavelmente ele concorreu e venceu o candidato a presidência republicano, revelou planos de Casa Branca para a população, mas o discurso é cortado, deixando no ar que possivelmente é ele enquanto autoridade política quem autoriza esses métodos tão agressivos.

Um policial escolta Yulaw, apresentado nessa versão como um presidiário, em uma prisão de segurança máxima.

Chega a ser cômica a sequência, é impossível levar esse trecho a sério, já que todos os personagens são baseados em arquétipos e estereótipos, e nada mais. É um conjunto de caricaturas reunidas de maneira tão cara de pau, que chega a ser divertido.

O roteiro de Glen Morgan e Wong é um fiapo, no quesito trama. O mérito real reside em abordar um conceito que ficaria em voga anos depois e por permitir uma porradaria franca, com direito a muita câmera lenta, uso de bolas de tênis verdes como substituto de pessoas em tela, um show de tiros que mesmo empregado dessa forma, não consegue deter o personagem que Li faz.

Jet Li está mais do que a vontade em seus papeis. Desempenha quase todos na mais pura canastrice, é sabido que ele não é um ator com dotes grandiosos em quesitos dramáticos, mas ele consegue passar bem a sensação de que é um sujeito de capacidades sobre-humana e poder quase infinito.

A estética que Wong escolhe empregar, colocando os personagens com figurinos escuros, usando peças de couro, sobretudos, é um visual bem característico.

O figurino e o uso de músicas do New Metal ajudam a colocar esse dentro dos produtos que confluem no mesmo estilo conhecido como "os filmes de sobretudo e óculos", como eram também Blade: O Caçador de Vampiros, Matrix e Cidade das Sombras.

O Confronto: o pioneiro filme de arte marcial sobre multiverso

No entanto não fica parecendo uma simples apropriação de elementos populares alheios e sim uma paródia de tudo que fazia sucesso. Se era intenção dos produtores Steve Chasman, Charles Newirth, Wong e Morgan ou não, já é outra história.

O elenco também não deixa por menos. Na perseguição ao sujeito estão versões de Jason Statham e Delroy Lindo, que fazem os agentes Funsch e Roedecker respectivamente.

Também há Carla Gugino, que faz o par do personagem central (em mais de uma linha do tempo, diga-se) James Morrison, Dylan Bruno, e cada um deles tem um papel breve, visualmente chamativo, mas com pouca interferência na trama central.

Outro fator diferencial mora no arsenal. Há armas estilizadas para os vilões, policiais e agentes multiversais. Há inclusive a utilização pioneira da M16, uma metralhadora protótipo que estava em período de testes e foi emprestada pela C-More System para a produção do filme.

É legal ver Statham contracenando com Li antes de Rogue: O Assassino (2006) e até da franquia Mercenários ainda mais com esse visual diferenciado, tentando disfarçar a calvície que claramente se avoluma.

Lindo também tenta disfarçar a queda de cabelos, utilizando uma pintura bem mequetrefe na cabeça. Aparentemente era uma época difícil para atores assumirem sua condição capilar prejudicada, o que por si só é algo curioso, já que poucos anos não era incomum assistir personagens bons e maus utilizando até cabelos longos mesmo que boa parte da cabeça estivesse "descampada".

O Confronto: o pioneiro filme de arte marcial sobre multiverso

O que não combina é o uso de CGI porco, que faz os memes exagerados que associam o uso digital do cinema blockbuster dessa época aos gráficos de Play Station 2 parecer lógico e até elogioso, visto que esses efeitos envelheceram mal.

Essa era uma época sombria nesse quesito, filmes contemporâneos como O Retorno da Múmia (2001), União do Mal (2002), Matrix Reloaded (2003) e Van Helsing - O Caçador de Monstros (2004) já exageraram no uso de um CGI artificial e esse é só mais uma produção assim.

Mas não é só a questão digital que chama a atenção. Há espaço até para discurso motivador. O monólogo que Gabriel faz, afirmando que só buscou a lógica ao "se assassinar" 123 vezes é deliciosamente tosco e divertido, beira o nonsense, assim como a total falta de segurança na hora de utilizar a cadeira elétrica, que acaba sendo o momento onde ele foge, para ir atrás da sua última versão, a número 124.

A trilha sonora é sensacional com diversos sucessos de bandas populares da época. O Papa Roach por exemplo emplaca Blood Brothers e Last Resort, também há Sinner da banda Drowning Pool, além do clássico gritado Down With the Sickness do Disturbed, em uma das cenas de lutas mais memoráveis, simplesmente embala uma das lutas entre Jet Lis.

O trabalho de música original de Trevor Rabin pontua bem os momentos emocionais, os que tencionam ser mais dramáticos, tanto que até ajuda a mascarar a falta de talento em atuação dos brucutus.

Da parte da equipe que comandou o filme há o diretor James Wong que nasceu em Hong Kong e era acostumado a gerir produções B, seja no terror, ficção científica e até em adaptações de anime. Ele foi o regente de Premonição, Dragon Ball Evolution e produtor do revival de Arquivo X, de Millenium e American Horror Story.

Já Glen Morgan tem textos em trabalhos reconhecidamente legais. Fez Os Desajustados (1985), Heavy Metal do Horror (1986), escreveu episódios de Anjos da Lei, Comando Espacial, Millenium, trabalhou com Wong no roteiro de Premonição e Premonição 3, e virou até diretor em A Vingança de Willard (2003) e Natal Negro (2006).

O filme mostra uma segunda realidade, universo esse onde se passa a maior parte do filme, Yulaw aparece em uma cena semelhante a do início, mas em outra posição, como um policial exímio, veloz ao ponto de capturar a lâmina de uma faca no ar, comandando a escolta de um preso.

Fica a pergunta do porquê essa contraparte consegue mais força e poder, já que a regra de ganhar poder com a morte das outras versões seria explicada mais a frente, enquanto a versão anterior reagiu passivamente não reagindo de modo algum.

O conhecimento de que existem outras versões idênticas a si mesmo em DNA, pensamentos e sentimentos ou iguais ou muito parecidos com os que existiam internalizados em si poderia ser chocante, mas aqui é tratada como algo comum. Basta uma montagem musical com tema otimista e golpes no ar para que o personagem central se recomponha e compreenda a complexidade do conceito.

Há boas cenas de luta, apesar das interferências digitais. A sequência no hospital tem boas tomadas, especialmente quando o personagem desvia das balas. A ideia de fazer o herói despertar suas super habilidades aos poucos é muito boa.

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Li faz algumas manobras não letais muito boas, faz um uso bem criativo das algemas dos tiras que tentam cercá-lo e é inevitável perceber um tom cômico involuntário, tal qual era bem comum nos filmes de luta chineses com Jackie Chan.

Vale dizer que enquanto é Gabe, ele tem um desempenho dramático até que razoável, parece de fato viver o estado de confusão em relação a motivação. Cabe a Funsch explicar as regras da multivida para Gabe e mesmo com essa parte do roteiro sendo bem explícita, o sujeito ainda permanece incrédulo em discurso, mas como dito antes, tem em seu corpo memórias físicas muito aprimoradas.

É como se seus músculos estivessem corporalmente evoluídos, enquanto sua mente tenta assimilar as novas regras de vivência.

Enquanto isso, Roedecker enfrenta a versão malvada do protagonista, que é tão preparado para o combate que seus punhos atravessam ferro e seu queixo é capaz de segurar a mão do adversário, fator esse semelhante ao visto no dedo mindinho da Evelyn Wang de Michelle Yeoh de Tudo em Todo Lugar ao Mesmo Tempo.

O uso de arames nas cenas de ação é bem empregado, consegue traduzir a estética Wuxia bem para a estética ocidental. As coreografias das lutas de Corey Yuen e a coordenação dos dublês também funciona muito bem, já que as cenas de luta são bem organizadas.

Próximo do final, as versões de Gabriel lutam e para isso, fazem questão de se diferenciar com um deles abrindo o casaco preto para se distanciar de sua versão, uma vez que em determinado ponto, ambos utilizam roupas praticamente iguais.

O Confronto: o pioneiro filme de arte marcial sobre multiverso

Quando dois titãs se chocam com poder e força praticamente iguais, sobra a técnica.

É por isso que a batalha acaba sendo decidida no esforço e disciplina do kung fu, com as duas versões lutando um estilo distinto, o malvado, praticando a forma Xingyiquan, enquanto o herói usa os passos do Baguazhang.

A luta faz uso largo de dublês, que por sua vez, usam uma máscara verde, para depois ser substituída por tomadas de Li. Só é uma pena que uma sequência que começa e termina tão bem, dando atenção e espaço para técnica de luta, acabe perdendo boa parte de sua força com o uso de inserções bem ruins de 3d, com faíscas e explosões horríveis.

Irrita também que o penteado de Li é muito invertido. Em determinada cena o corte está para o lado e nas próximas, está invertido. O continuísmo deixa passar a imagem invertida, parecendo que o personagem muda o penteado direto.

O texto arranha uma crítica social ao punitivismo e ao exacerbar do aspecto jurídico, que pune o Gabe "maléfico", levado a uma realidade prisão, enquanto o bom deveria retornar ao seu mundo, para ser punido, mas acaba em outro cenário, tão bizarro quanto um mundo de dedos de salsicha.

Yulaw prometa lutar na realidade penal contra todos os presos, e fecha sua participação de maneira trash, combatendo seus adversários, em uma espécie de prédio preto, em formato de uma pirâmide pequena. A cena seria patética, caso o filme não fosse tão desapegado a uma espécie de cinema mais sério.

O Confronto tem belos e maus momentos, explora de maneira criativa o conceito multiversal. Apesar de ter recebido muitas críticas negativas, teve uma arrecadação ok, não o suficiente para se tornar franquia, e se tornaria um fenômeno na época das videolocadoras. Mesmo penando graças aos maneirismos da época, ainda assim resta um filme divertido, com uma premissa complexa e bastante avançada para a sua época.

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