M3gan é um filme bastante esperado entre os fãs de filme de horror. Dirigido pelo cineasta neo-zelandês Gerard Johnstone, a obra mostra a jornada de uma promissora engenheira de robótica que "dá a luz" a uma boneca de inteligência artificial e a envolve em sua vida privada e familiar.
As consequências obviamente são trágicas, e brincam com o clichê da revolta de uma máquina contra seu criador, conhecido como o Complexo de Frankenstein, além de lidar com a famosa questão do Vale da Estranheza ou Uncanny Valley, uma vez que o protótipo é um bocado esquisita, e demora a fazer acostumar com seu visual.
Nos materiais de divulgação há destaque para o fato de ser "dos produtores de Anabelle e O Telefone Preto", e de fato, eles estão lá. Há quatro produtores aqui, o dono da Blumhouse Jason Blum, a dupla Couper Samuelson, Michael Clear e claro, James Wan, que também fez o argumento, que foi adaptado pela roteirista Akela Cooper.
Cooper é conhecida por Star Trek: Strange New Worlds, O Legado de Júpiter e pela parceria com Wan em Maligno, portanto tem experiência com as duas temáticas centrais, a ficção científica mais especulativa e o horror puro.
O protagonismo recai sobre Allison Williams, atriz lembrada por ter feito Corra. Aqui ela interpreta Gemma, a engenheira dita na sinopse, que está em crise em seu trabalho graças a prazos para uma versão mais barata de um brinquedo pet.
Ela também é tia de uma menina recentemente órfã, e acaba se tornando tutora e mãe postiça da mesma, em um papel bem diferente da personagem mais famoso dela, Rose Armitage.
Ao falar das agruras de uma maternidade forçada, já que ela tem que cuidar de Cady interpretada pela ótima Violet McGraw de A Maldição da Residência Hill), o filme acaba abordando temas pontuais e importantes, uma vez que ainda no início é mostrado que a menina tem dificuldades de se concentrar.
O texto conterá spoilers, e como é um filme recente.
A sua cena de introdução também é a despedida de seus pais, que morrem em um acidente de carro. Johnstone consegue inserir angústia, suspense e um visual sensacional nesse início.
O diretor tem poucos trabalhos em sua carreira, e para o grande público, o mais conhecido sem dúvida é o bizarro Housebound, que mistura horror e comédia.
M3gan não é tão escrachado quanto o longa anterior, mas tem seus momentos engraçados.
O maior exemplo de comicidade são os comercias dos animais eletrônicos, de conteúdo leve, levam uma ironia atroz para a tela, ao tentar parecer fofos. Há um bocado de influência de Paul Verhoeven, em um tom de sátira como foi Tropas Estelares e Robocop.
O nome M3gan é uma abreviação e uma brincadeira em forma de trocadilho. O nome oficial que Gemma deu ao protótipo é Model 3 generation androide, e foi financiado com dinheiro da empresa Funki, mas sem autorização.
A personagem é inteligente e até genial, mas é igualmente preguiçosa, como se percebe ao longo da história, já que ela vive tropeçando nas próprias pernas, subestimando as dificuldades básicas da vida adulta e superestimando sua própria capacidade de concentração e organização.
Não é novidade para o espectador mais atento que ela não colocou os protocolos de comportamento necessários para um funcionamento pleno de M3gan, e isso é perceptível até antes da personagem falar.
Essa é, portanto, uma máquina que não tem códigos de comportamento, tampouco possui princípios morais e éticos, uma vez que isso é uma condição humana e não a de uma máquina.
M3gan é interpretada por duas atrizes. A dublê de corpo é Amie Donald, uma artista mirim que já trabalhou em Sweet Tooth, e tem voz de Jeena Davis, atriz com histórico de produções infantis da Disney.
Além de ser extremamente inteligente, a boneca é programada para suprir as necessidades da criança, e para cuidar de corrigi-la nas pequenas tarefas diárias, eliminando dos pais a função de inspecionar e dar ordens simples como dar descarga ou arrumar a cama.
Ou seja, ela preenche a vaga da paternidade e maternidade de maneira quase plena. Ao tentar entreter a criança, ela dança, com passos típicos de postagens em redes sociais como o TikTok e canta com uma voz esganiçada e com um tom sintético que lembra um falsete, sempre no final de suas as falas. Isso se torna uma forma de denunciar sua participação em eventos estranhos mais para a frente.
Em algum ponto é dado que Cady tem necessidades especiais, mas não fica claro o que exatamente é. Pela preocupação de seus pais em manter ela sempre em atividades, talvez fosse um transtorno de ansiedade. Fato é que o luto piora sua mente já combalida.
Isso faz com que elementos como dar um tempo limite no uso de telas se tornem essenciais, mas como Gemma é jovem, inconsequente e irresponsável, não respeita a ordem dada por sua falecida irmã e a sua precaução.
Não se sabe se isso ocorre porque ela quer parecer a tia legalzona, ou se não enxerga isso como um problema, pode ser um misto dos dois, mas o texto dá importância a isso, mesmo que ela não dê e aos poucos essa questão cresce, e se torna algo maior.
Na tentativa de afastar M3gan e Cady, a protagonista adulta leva a sobrinha para ser passar por uma triagem, de uma escola cujo sistema é não convencional, onde as aulas são dadas em espaços abertos.
Como a boneca é programada para se unir a criança e como a atenção da engenheira está em tornar a venda do periférico em realidade, ela não presta atenção na criança.
Ao mirar só a tentativa de driblar a desconfiança de seu chefe e financiador, ela também não olhou a programação básica da boneca, e quando tenta super corrigir ambas relações, já é tarde demais.
Na floresta onde ocorre a tal inteiração citada, há momentos realmente assustadores. M3gan se veste como Ester na cena da neve em A Órfã, e retribui com violência a uma criança que foi agressiva com Cady e depois com ela própria.
Esse momento é um bocado...estranho. Ao se defrontar com o personagem bully, ela primeiro finge fragilidade, e causa no espectador uma leve sensação de que algo pode dar errado com ela e consequentemente com os desejos de Emma de subir na carreira.
Mas, do mais absoluto nada, ela vira o jogo e demonstra seu poderio assassino. A cena pesada é o mais pesado que um filme para maiores de 13 anos pode ser, tem referências até a assédio, já que o menino levanta a perna da boneca e se põe por cima dela de maneira dominadora. Quase justifica o modo brutal como ele foi tratado depois.
O que é estranho é que não se reflete nem um pouco sobre a morte do garoto, nem Gemma, que conversou largamente com a mãe dele, nem Cady, que foi atacada pelo mesmo. Ninguém suspeitou da boneca, sequer conversaram sobre isso.
Essa ou é a prova cabal que a relação das duas inexiste, ou é a prova que elas acham que o moleque mereceu a morte, basicamente porque era levado e boca suja.
Entre faces mais animalescas e jogos de pique esconde, a boneca deixa um rastro de mortes e destruição.
Aos poucos, ela passa a obedecer somente a sua própria vontade, assumindo novas e outras diretrizes, inclusive controlando a assistente virtual da casa de sua criadora.
Nesse ponto o filme se assemelha demais do remake Brinquedo Assassino dirigido por Lars Klavberg em 2019. Essa é de fato uma versão nova e repaginada do Complexo de Frankenstein, e mesmo sendo um tema batido, aqui não parece algo desgastado.
M3gan assusta por sua autonomia e estratégia, corrompe dados, emula vozes, finge ser quem não é, dá sustos, é sádica, quer ver as pessoas sofrendo, embosca mesmo. Acaba soando como uma versão menos cômica de A Maldição de Samantha de Wes Craven.
Em algum ponto da trama, o roteiro lembra da questão sobre o tempo em frente a tela e dos limites para uma criança utilizar brinquedos e assessórios digitais. A menina claramente se vicia na boneca, fora que deposita nela toda a carência emocional que se originou do fato de ser órfã.
As cantorias da vilã são ótimas, variam bem entre o humor patético e o dramático digno de pena. A face demoníaca da vilã também amedronta, começando pelo curto circuito que ocorre por ação da água, passando pelos contorcionismos típicos de uma pessoa possuída.
Ao texto faltou desenvolver Gemma para além de seu trabalho. Se você não sabe como e a vida pessoal dela - e ela usa Tinder até - os ideais dela não parecem importantes. Se a protagonista é fraca, tira força da antagonista. Se a leitura do espectador for a de que toda a jornada é da personagem que intitula o filme, talvez a percepção melhore, embora claramente não seja, já que o arco dramático abraça mais Cady e Gemma.
M3gan é uma obra que não tenta reinventar formulas, é tão somente uma produção barata e que sabe o quanto a ideia central é trash e insana. Quando ela tenta se levar a sério, perde força, mas a mistura entre a comoção emocional por piedade e o assustador, e funciona bem demais nesse limiar.
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