Predestinado: Arigó e o Espírito do Dr. Fritz é uma cinebiografia bastante diferente do usual, que reúne elementos inspiradores como o sentimento de abnegação e entrega, e passa por temas como espiritismo e medo do desconhecido. O longa de Gustavo Fernández possui uma atmosfera singular, que faz a obra se assemelhar a um filme de terror, com sequências que envolvem transe, possessão e escatologia.
Danton Mello interpreta José Pedro de Freitas, o “Arigó”, um fervoroso católico, funcionário público e dono de venda que tem muitos filhos. Enquanto chefe de família ele é plenamente capaz de sustentar sua prole, é prospero e se julga abençoado, sobrando verba até para ajudar a comunidade com a pequena venda do qual é dono, aceitando pagamento fiado para as famílias mais humildes. No entanto, é mal visto por algumas autoridades locais.
O roteiro de Jacqueline Vargas se baseia no livro de John G. Fuller, e o modo de contar a história flerta com os clichês do cinema de obras de assombração.
Na cena de abertura, José passa por um transe, é tomado por uma consciência misteriosa, entra em um quarto onde está uma mulher doente e arranca dela o problema de saúde que a aflige. Mesmo que nesse prédio haja dezenas de religiosos mais gabaritados que ele, é esse sujeito simples e ingênuo o instrumento do Divino para fazer a intervenção, a boa sucessão dela claramente está além da compreensão humana comum.
Entre acusações de que ele matou a senhora e gritos de que um milagre ocorreu começa a controvérsia em torno da figura de Arigó. Fica patente (mais uma vez) que o protagonista é vista com maus olhos pelos figurões religiosas, especialmente pelo vigário Padre Anselmo de Marcos Caruso.
Todo o roteiro mira em repetição, em demarcar algo através de bater sempre na mesma tecla. Isso ajuda a reforçar ideias, mas também torna o apreciar da história em algo enfadonho em alguns pontos.
A história se passa no município de Congonhas, no interior das Minas Gerais, entre os anos 1960 e 70, e desde sempre é trabalhado que o protagonista tem uma percepção do mundo espiritual avançada, conversando com uma "entidade" recusando o chamado em um primeiro tomo e aceitando depois, se tornando íntimo do médico que ele carinhosamente chama de "careca".
Adolph Fritz teria sido um médico alemão morto na primeira grande guerra, mas o script não se preocupa tanto em dar a origem do personagem que é interpretado pelo norte-irlandês James Faulkner ator famoso por seu papel como Randyll Tarly em Game of Thrones. A ação importante é a cura, não o interventor.
Ainda assim o longa mostra sentimentos conflitantes e pesados em tela, com Fritz tratando José como um objeto, um mero receptáculo para suas ações. Ele é rude com o possuído, e é eficiente na mesma medida que é grosseiro retirando tumores, caroços e ferimentos quase sem sangue, embora a cura ocorra basicamente quando Jesus quer, segundo o relato do próprio personagem.
Mello atua bem, conseguindo apresentar as nuances de um sujeito de índole honesta, assim como apresenta um homem de dúvidas, que vive no fio da navalha e que não cuida da própria saúde.
Sua versão possuída pelo médico europeu é bem diferente de Arigó, saindo então o sujeito supostamente capial e ingênuo - em atenção a origem do termo arigó, que o apelida - entrando um homem genioso, interpretado de forma igualmente crível, mesmo que toda a atmosfera em volta dele pareça fantasiosa, especialmente pelas operações, filmadas de maneira agressiva e normalmente nojentas, e irreal, dado que é basicamente um milagre a cada intervenção com os bisturis pouco assépticos utilizados.
É como se no mundo espiritual, questões como higiene ou cuidados básicos fossem dispensáveis, algo bobo diante de forças inexplicáveis. As cenas em si chocam bastante, e faltam entre as imagens de divulgação cenas onde essa agressividade se faz presente, o que é bom, pois é um dos melhores aspectos da obra, e só são apreciadas por quem assistem o longa, e não por quem caça bons momentos em trailers ou em divulgação.
O filme passa rapidamente por partes da vida pessoal de José Pedro, como a participação dele em lutas sindicais. É sabido que ele trabalhou em setores de mineração e sistema de aposentadoria e pensão. Sua biografia dá conta de que ele trabalhou na função pública até o fim de sua vida, mas o filme mostra a pequena venda dele como a fonte de renda da família Freitas, mesmo na época do centro de cuidados que ele fundou, o Centro Espírita Jesus Nazareno.
Além de ser mostrado como um sujeito simples, que se aliena nas primeiras manifestações mediúnicas, Arigó consegue trafegar entre pessoas de diferentes classes sociais e poderio.
Tem contato com gente famosa, como Chico Xavier, interpretado por João Signorelli, com políticos a exemplo do deputado feito por Alexandre Borges, que simboliza figuras reais como o presidente Juscelino Kubitschek que segundo testemunhas, era grato por Fritz ter supostamente curado a filha da autoridade de leucemia.
No entanto a história é contada de maneira irregular, com uma linguagem que conversa com o que é comum em radionovelas. A maioria das interpretações é exagerada, emocional ao extremo. Apesar de isso ser comum em produções de cinema sobretudo as que envolvem os canais Globo, esse é um produto diferente inclusive no apelo visual, produzido pela Paramount.
Ainda assim é compreensível essa tônica, uma vez que por adaptar uma história popular, que já foi tema até do Linha Direta, é preciso que converse com o que é comumente consumido pelo grande público do cinema e do audiovisual brasileiro.
A direção de arte organizada por Antônio de Freitas é bem empregada, especialmente nas cenas escatológicas dos milagres. A fotografia de Uli Burtin também ajuda a estabelecer um diferencial, um aspecto de produção estrangeira de orçamento grande.
Outra questão positiva é a fidelidade visual, houve um cuidado para imitar fotos e gravações reais da época, inclusive com os créditos finais comparando as cens do filme com gravuras do acervo pessoal da família de Arigó.
Os primeiros milagres são apresentados em uma montagem rápida, e não poupam o espectador das nojeiras das operações com pus em quase todas as vezes, e sangue em outras poucas.
O desenvolvimento do drama familiar também mira um estilo folhetinesco, apelando para o uso de atores tarimbados e acostumados com esse tipo de abordagem, em especial com Juliana Paes que faz Arlete, a esposa de Arigó. Tenta-se dar uma grande importância as brigas que o personagem teve com o pai, mas nada é de fato desenvolvido, apenas é citado. Claramente houve pressa em contar todos os detalhes importantes da vida de Arigó, condensando alguns deles, misturando personagens e situações. O texto acaba sendo afoito na intenção de contar toda a história por trás do personagem mitológico. Fosse uma minissérie, esses aspectos poderiam ser melhor trabalhados.
Talvez o momento mais emocionante nesse quesito seja a cena onde José se declara triste a sua esposa, por ela ter casado com ele sem saber que mais da metade do tempo quem estava no controle era o careca. Aqui de fato as falas e atitudes tem peso e o aspecto familiar tem sua emoção valorizada.
A ideia do filme é tornar Arigó uma figura simpática e nisso, acerta demais. Durante os anos de sua curta vida - morreu com menos de cinquenta anos - ele foi bastante mal falado sobretudo pela igreja católica, da qual jamais negou a fé, inclusive foi muito criticado pelo Padre Quevedo, que é citado por Caruso no filme.
Em tempos onde se descobrem casos de assédio e estupro envolvendo médiuns como João de Deus, é bom diferenciar José Pedro. Não há acusações desse tipo a Arigó, tampouco há indícios de enriquecimento, embora seja dito que parte das receitas médicas que continham doses cavalares de remédios teriam favorecido um parente seu, que tinha uma farmácia no interior de Minas Gerais.
José morreu sem grandes posses, em uma vida sem luxo, diferente do farsante mafioso de Abadiânia que era João de Deus.
Mesmo que passe por algumas polêmicas, como um grupo de doentes leprosos que enquadram o juiz que mandou prender Arigó e outras questões como a visão dele triste assistindo sessões de tortura na cadeia, não há um grande aprofundamento de como o país era fora das ações do centro espírita. Fora obviamente a estética da pobreza do sertão, não se percebe como era a política ou a perseguição aos opositores do Regime Militar.
É como se Congonhas fosse alienada da realidade brasileira. Isso se reflete até na ideia de Arigó sobre como ser pai. Ele acaba se tornando o que temia, um sujeito preocupado com seu ministério e ausente dos afazeres de sua casa, há dezenas de cenas onde sua família é literalmente ignorada enquanto ele está curando as pessoas.
Questões pessoais são subalternas diante dos desígnios divinos, e a relação dele com seus filhos e esposa entram no escopo de sacrifício que um mártir tem que fazer. Considerando isso como uma condição lógica, José é de fato um homem digno de ser beatificado, e isso é bem enquadrado pelas imagens que Fernandez faz.
Predestinado acaba soando como uma produção que escolhe o lado do biografado, que não permite apresentar muitas nuances para além do receio de José Arigó com a morte, e que em última análise, é de lamentar mais pela quantidade de gente que poderia ser curada do que medo de falecer ou receio de não ver mais seus entes queridos. Ainda assim a produção é visualmente diferenciada, sem medo em apelar para o espiritismo e para o gore dentro das cenas de operações espirituais.
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