Corre Homem, Corre é um filme que faz parte do movimento Western Spaghetti e é dirigido pelo lendário realizador Sergio Sollima. Coprodução entre Itália e França, é uma obra lançada em 1968 que carrega um discurso revolucionário e é protagonizada pelo cubano Tomas Milian.
A trama conta a história de Manuel Sanchez, apelidado de Cuchillo, em atenção a sua especialidade de manejar facas - cuchillo é um termo equivalente a faca em espanhol - em determinado ponto, o personagem é preso, encontra um revolucionário, descobre sobre a localização de um velho tesouro e vai rumo a essa quantia, enquanto tenta lidar com sua conturbada vida pessoal e com as muitas perseguições que ocorrem próximo da fronteira entre Estados Unidos e México.
O roteiro ficou a cargo de Sollima e e Pompeo De Angelis, com argumento e ideia original do diretor. Produzido por Anna Maria Chretien e Alvaro Mancori, teve Aldo Pomilia como produtor executivo.
O filme é lembrado também por sua música, assinada por Bruno Nicolai e pelo maestro Ennio Morricone, que não é creditado como compositor. Nos extras do DVD do filme, Sollima afirmou que a trilha original era na verdade de Morricone, não explicando qual foi a participação de Nicolai aqui.
O que se cogita é que o compositor de Django assinou a autoria porque Morricone estava ocupado em outro estúdio na época, mas é dado que Nicolai foi o condutor da orquestra.
Esse é o terceiro faroeste consecutivo de Sollima, tendo em si ligações claras com O Dia da Desforra, lançado um ano antes, especialmente graças ao personagem de Milian, que também era Cuchillo Sanchez.
No entanto, as duas versões do personagem têm diferenças. Em algum ponto, se pensou em tornar Sanchez o protagonista do filme anterior, mas a opção por Lee Van Cleef ocorreu por receio de ter uma rejeição do público a uma figura mexicana como centro das atenções.
Sollima deu entrevistas e verbalizou isso. No seu entendimento, mostrar um personagem não caucasiano e ladrão como um homem sonhador e simpático poderia ser encarado como algo rejeitável, como a humanização do excluído e do maltrapilho.
Há de se pensar também na polêmica do cinema validar o discurso de pessoas excluídas ou a glamourização da vida bandida.
É curioso como mostrar um homem comum, sem muitas opções de sustento, que vive os seus dias de maneira livre poderia ser encarado como um louvor ou uma ode a vadiagem ou vagabundagem.
Isso ocorreria curiosamente com uma exploração do arquétipo do italo-americano estereotipado, especialmente nos filmes de máfia da década seguinte a essa obra analisada. Tanto no drama O Poderoso Chefão como na comédia Quase, Quase Uma Máfia isso ocorre, embora o espírito e caráter de ambos os filmes citados sejam o exato oposto do que é visto nessa exploração do velho oeste mexicano.
O conservadorismo obviamente pesa contra as chances de dar holofotes aos excluídos, sejam eles como Cuchillo, um homem pobre que vive pelo acaso, ou os mafiosos endinheirados, que um dia também tiveram dificuldades de gerar o próprio sustento de maneira honesta, como houve com Don Vito em O Poderoso Chefão Parte II.
O título original do longa é Corri Uomo, Corri e deriva do tema de abertura do filme anterior do diretor. É possível encontrar ele como Em Busca do Ouro Perdido, já em países de língua inglesa, é conhecido como Big Gundown 2: Run, Man, Run, ou apenas Run, Man, Run. Se chama Saludos, hombre na França, ¡Corre, Cuchillo... corre! na Espanha. Já em Portugal chama como no Brasil.
O longa-metragem foi filmado na Espanha, em Almería, no Desierto de Tabernas e em outras localidades na Andalucía.
Sollima vinha do já citado O Dia da Desforra, também fez Quando os Brutos se Defrontam, ambas obras feitas em 1967. Antes, fazia filmes "quentes", como Amores Eróticos, e obras de eurospy, como Alta Espionagem e Agente Especial 3S3. Com o tempo passaria a conduzir filmes de suspense, como O Cérebro do Mal, Os Sequestradores em Ação com Oliver Reed e a minissérie Sandokan.
Depois de fazer a história original, Sollima entregou a incumbência de escrever o roteiro a De Angelis, no entanto, ele retomou o texto, para tratá-lo a fim de reforçar a posição de Cuchillo como o sujeito que viveria o papel central.
Os produtores haviam trabalhado em obras diversificadas e diferentes. Chretien fez 5 Pistolas com Sede de Sangue e Ostia, já Mancori é mais conhecido por ser cinematógrafo. Ele dirigiu a fotografia e produziu 5 Pistolas de Sangue, Totó e Cleópatra, produziu também Os Amantes de Carolina. Já Pomilia produziu Assassinato em Roma e foi gerente de produção em Três Homens em Conflito.
Nicolai trabalhou em Os Quatro de Ave Maria, Dias de Violência e Das Ardenas ao Inferno, ainda fez Conde Drácula de Jesus Franco nessa época, além de ter sido diretor musical de O Vingador Silencioso.
Já Morricone havia trabalhado com o diretor em O Dia da Desforra e Quando os Brutos se Defrontam, vinha também de A Morte Anda a Cavalo e Perigo: Diabolik.
Os créditos iniciais se dão com um monólogo emocionado, acompanhando gravuras, quadros em preto e branco, que parecem estar em papel velho. Também aparecem recortes de jornal, que demonstram que os personagens que habitam esse universo, são pessoas condenadas.
Essa não é uma história de heróis e mocinhos, o escopo não mira a elite e sim um povo acostumado a apanhar e a ser explorado. Sollima não nega isso, ao contrário reforça as ideias de libertação dos latinos americanos, que não enxergam o imperialismo somente nos europeus, mas também em seus vizinhos expansionistas, dos Estados Unidos.
Não demora a aparecer um homem maltrapilho, que anda a cavalo, a caminho de uma pequena cidade no México. Ele é Cuchillo, sujeito esse com um dom, já que é absolutamente mortal com lâminas, de uma forma que seus lançamentos de facas parecem até tiros de revólveres.
Milian se dedicou ao papel, era um grande parceiro do diretor, tanto que nas versões em inglês do filme, ele fez questão de dublar a si mesmo. Ele parece à vontade, é o condutor do espectador, o elo com o público, a pessoa a quem deve se torcer, mesmo que ele invariavelmente seja condenado, sendo várias vezes posto como um homem a ser enforcado.
Logo encontra sua amada Dolores, personagem da atriz cubana Chelo Alonso. Ela o cobra por sua ausência - pudera, devia estar muito tempo longe. Chuchillo até tenta presentear ela com algo de valor, com um relógio roubado, mas o legítimo dono o pede de volta.
Ele é Nathaniel Cassidy, personagem do veterano Donald O'Brien, ator francês, acostumado a filmes de gênero, oriundos da Europa. Ele é mais lembrado pelo drama de guerra O Trem, pelo suspense Mannaja: Um Homem Chamado Blade, pelo horror Zumbi Holocausto e pelo clássico oitentista O Nome da Rosa.
Milian vinha de Mar Louco e Os Indiferentes, também fez o western Django Vem Para Matar e seguiria no filão em Rebelião dos Brutos e Companheiros.
Também participou de filmes com grandes diretores anos depois, esteve em JFK: A Pergunta Que Não Quer Calar de Oliver Stone, Amistad de Steven Spielberg e Traffic: Ninguém Sai Limpo de Steven Soderbergh.
Quando Cuchillo é preso, arrancam várias lâminas escondidas pelo seu corpo. Ele tinha várias escondidas, até em sua vasta cabeleira. Enquanto preso, ele divide cela com um poeta, o sr. Ramirez (José Torres), homem que está temporariamente preso, mas que será libertado graças ao perdão do presidente Diaz.
Ramírez convence Cuchillo a lhe ajudar a fugir, afinal, ele sempre foi um homem de luta, mas não de confronto físico. Ele diz que precisa ser libertado e ir para a fronteira do Texas, aparentemente para não ser executado pelas autoridades, mas ele esconde um segredo. Oferece 100 dólares para o protagonista e foge com ele, justamente quando Dolores tenta arrumar uma fuga para o jovem bandido.
Ramírez é uma liderança política, claramente, um idealista que mira a ascensão do povo do México e a demarcação do território de sua nação. Ele é um alvo para vários inimigos e uma inspiração para os revoltosos, mas em essência, é ingênuo e romântico, um sujeito tão virtuoso que está mais preparado para morrer por um ideal e menos para cumprir esse anseio.
A obra não é um road movie, até pelo fato de não haver rodas no velho oeste (exceção as carroças e diligências, claro), mas o longa se aproxima dos clichês do gênero, já que se passa quase sempre em trânsito, a caminho de algum lugar.
Em suas andanças, Cuchillo encontram Riza (Nello Pazzafini), uma imitação de Pancho Villa. É nesse trecho que Ramírez perece, justamente se colocando a frente das balas que atingiriam uma mulher indefesa, que seria morta pelo líder mexicano.
Sua morte foi uma tolice, provocada por um antigo aliado que o enxergava como um homem justo. Riza inclusive lamenta Ramírez ter se colocado na frente da bala, no entanto, o sacrifício não foi em vão, já que ele demonstrou que a máxima de que ideias não morrem, ganhou forma aqui.
O poeta motiva Cuchillo a ir até Burton City para pegar ouro que ele escondeu, além de uma mensagem, de que aquela quantia era para financiar o movimento revolucionário.
Nathaniel o observa de longe. Suspeita que o anti-herói tem um bom motivo para fugir, tenta encontrar ele, mas só encontra José (Umberto Di Grazia), um antigo companheiro de atos de revolução, que entende errado a filiação do pistoleiro.
O embate de Cassidy com esse personagem é dos momentos mais tristes de todo o filme, já que deixa claro que esse não é um mundo onde o preto e o branco predominam necessariamente. O mercenário não é alguém necessariamente malvado, mas é cheio de tons de cinza, sendo fiel ao dinheiro, não a ideias.
No caminho do protagonista, aparece também uma bela mulher, chamada Penny Bannington, personagem interpretada pela italiana Linda Veras. Ela é sargento do Exército da Salvação e é apresentada em um momento solene, enterrando o cadáver, de Neil McDuff.
Os dois andam juntos, a partir dali, tanto que fazem ciúmes a Dolores, que eventualmente, encontra o seu amado de novo.
Cuchillo é um personagem trágico, que é capturado muitas vezes, quase sempre cai nas mãos de vilões armados, acaba passando por vários percalços ao longo dessa jornada.
Ele é interrompido até nos momentos de tranquilidade, como quando acorda no deserto, achando que estava deitado com sua amada, mas na verdade estava sozinho. Por um momento, pareceu que a presença de Dolores foi apenas uma miragem sua, mas não, ela realmente esteve ali com ele, mas saiu antes que ele pudesse acordar, deixando ele dormir por conta de certamente estar muito cansado, com sono atrasado.
Cuchillo é amarrado em uma espécie de enforcador, com os braços esticados, tal qual aparece nos pôsteres e materiais de divulgação. Sua imagem se assemelha a de um amaldiçoado, de um homem crucificado.
Sua odisseia se assemelha um bocado a uma versão do sacrifício messiânico de Jesus de Nazaré, ainda que seja claramente uma versão menor e falida do Cristo, que é posto assim mais de uma vez ao longo do filme, sendo salvo sempre no último momento possível.
Em uma delas, ainda tem o requinte de crueldade de ter uma banana de dinamite enfiada na boca, tendo seu fim interrompido por um grupo de latinos, uma milícia mexicana, armada e revolucionária, liderada pelo general Santillana, de John Ireland, que o ajuda a ter condições de chegar a cidade que ele tentava ir.
Santillana precisa do ouro para fazer a sua luta de emancipação, para permitir que as fronteiras do México sejam respeitadas e que essa seja uma nação livre. O ouro escondido era de Juarez, que deixou com Ramírez, para que esse cuidasse da fortuna.
O poeta foi esperto e estratégico, escondeu o dinheiro, fora do país, para não ser pego. Cuchillo enfim entende melhor sua missão, que é pegar o tesouro, para financiar a luta contra o avanço dos estadunidenses sobre as fronteiras.
Em essência esse é um Zapata Western, ou seja, é parte do movimento cinematográfico que mostrava os defensores do México como heróis e não bandidos.
Cuchillo segue passando por muitos infortúnios, perde companheiros de jornada, reencontra outros, é cercado por exércitos inimigos, tem de novo o auxílio de Cassidy e até presta serviços ao prefeito Christopher, de Gianni Rizzo. Ele vive bastante e intensamente, sua trajetória pode ser resumida a muitos baixos, com traições, humilhações e insalubridades, eventualmente cortadas por momentos de euforia.
Ele sempre é salvo por algo ou alguém, pouco antes de quase morrer, até o seu romance é cheio de altos e baixos, um enlace emotivo, insano e com muitas viradas, mas parece ser regado a amor.
Sollima faz um filme tragicômico, apresenta um personagem central complexo e sortudo, que conta com um anti-herói traiçoeiro como Cassidy como companheiro e traz um cenário bonito, árido mas ainda esperançoso como palco dessa caminhada cheia de percalços.
Corre Homem Corre honra seu nome, pois é uma eterna fuga, um caminhar que é tão longo que sequer cabe até o fim dentro de sua duração de quase duas horas, tanto que termina seu drama em outra corrida de cavalo. Ele possui uma entrega sensacional do elenco, uma trama envolvente, com muitas cenas de ação e uma boa exploração de emoções.
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