Olhos Diabólicos : O clássico de Mario Bava e os primórdios do cinema Giallo

Olhos Diabólicos : O clássico de Mario Bava e os primórdios do cinema GialloOlhos Diabólicos é um filme de horror histórico e clássico. Conduzido pelo mestre do horror Mario Bava, foi lançado 60 anos atrás e se tornou uma cultuada, especialmente por prever os chavões dos filmes Giallo e os Slasher Movies.

Idealizado como uma homenagem as obras de suspense e noir, é comumente chamado de o filme inicial entre os Gialli, embora essa questão não seja uma unanimidade. Sendo ou não o primeiro, é fato que ele possui boa parte dos elementos do estilo, com um assassino misterioso e matador de mulheres, que esconde sua real identidade, além de que possui um passado violento e agressivo.

Um dos fatores que ajudam a diferenciar a obra de seus primos temáticos é que ele não possui cores enquanto a maioria das produções do gênero são bastante coloridas, em especial Seis Mulheres Para o Assassino, do próprio Bava lançado em 1964 e Prelúdio Para Matar, que Dario Argento fez em 1976.

De qualquer forma, ela é tratada como uma obra seminal, já que estimulou novas criações, trouxe novas ideias e influenciou e inspirou novas obras. Essa foi a última produção em preto e branco de Mario Bava.

A própria palavra giallo remete a cor, já que significa amarelo em italiano. Os filmes eram chamados assim graças a uma origem literária, em atenção aos livretos de textos misteriosos, com romances de Agatha Christie, contos de Edgar Allan Poe e diversas outras histórias originais da Itália, com capas cujas imagens remetiam ao medo e mistério, com bordas amarelas.

A história narrada acompanha Nora Davis, uma jovem dos Estados Unidos que viaja para Roma e testemunha algumas mortes, sendo duas no primeiro dia pós chegada da persoangem de Letícia Román.

A trama segue com duas narrativas diferentes, sendo a primeira uma investigação policial em torno da mulher que morreu e sumiu sem deixar vestígios - já que somente Nora a viu, além de um homem que pegou o corpo esfaqueada da vítima, além dos atos homicidas do misterioso serial killer, que segue matando as pessoas, sobretudo mulheres, deixando claro que Nora, pode ser um novo alvo.

Durante a época de pré-produção, foi chamado de Incubus, mas acabou recebendo o nome de La Ragazza che Sapeva Troppo. É possível encontrar ele por várias outras alcunhas, como Noche Del Demonio, A Rapariga que Sabia Demais em Espanha e Portugal respectivamente, assim como no Brasil, que em no lançamento em DVD, teve a obra chamda de A Garota que sabia demais.

Na América o filme foi lançado com o título Evil Eye, sendo exibido junto ao longa As Três Máscaras do Terror, enquanto na Grã-Bretanha foi veiculado com Farsa Trágica, de Jacques Tourneur, também lançado em 1963. Também poderia ser encontrado como The Girl Who Knew Too Much, The Evil Eye e Obsession Diabolique.

A música original de Roberto Nicolosi, de Roma Contra Roma, é bem estridente, ajudando a aumentar o fato de medo e tensão da obra. Curiosamente, na versão dos Estados Unidos a trilha teve outro compositor, Les Baxter, de O Solar Maldito e Obsessão Macabra.

Bava fez o filme com os estúdios Galatea Film e Coronet s.r.l., foi distribuído pela Warner Bros. na Itália, pela Les Films Marbeuf na França. Já nos Estados Unidos foi distribuído pela AIP: American International Pictures, enquanto no Reino-Unido foi a Anglo-Amalgamated Film Distributors.

Como o turismo é algo importante na história é natural que grande parte dos cenários sejam em locações. Há cenas no Forum de Roma, Itália, na Via Appia na Campania, no aeroporto Fiumicino Airport em Fiumicino-Lazio, no Foro Italico Stadium em Monte Mario, no Mincio Square de Roma, na Piazza Navona e em Piazza del Popolo, Piazza di Spagna todas em Roma, também filmaram cenas no Coliseu. As cenas em estúdios foram feitas em Roma, Lazio, no Titanus Farnesina Studios.

Mario Bava era um fã assumido de Alfred Hitchcock e colocava algumas das marcas do cineasta em suas obras. Isso se percebe na temática, que toma emprestado tropos de Psicose, também há aparições do diretor, como na cena em que os olhos de alguém ("interpretados" pelo próprio diretor) seguem Letícia Román, em um quarto.

Como o filme necessita do mistério para se sustentar, escolhemos avisar que o texto terá spoilers, abaixo dessa imagem.

Olhos Diabólicos : O clássico de Mario Bava e os primórdios do cinema Giallo

Nora é uma garota esperta, que tem hobbys que favorecem a trama de mistérios. No avião em que viaja ela gasta seu tempo lendo um livro de mistério.

Para introduzir essa viagem, Bava faz uma tomada aérea, que é acompanhada da música Furore, cantada por Adriano Celentano. O casamento da imagem com a canção é pitoresca, carrega uma narração introdutória sobre o drama da protagonista. Claramente o filme busca uma identidade, fazendo referência ao estilo de obra policial mais famosa da época, que era o cinema noir.

A rotina da jovem é de férias, ou deveria ser, mas tudo muda depois do primeiro dia, já que ela é desacreditada por todos, entre outros fatos, por ser mulher e por ninguém conhecer ela. As autoridades a tratam como louca a alcoólatra, como drogada.

Assistir a produção é um convite a enumeração de red flags, de clichês contra as mulheres. 1963, era um tempo mais conservador.

Enquanto viaja ela busca alívio em um romance livro, onde se percebe na capa frases de efeito como After he got THE KNIFE. Nesse trecho se faz referência tanto a literatura, que é a base do estilo e cinema giallo, como também mostra ela não querendo interação com um homem que lhe oferece cigarros, interpretado por Milo Quesada.

Curiosamente, esse passageiro é mostrado como alguém diferenciado, já é educado e muito fino, mas é impertinente, já que insiste tanto com a menina que ela aceita fumar com ele, em pleno voô. Além disso, ele se sente na liberdade de aconselhar a menina sobre sua estadia no Velho Continente, afirmando que andar sozinha nas ruas de Roma seria perigoso.

Ele aparentemente era um profeta, não só por conta dos fatos futuros, que Nora testemunharia, mas também por seu destino. Assim que pousa, ele é interpelado pela polícia e é preso.

Nesse ponto não fica claro qual é o seu nome, se é Pacini ou De Vico. Certo é que é um homem procurado pela lei, por negociar maconha em maços de cigarro comum, como o que ele serviu Nora. A moça ainda tentou se livrar do maço que guardava em um bolso, mas teve a embalagem devolvida por um guarda atencioso, ainda dentro do aeroporto.

Na cidade, ela se dirige a casa de uma conhecida, a Sra. Ethel Widnall Bartocci, interpretada por Peggy Nathan (mas dublada por Tina Lattanzi), a moça é atendida na porta por um estranho, o doutor local Marcello Bacci, feito por sua vez por John Saxon, de A Hora do Pesadelo e Operação Dragão.

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Depois de conversar um pouco com a moça que chegou e com a anfitriã, o doutor se despede, avisa que Ethel está doente, mas afirma que não é algo grave. Ainda assim, passa o telefone para a moça, para ligar para ele em qualquer eventualidade.

É dado também que o sujeito sabia da chegada da americana antes mesmo dela desembarcar na Itália, fato que deixa público de sobreaviso, olhando para ele como um sujeito suspeito.

Na mesma noite da chegada a senhora idosa passa mal e falece, para desespero da sua hóspede. Nesse trecho tenso se nota o quanto a música original de Nicolosi é um baita aspecto no acréscimo do terror. Ela pontua bem os sentimentos conflitantes da moça, que foi da euforia para o desespero rapidamente.

A cena em que Nora encontra Ethel morta é ótima, encontra ecos com o cinema mudo, não tem qualquer som, fato que fortalece alguns elementos visuais. O copo de água cai da mão da moça sem quebrar, até o gato de estimação da idosa se assusta, arrepia todo, ouriçando pelos e coluna.

Nora parece um imã de problemas. No avião foi acompanhada de um traficante, a moça que lhe recebe morre, na rua, ao procurar ajuda ela é assaltada e ainda acaba acidentalmente vendo alguém cair.

Quando achou que ficaria tranquila ela presencia uma morte, de uma moça interpretada por Marta Melocco, saindo de uma casa com uma faca cravada nas costas. Vê também um homem velho, interpretado por Giovanni Di Benedetto. Durante o filme, a identidade do sujeito seria revelada.

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O homem arranca a faca das costas da vítima e leva o corpo para fora da visão da câmera, dando a entender que recolheu a moça para um lugar coberto.

O destino poderia ser ainda mais cruel para Nora, já que ela desfaleceu na rua, sendo então alvo fácil de um assassinato feminicida. Ela poderia facilmente ter sofrido um abuso mais colérico, no entanto ela testemunha uma trama macabra, se envolve nela, mas sem um envolvimento direto e mais agressivo.

Ela acorda na rua, em uma situação pitoresca, já que segundo o policial que a encontra, ela usava apenas uma capa de chuva, estava nua debaixo do traje e ainda tem cheiro de bebida, que segundo a própria, foi plantada, já que ela  ão bebia. Uma pessoa afirmar que jogaram álcool nela, para culpá-la é de fato algo praticamente inédito.

No hospital ela é tratada como uma pessoa insana, basicamente por que fez uso de álcool. Não fosse pela coincidência de Bacci estar de plantão naquele momento e naquele lugar, certamente ela sofreria. Caso fosse qualquer conhecido que a visse, sem interesse romântico por ela, certamente ela iria para uma unidade de tratamento para bêbados, mesmo que ela não tenha bebido.

Fica a dúvida se Bava denuncia os malefícios do álcool e das drogas, tratando os efeitos desse de forma irônica, ou se simplesmente está abraçando um discurso conservador, anti-drogas.

Nora fica bem afetada depois dessa sequência, fato que denuncia a nacionalidade europeia de sua interprete. Seu gestual é expansivo,  gesticula bastante, parecido com o que normalmente se associa ao povo italiano.

Durante o enterro de Ethel, uma nova personagem é apresentada. Laura Craven Torrani, interpretada por Valentina Cortese - que fez As Amigas de Michelangelo Antonioni e anos mais tarde, A Noite Americana de François Truffaut - se apresenta como uma pessoa próxima de Ethel, tão intíma que assume Nora como sua hóspede, oferecendo gentilmente estadia para a menina estrangeira, mesmo conhecendo ela nesse momento.

O convite ocorre graças ao fato da senhora estar sempre sozinha, já que seu marido viaja muito a trabalho, passando mais tempo em Berna na Suíça do que em casa. Dessa forma ela fica normalmente sozinha. Obviamente isso a torna uma alguém suspeita, além de tornar esse esposo ausente um bom candidato ao matador, claro, levando em consideração que ele realmente existe.

Na "nova" casa Nora encontra uma caixa cheia de recortes de jornal, com notas sobre assassinatos e ao invés disso gerar nela uma suspeita sobre sua nova anfitriã, faz ela suspeitar de outras pessoas.

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Ela passa a tentar arrumar pistas sobre os homens da cidade, sobre as pessoas que poderiam ter matado a moça do início do filme, tentando chegar até o senhor que ela mesma viu.

No entanto ela é traída pela memória, sempre que se esforça para recordar as imagens ficam turvas. Esse aliás é outro elemento dos Giallo, quase sempre há nesses filme um fato ou acontecimento do passado que o protagonista não consegue lembrar em riqueza de detalhes.

Aqui ainda se atribui a possibilidade dela ter habilidades mediúnicas, tanto que Marcello e ela conversam com especialistas do metafísico, sobre a possibilidade de resgatar a memória dentro do inconsciente dela.

A dupla chega a conclusão de que Nora pode ter assistido a morte de Emily Craven, uma mulher assassinada dez anos antes. Isso contradiz o argumento e a lembrança de Davis, que segue dizendo que ela era alguém viva, não uma ilusão de ótica ou um espírito fantasmagórico, mesmo que a descrição da vítima bata com a aparência de Craven.

A narração em off normalmente é utilizada como um aspecto expositivo em tramas de cinema, mas aqui é diferente, já que ela acrescenta bastante, interferindo na história. Se parece levemente com um argumento de metalinguagem, no entanto parece que a intenção do diretor era representar através da voz o subconsciente de Nora.

A estrutura do roteiro de Ennio De Concini, Sergio Corbucci (que assinava Enzo Corbucci) e Eliana De Sabata é única, sofisticada e surpreendente.

As investigações desencadeiam de maneira fluída, as pistas são dadas gradativamente e a violência é considerável, não tão chocante quanto em Seis Mulheres Para o Assassino, mas ainda bastante agressivo, ainda mais se comparar com outras obras da época.

Outro aspecto estranho é que Bava utiliza uma atriz italiana para interpretar uma americana turista, enquanto coloca um ator dos Estados Unidos para fazer o anfitrião italiano que apresenta a moça todo o cenário de uma Itália turística.

De qualquer forma, Saxon e Román funcionam bem em tela, combinam bem, não só como um casal que está destinado a ficar juntos, mas também como alvo de suspeita, com ele sendo um bom candidato do provável assassino que acumula a função de interesse amoroso, enquanto a moça reúne o aspecto de garota final e de mulher possivelmente insana, em dois clichês anacrônicos do terror do século XX.

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Mesmo com o esforço de Bacci em tentar ocupar o tempo da mocinha com trivialidade, ela não consegue tirar a ideia fixa de desvendar o mistério. Bava ainda tentava atingir toda sorte de público, tentando se equilibrar entre momentos de drama e humor, para aplacar a sensação de desolação dramática.

Esses eram os primórdios da exploração de Filmes de Matança, não havia ainda um público de nicho cativo ao tipo de trama que envolvesse assassinos seriais.

Quem defende que Olhos Diabólicos não é o primeiro Giallo normalmente o faz por conta dos elementos sobrenaturais presentes, como a afeição ao paranormal que a protagonista carrega. No entanto esse aspecto é dúbio, tanto quanto o aspecto do devaneio via entorpecente, já que Nora usou droga no início.

Também pesa contra o fato de quase não ter tantas mortes, nesmo que a obra seja aberta com dois óbitos. Como um deles foi em Ethel, que supostamente morreu de causas naturais, há até quem não considere ela na contagem de corpos.

O primeiro assassinato ainda ocorre no off-camera, aspecto recorrente no filme aliás, já que a maioria esmagadora das mortes, ocorre escondido dos olhos do público. É fato que até os filmes de Michael Myers e Jason possuíam mortes escondidas do público, embora a maioria fosse exposta, claro.

O assassino é tão discreto que mal aparece matando, esse é possivelmente o argumento mais forte contra a possibilidade desse não ser parte do movimento, embora possa-se encarar isso como as regras sendo estabelecidas ainda, em estado embrionário.

Entre sonhos irreais e momentos de tensão, Bacci e Nora encontram Andrea Landini, de Dante DiPaolo. Ele é introduzido usando sobretudo e chapéu fedora, tal qual personagens de filmes noir, fato que já o faz ser visualmente suspeito.

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Ele é na verdade um jornalista que cobriu uma série de assassinatos. Landini ajudou as investigações de um caso de mortes no passado, que acabaram sentenciando como culpado um homem inocente, sob a acusação de ser um pervertido sexual e vagabundo.

Landini era próximo do doutor Torrani, o marido de Laura e só conseguiu ter penetração nos círculos sociais altos graças ao médico. Até então suas matérias como repórter eram ignoradas, sendo lidas e propagadas graças a publicidade que o homem respeitado deu a elas.

Um tempo depois o jornalista se arrependeu das matérias acusatórias que fez, começando então a acreditar que o acusado não era o culpado. Quando passou a escrever sobre esse equívoco voltou a ser irrelevante, não só por conta do interesse geral na história ter passado, mas também por ter perdido o apoio do doutor, que era interessado que tudo seguisse como estava.

Após suspeitas de Cello, Landini é encontrado em um quarto de hotel, com uma bala na cabeça e muitas provas contra si. A cena foi toda preparada para parecer suicídio, conveniente e bom demais para ser verdadeiro.

O quadro só se torna de fato tão interessante quanto é graças as atuações caricatas e exageradas, especialmente a de Leticia Román. Seu tom é muito acima dos demais, faz ela parecer paranoica, claro, mas é tão sincera e verdadeira que se torna impossível não simpatizar com ela. É fácil gostar de Nora, é fácil concordar com ela, é fácil se unir a ela.

Nos momentos finais ocorre uma cena de descoberta, com a mocinha entrando em um ambiente escuro com uma passagem secreta. É tudo bem orquestrado, iniciando de forma silenciosa, com um abrir de porta repentino e um suspeito aparecendo.

A solução final beira a covardia, ao associar a identidade do matador a alguém insano, que tem um parente respeitável sendo cúmplice. O método de escolha das vítimas também parece gratuito, até por conta desse comportamento só ser metódico quando convém, já que muitas pessoas morrem por conta das circunstâncias e por chegarem perto do real culpado.

Por mais expositivo que seja o desfecho, ele é bem justificado, já que Laura fala em tom de desabafo, em um momento extremamente tenso. Claramente está para o gênero como Psicose está para os filmes slasher movies, inclusive reúne em si diversas características dos filmes de Alfred Hitchcock, como o receio dos protagonistas, o perigo iminente, surpresas no final e despistes no início.

O que realmente incomoda é o discurso anti-drogas e a completa falta de conhecimento sobre os efeitos da cannabis, mas dado que foi feito em 1963, se compreende a estranha normalidade estabelecida aqui.

Olhos Diabólicos é tenso e pontual, um bom convite ao mistério e ao suspense. Bava acerta muito em causar espanto e receio em quem assiste, além de ter um domínio de arte e visão sui generis, compondo quadros belíssimos durante todo o desenrolar do horror, soando charmoso o tempo inteiro, apesar dos exageros dramáticos.

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