Uma Lâmina no Escuro : O giallo que é um episódio bastante cru na filmografia de Lamberto Bava

Uma Lâmina no Escuro : O giallo que é um episódio bastante cru na filmografia de Lamberto BavaUma Lâmina no Escuro é um filme de terror peculiar e esquisito, que foge de alguns clichês da época e se dedica a alguns antigos, visto que é parte do movimento de horror italiano giallo, mas foi lançado após a grande onda de filmes do gênero, em 1983, época em que os slasher movies já bombavam nos Estados Unidos e no resto do mundo, tanto que há quem o confunda com um slasher.

Conduzido pelo diretor Lamberto Bava, o filho do mestre do horror Mario Bava, essa é uma produção italiana, que se que se pauta pelos chavões dos filmes gialli, utilizando inclusive o clichê do artista como protagonista investigador, se assemelhando assim ao cinema de Dario Argento.

Essa é uma história sobre um pianista que está compondo músicas para um filme de terror e que em meio ao seu esforço para se inspirar, se muda para uma casa de arquitetura antiga, tão singular que parece até macabra. Ao longo da trama ele se percebe em uma situação assustadora real, que envolve um matador que usa um estilete como arma na maioria de seus crimes.

A dupla Dardano Sacchetti e Elisa Briganti assina argumento e história, segundo os créditos iniciais. O longa-metragem foi produzido por Lamberto Bava, com Mino Loy e Luciano Martino como produtores não creditados.

Originalmente filmado como uma minissérie em quatro partes, de meia hora cada episódio, que por sua vez contava com um assassinato no final de cada parte, o projeto foi reeditado e transformado em um filme para cinema quando os canais de televisão o rejeitaram, já que era violento demais para audiências populares televisivas.

Dessa forma o longa estreou na Itália em 1983 no Mystfest, em Cattolica, onde também passou Armadilha Mortal de Sidney Lumet, O Signo dos Quatro de Desmond Davis e o português Sem Sombra de Pecado de José Fonseca e Costa.

Uma Lâmina no Escuro acabou entrando em circuito tempos depois, só chegando aos Estados Unidos em 1986, em cinemas limitados no mês de março, depois em vídeo, no mês de junho.

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A produção foi rodada em Roma, no distrito de Lazio. Não construção de cenários específicos para o filme. Tudo foi filmado em uma grande villa italiana, inclusive com cenas do roteiro sendo pensadas especialmente para serem rodadas naquele local.

O nome original em italiano era La casa con la scala nel buio ou House of the Dark Stairway em inglês. O diretor disse em entrevista que gostou mais do título estadunidense do filme, A Blade in the Dark do que do título italiano. Bava sentiu que aquele título específico capturou o filme muito melhor. No Canada e França era conhecido como La Maison de la Terreur, já no México e Espanha era chamado de Cuchillos en la oscuridad.

Lamberto Bava tinha conduzido oficialmente apenas um filme para o cinema até então, que era Macabro, lançado em 1980. Ele também havia dirigido Lisa e o Diabo, assinando como Mickey Lion, pseudônimo do trio formado por ele, Mario Bava e Alfredo Leone, além de ter conduzido de maneira não creditada filmes de seu pai, como Shock. Anos depois ele faria Tubarão Vermelho, Demons: Filhos das Trevas e O Terror não tira férias.

Dardano Sacchetti era experiente já nessa época. Ele participou da escrita dos roteiros de obras como A Mansão do Inferno (sem créditos), de clássicos fulcianos como Pavor na Cidade dos Zumbis, Terror nas Trevas, O Estripador de Nova York e O Bebê de Manhattan. Escreveu Tubarão Vermelho, Demons e Demons 2: Eles Voltam, Amityville 2: A Possessão e Os Exterminador do Ano 3000.

Briganti escreveu Zumbi 2: A Volta dos Mortos, Os Guerreiros do Bronx e Keruak: O Exterminador de Aço. Já Loy fez Flashman, Obsessão Mortal, Eu Sou Sartana, Roma Armada e Canibal Ferox. Martino produziu Crocodilo: A Fera Assassina, Canibal Ferox, Django: A Volta do Vingador.

Vale lembrar que Lamberto foi assistente de Argento no filme Tenebre, dois anos antes de realizar esse. Na época do lançamento, muitos críticos observaram que a obra de Argento foi uma influência tanto em termos de enredo quanto no estilo visual.

A narrativa já inicia misteriosa, com garotinhos entrando em uma casa velha, em trio. Dois deles incentivam o terceiro - o mais bonitinho e claramente o mais novo - a descer as escadas. O menino grita, os outros fogem e entra a música característica de Guido & Maurizio De Angelis, de maneira diegética, diga-se, embora nesse momento isso não fique claro isso.

A trilha dos irmãos tem uma série de motivos recorrentes estridentes, pontuados por uma gaita que acompanha harmoniosamente o estilete que o assassino vez usa.

Logo aparece o protagonista, o jovem compositor Bruno, interpretado por Andrea Occhipinti, que anos mais tarde, ficaria famoso por A Fita Branca e O Garoto da Bicicleta. Ele conversa com Tony Rendina, personagem do assistente de direção Michele Soavi, que se tornaria um diretor de filmes de horror bastante prolífico, conduzindo obras como Pássaro Sangrento, A Catedral e Pelo Amor e Pela Morte.

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A conversa dos dois é franca, porém protocolar, eles falam sobre a casa onde o personagem central vai viver durante a pós produção do filme e eles se despedem, com Bruno prometendo que em breve entregará uma fita com seu trabalho.

O roteiro não é muito criativo. Acaba variando pouco entre situações. O próximo momento do protagonista também é conversando e também é sobre o filme que está sendo finalizado.

Entre em cena Sandra (Anny Papa), a idealizadora da obra cinematográfica de horror que todos os personagens - ao menos os mostrados até então - estão trabalhando.

Quando ela assume que a sua ideia é brincar com os medos e temores do espectador, fica claro que a cena inicial era na verdade parte da encenação do tal filme.

Sandra afirma que quer dar ao público a sensação de medo inescapável, compartilhando com a audiência a tensão e desespero típicas dos personagens. Para isso precisava que o trabalho do rapaz fosse forte e imersivo.

Curiosamente Lamberto Bava teria em Demons sua obra mais famosa, que é um filme metalinguístico, onde ocorre um ataque de monstros/zumbis no meio de uma sala de cinema. Aqui ele já dava mostras dessa ideia de brincar com a linguagem artística como parte da luta entre bem e mal, embora a submersão seja bem menor aqui em comparação com a obra futura.

De certa forma, há como encarar todo o drama violento e homicida como um devaneio ou uma variação mental, fruto da estafa de um profissional dedicado e desesperado para cumprir prazos. Ou não, pode ser apenas uma hipervalorização da resenha para com um filme que tem uma trama apenas razoável.

Foi a diretora quem escolheu a casa onde Bruno está hospedado e escolheu essa morada justamente por ser assustadora. Ela quer que ele se inspire na residência, no lugar onde vive e dorme, sem saber claro de todo o drama que irá ocorrer.

Entre tentativas de compor e saídas, Bruno conhece uma vizinha, chamada Kátia, personagem da bela italiana Valeria Cavalli, de Thunder: Um Homem Chamado Trovão e de O Passado de Asghar Farhadi. Na sequência breve em que ela aparece, Bava brinca com perspectiva, mostrando o trabalho de mixagem musical em paralelo com um ataque misógino que ela sofre.

O tal assassino tem sua identidade é escondida, nesse ponto se vê pouco, basicamente mostra a arma dele, um estilete afiado, que usa para cortar mãos, braços e rosto de sua vítima.

Kátia tenta fugir, entra em um plano sequência sensacional, termina com ela cercada, burramente posicionada em um espaço curto, com um arame que acabou servindo de prisão para ela.

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O sujeito usa o objeto cortante para serrar o alambre, tocando a pele da moça com a lâmina. A sequência é agressiva e pesada, de uma maneira quase inesperada, já que até então esse parecia ser apenas uma obra de suspense, sem gore.

Até esse ponto havia um grande potencial no filme, com poucos personagens apresentados, mesmo os que aparecem só para morrer parecem ter uma construção mínima que seja. No entanto, do meio para o final falta gás e uma exploração dramática, rasa que fosse, das novas pessoas apresentadas após esses trechos.

Todos os que aparecem aqui são suspeitos e bidimensionais, isso, quando muito.

Bruno acaba ajudando Giovanni, personagem do croata Stanko Molnar, estrelou o filme anterior de Bava, Macabro) e que estava no elenco de O Siciliano, a carregar um pesado saco de lixo.

O homem que cuida da piscina é calado, parece suspeito e a carga que ele leva parece muito mais pesado do que ele afirma ter ali, já que supostamente há apenas papéis e papelão. Ele se torna imediatamente um suspeito.

Julia - ou Giulia - Rubini é apresentada. Ela é a namorada de Bruno, é interpretada pela estreante atriz de ascendência francesa, italiana e alemã Lara Lamberti. Ela é bela, formosa, não age como uma pessoa dócil, tampouco se dobra aos desejos do protagonista.

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Assim que aparece, ela trata de acalmar Bruno, avisando que as estranhas expectativas de que algo suspeito ocorre ali são infundadas, baseadas no stress do trabalho e na natureza amedrontadora dos filmes de Sandra.

Como ela conhece o trabalho da diretora, já entende que ele mergulhou naquela atmosfera. Ao menos é isso que parece em subtexto.

O músico se permite abalar demais pelo sumiço de Katia e é curioso como sua namorada sequer sente ciúmes disso, afinal, ele acabou de conhecer a vizinha, segundo o relato do mesmo. Seria suspeito ele sentir tanta falta de uma pessoa que ele recém foi apresentado.

Giulia então se postula a suspeita número dois, basicamente por não ser a personagem feminina ciumenta típica desse tipo de filme. Se há inteligência no roteiro de Sachetti e Briganti, é essa brincadeira com expectativas.

Não ajuda o fato dela ser meio cínica também, até um pouco blasé. Mas ser mal-educada não deveria ser o suficiente para tornar alguém suspeita, muito menos a segurança e autoconfiança que ela transparece.

Em gialli é mais do que comum que os personagens tenham sentidos premonitórios. Desde o primeiro filme de Argento, em O Pássaro das Plumas de Cristal isso é uma regra. Aqui se abusa disso.

Outro fator exagerado é a tentativa de emular Psicose de Alfred Hitchcock. Diferentes obras bebem dessa condição, quase todas as primeiras obras de Argento são assim, incluindo o já citado e Gato de Nove Caudas, mas os Psicogialli também, especialmente os que Umberto Lenzi, como O Louco Desejo.

Há um excesso de personagens, muita gente entrando e saindo, basicamente se estoca muita carne para o abate. A maioria das pessoas que aparecem estão lá claramente para morrer, como é o caso de Angela, personagem de Fabiola Toledo.

Depois que ela é morta, brutalmente atacada primeiro com estilete depois com um saco plástico que a sufoca, alguém limpa o chão cheio de sangue, enquanto geme e urra.

Dessa forma, a pessoa que mata parece ser uma mulher, graças as unhas pintadas de vermelho e o som da voz mais fina, mas como essa é uma peça que imita o cinema hitchcockiano, é fácil intuir que isso pode ser um macguffin despiste.

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Giulia se torna ainda suspeita, especialmente depois que Bruno a encontra escondida, segurando uma faca. A câmera de Gianlorenzo Battaglia (diretor de fotografia) dá destaque as suas unhas cor escarlate, tornando ela tão óbvia que dificilmente seria ela, também por conta da cor do esmalte parecer ligeiramente diferente, o que pode ser evidente apenas ilusão de ótica, a fim de parecer dúbio. O filme é cheio dessas dualidades.

O casal briga, Bruno indaga até Giovanni sobre a presença dela pela casa e pela vizinhança antes do musicista ali chegar. Não fica claro se ele tem ciúmes dela ou só uma suspeita de que seja ela "o matador".

Giovanni é tratado como possível cúmplice, mas só até o momento em que é surpreendido, achando os corpos das mulheres mortas. Nesse ponto se vê bons efeitos práticos, nos cadáveres expostos, mas o golpe que o sujeito toma é tão lento que faz perguntar por que fizeram daquele jeito.

A partir daqui falaremos sobre o final da trama. Prossiga sabendo dos spoilers.

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Ao matar Sandra, a pessoa homicida ri alto, evidenciando a obviedade de que é um homem fingindo ser uma mulher.

A perseguição a Giulia deixa isso ainda mais evidente. Há uma boa sacada, de uma armadilha com bolinhas de tênis, espalhadas pelo chão para fazer a pessoa tropeçar. É uma sequência simples, mas bastante criativa e efetiva.

O serial killer larga uma faca enorme no peito da moça, abrindo mão assim do seu típico estilete.

Esse acaba sendo mais um filme que pode ser encarado até como transfóbico, embora não fique claro qual é a orientação sexual real do assassino. Não parece sequer haver uma preocupação com esse tipo de construção, inclusive no sentido de acusar uma identidade sexual como necessariamente má.

Em 1983 certamente o personagem seria tratado como "transformista", como um homem que se veste de mulher, mas não se localizando de maneira categórica nem em mulher transexual ou em crossdresser.

De qualquer forma associar a psicopatia a um comportamento sexual não heteronormativo era um clichê bem baixo do cinema norte-americano, a exemplo de Acampamento Sinistro, que é também de 1983 ou Em Pânico, de 1988. Até nisso Lamberto Bava foi pioneiro, embora claramente os três filmes estejam imitando o final de Psycho e seu livro base, Psicose de Robert Bloch.

Transformar um vilão em alguém do espectro LGBT + não é necessariamente um problema, mas a péssima compreensão da sexualidade é sim uma questão.

Bava teve dificuldade em encontrar um sujeito que convencesse sendo tanto um homem como uma mulher, quando estivesse assim vestido. Depois de muitas audições, ele recorreu a Soavi, seu assistente, que já havia feito pequenos papéis em Calígula: A História Nunca Contada e Tenebre.

Ele ainda faria participações como ator em Demons, que também era de Lamberto. Seu desempenho é ok, não compromete muito, mas também passa longe de ser memorável.

Pesa contra o longa-metragem a construção apressada da segunda metade e as atuações terríveis. Acaba sendo assim uma obra valorizada pelo grotesco, meio Kitsch e Camp, graças a sua atmosfera mambembe, especialmente nas cópias dubladas em inglês.

Bruno explica a um conhecido (que serve de orelha) que o amigo matou as garotas, por que estava com medo. Esse é o máximo de aprofundamento que se dá a essa questão, o que é uma pena, já que Uma Lâmina no Escuro tinha potencial, poderia ser bem mais que a obra irregular que é. Ainda assim vale assistir para entender o método de filmar de Lamberto, que buscava sua própria identidade independente de seus grandes mentores.

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