M3Gan : A versão sem cortes e uma outra reflexão sobre o novo clássico de boneca matadora

M3Gan : A versão sem cortes e uma outra reflexão sobre o novo clássico de boneca matadoraNós já analisamos M3gan recentemente, em sua versão para o cinema. O filme sensação de Gerard Johnstone que narra a história da boneca de inteligência artificial atacando seus tutores humanos certamente marcou presença no imaginário dos fãs de cinema B e dos aficionados por cultura pop no geral, tanto que furou a bolha dos fãs de filmes de terror.

Os motivos para essa popularidade são diversos. A ideia de inteligência artificial como alvo de receio é popular atualmente, e o tropo de autômatos atacando a humanidade é um clichê presente no imaginário há muito tempo, a exemplo de Frankenstein de Mary Shelley.

M3gan consegue repaginar o conto, acrescentando aí uma ruptura com conceitos dados quase como sagrados, como as leis da robótica de Isaac Asimov.

Poucos meses depois do lançamento nos cinemas, foi veiculado em VOD - Video on Demand - e no mercado de mídia física uma versão maior do filme, com o famoso selo unrated ou em português, sem cortes.

Nesse novo recorte algumas cenas ficaram maiores, foram estendidas, contendo em si um pouco mais de violência, especialmente nos trechos de assassinatos. Há também algumas explicações a mais, além de um maior desenrolar dramático.

Esse artigo busca se debruçar um pouco mais sobre as ideias originais do produtor e escritor James Wan, que escreveu o argumento desse junto a Akela Cooper, repetindo a dobradinha de Maligno.

O roteiro final ficou a cargo de Cooper também, mas a ideia original foi de uma autoria conjunta, já que foi discutida em um brainstorming da companhia de cinema Atomic Monster. A ideia começou apenas como um filme de boneca homicida, mas resultou em uma exploração dos clichês da ficção científica, especialmente por denunciar o quanto a sociedade (do filme e a real) é vergonhosa e decadente, refém de comodidades, pressa e da necessidade de estar sempre confortável.

Esse é um produto da Blumhouse, de Jason Blum (que produz o longa junto a Wan), além da Universal Pictures, Divide/Conquer e a já citada Atomic Monster. Foi rodado na Nova Zelândia, em localidades como Auckland, com algumas cenas externas em Nova York.

Aqui há dois cenários bem diferentes entre si. O lar de Gemma, tenta ser mais bucólico, como as áreas suburbanas de Denver, no Colorado. A paisagem de Auckland coube bem, uma vez que a vizinhança da personagem interpretada por Allison Williams parece de fato um lugar super familiar, o lar ideal para ela e para a sua sobrinha recém-chegada Cady (Violet McGraw). A ideia era emular a condição de lugar tranquilo, que seria tomado pelo mal, imitando aí produções como Terror em Amityville e Poltergeist, embora o motivo do horror tenha um avatar humanoide e robótico, e não forças espirituais.

Algo que não falamos anteriormente é que boa parte do elenco é formado por humoristas. Isso garante uma aura curiosa, já que o filme consegue passar uma fina ironia, mesmo nos trechos que tenta soar sério.

A narrativa possui semelhanças com qualquer relato de alguém que ao contar uma história hilária e ridiculamente engraçada, que tenta segurar o riso para não antecipar a reação nos ouvintes, ao menos não antes de contar o final. O tempo inteiro parece que o filme segura e disfarça a vontade de gargalhar dos seus próprios absurdos.

Entre esses talentos, se destaca Brian Jordan Alvarez, que faz um papel sério, como Cole, um dos auxiliares de Gemma. O rapaz é um engenheiro, de boas ideias e sacadas engraçadas, mas a emoção melhor representada por ele é a de insegurança.

Ele percebe que sua chefe de departamento e amiga está sempre a ponto de fazer uma besteira tremenda, como de fato ocorre. É dele a percepção mais flagrante do quão óbvia é a pressa por colocar M3gan para funcionar.

M3Gan : A versão sem cortes e uma outra reflexão sobre o novo clássico de boneca matadora

Os eventos da história ganham força não só graças a reação dos personagens, mas também pelo exagero visto nas situações cotidianas. As pessoas são sérias e discretas, mas o material comercial e de propaganda é simplesmente histriônico, fato que acrescenta uma camada de nonsense para uma trama que parece séria na superfície, enquanto é mega cômica nas camadas mais profundas.

Os comerciais da Funki são escandalosos, apelativos e sensacionalistas. A primeiríssima cena mostra uma inserção dele, mas mesmo nesse trecho gritante, acaba ocorrendo uma boa fazendo referência a um clássico da literatura de ficção científica.

Chamados de Purrpetual Petz, os brinquedos que substituem os animais de estimação que morrem tem em seu conceito uma inversão literal dos valores do romance/novela de Philip K. Dick. Em Androides Sonham com Ovelhas Eletrônicas, ter um animal vivo é uma coisa grande, que gera status para quem tem essa posse.

Aos pobres, sobra comprar imitações eletrônicas delas. Curiosamente, esse foi um aspecto não utilizado em Blade Runner: O Caçador de Androides, embora haja referências a isso, já que há um gato com olhos parecidos com o dos replicantes. Em M3gan, o consumismo voraz indica que é melhor ter um pet perpétuo, que não dá trabalho, que não morre, que não suja. Até o cuidar de um ser vivo é terceirizado, transformado em um bem de consumo.

A pressa atrapalha até a primeira demonstração de M3Gan, uma vez que o Cole não colocou uma peça de processamento que impediria a máquina de superaquecer. Apesar de esse ter sido um chiste, acabou por se tornar uma marca do comportamento de Gemma e dos seus, seguindo por todo o filme, todo o andamento e evolução dos trabalhos da moça são promissores, mas pecam nos detalhes, o tempo todo ela faz seus deveres com falhas.

O texto não condena a gana da protagonista e sim a sua preguiça em sempre optar pelo caminho mais curto, rápido e menos trabalhoso. Boa parte dos desastres humanos históricos ocorreram por atitudes como as dela.

Outro ponto que essa versão expande é a condenação a vaidade, especialmente com as duas personagens centrais.

Gemma é uma ególatra que não sabe parar, se considera acima superior a tudo. Tem boas ideias mas coloca a própria vontade acima das necessidades de terceiros e até de normas de segurança com o "brinquedo", sem falar que ela terceiriza ordens básicas enquanto tutora.

Acaba dando a M3gan a função de corrigir a sobrinha que acabou de perder os pais. Dá assim poder demais a inteligência artificial, não percebe o seu erro tampouco busca conserto, uma vez que não se enxerga como errada.

M3Gan : A versão sem cortes e uma outra reflexão sobre o novo clássico de boneca matadora

Cady é parecida com a tia, também é egoísta embora tenha a seu favor o argumento da imaturidade infantil. Ela valoriza demais o próprio conforto e comodidade. Gasta seu tempo livre com telas e como não há quem provoque freio nesses ímpetos, ela preenche suas carências com os eletrônicos.

Ela se torna uma menina sem foco, mas não sem justificativa. Há de se perdoar e relevar suas atitudes, afinal ela acabou de perder os pais em um acidente trágico, tendo essa perda ainda como alguém dentro da primeira infância.

O terceiro protagonista é M3gan, uma sumidade robótica, de capacidade de pensamento e processamento absurdos que acabou de ganhar corpo, que tem consciência de todas as suas falhas de programação e funcionamento e que não avisa sua criadora de nenhuma dessas questões. Ela se porta como alguém perfeita, mesmo quando não é assim claramente não se enxerga desse modo.

A parte física da atuação boneca é executada por Amie Donald, dublê que fez a maior parte dos trechos que exigiam movimentos físicos que um boneco mecatrônico não poderia fazer. Ela recebeu treinamento da dupla Jed Brophy e Luke Hawker, e fez todo um esforço para parecer ágil, afinal, uma máquina naturalmente seria mais rápida que um humano.

No set, Donald usava uma máscara estática de silicone, criada pela Morot FX, sendo posteriormente substituída por uma versão CGI do rosto da boneca.

M3Gan : A versão sem cortes e uma outra reflexão sobre o novo clássico de boneca matadora

A dublagem foi feita em um primeiro momento por Kimberley Crossman,. Quando notaram que estava diferente demais do tom de uma criança, substituíram pela voz de Jenna Davis na maior parte da história.

No entanto, quando M3gan é posta à prova e fica "nervosa", quanto demonstra raiva e fala palavrões, a voz que predomina é a de Crossman, sintetizada com a de Davis fazendo uma espécie de segunda voz. Isso dá um bom efeito, especialmente quando boneca tem leves falhas de processamento.

Quando imita outros sons não é incomum que M3gan cometa falhas no processamento vocal - isso ocorre especialmente quando tenta sintetizar um latido. Aqui há uma referência clara a games, no caso, ao personagem GLaDOS, do jogo Portal.

Outra boa referência é ligada ao processador da personagem. Gemma afirma que usa A17 Bionic. Essa é uma convenção de nomenclatura usada pela Apple para seus celulares, o que implica que há uma colaboração com a Apple para fornecer processadores para o robô.

A violência presente na história é crescente, com demonstrações de psicopatia escalonada. M3gan primeiro faz mal a animais, depois agride uma criança, até perder o rumo, virando uma assassina, passando por cima das (supostas) leis de robótica que Asimov propôs em seus contos.

Outro fator curioso é que ela deliberadamente escolhe não corrigir Cady ao deixar que ela repouse um copo na mesa. Nesses breves trechos, fica clara a cisão entre as mães postiças, com Gemma ainda querendo corrigir a menina, enquanto o robô não, mas não por acreditar que aquilo é justo para a moça e sim porque ela quer, em outra demonstração de choque de vaidades.

Evidente que entre as três, a maior culpada é Gemma, tanto que a jornada é sobre ela, mas tanto a garota quanto a boneca não colaboram. Especialmente M3Gan poderia ter auxiliado a "adulta da casa", mas isso não ocorre e uma relação que deveria ser familiar vai crescendo ruída, fadada ao fracasso desde que começou.

O roteiro é bem simples, ainda assim possui comentários e referências legais, como no confronto de M3Gan com a vizinha Celia e seu cão Dewey lembra o momento que o robô Bee-Bee de A Maldição de Samantha tem contra a velha Elvira Parker de Anne Ramsey.

Outro ponto mora em uma fala da psicóloga, passa de maneira superficial pela Teoria da Ligação. Em sua fala ela explica sobre a substituição de uma perda de um tente querido pode resultar em uma tentativa de substituir com algo que preencha a atenção e a carência da pessoa.

Normalmente a pessoa que mais se aproxime imediatamente certamente ganha esse espaço, ainda mais quando a vítima desse sentimento é uma criança, como é Cady. Ela pode ter encontrado isso em M3gan, claramente transfere suas situações emocionalmente pesadas para o brinquedo, que é tão diabolicamente arquitetado que parece real.

M3Gan : A versão sem cortes e uma outra reflexão sobre o novo clássico de boneca matadora

Mesmo que o horror do filme seja tecnológico, é fato que a boneca M3gan parece alguém possuído. Ela é possessiva com a sua criança, chega ao cúmulo de falar grosso, tal qual uma pessoa endemoniada em um filme de exorcismo. Wan não é bobo, faz um uso esperto de clichês de casas assombradas, com quedas de luz assim que ela se irrita, tornando a agora vilã em uma força descomunal, como uma entidade da natureza, mas feita de silicone e chumbo.

Como ela fez uma conexão com a casa e com o dispositivo auxiliar eletrônico e smart speaker de Gemma, os eventos semelhantes aos de um poltergeist são explicadas de maneira lógica e crível, tanto que os exageros como tremedeiras não soam tão exagerados, ao menos não diante da suspensão de descrença geral.

Mas nem é com a adulta que ocorre a melhor lição, é com o bully Brandon (Jack Cassidy), menino que tem sua orelha decepada depois que ele faz menção de estuprar a boneca. Antes do fim do menino, ela recondiciona o próprio corpo de uma forma que lembra as transições de robôs de modificação, a exemplo dos personagens Transformers e afins. Depois ela galopa, de forma quadrúpede e barulhenta.

Nesse corte maior as mortes são mais violentas, tem um acréscimo de sangue, ainda que bem leve. A sensação realmente aumentada é a de amargura.

M3gan achava que ela e a criadora eram amigas, que criariam juntos a filha delas, mas até isso é tirado dela. O roteiro sutilmente joga uma referência a temática de uma relação amorosa LGBTQIA +, elas são um casal lésbico.

Wan premia os fãs de cinema trash com uma batalha final que envolve uma broca em formato de motosserra, uma robô calva e uma luta entre criador e criatura. Ainda fecha com a participação de Bruce, que lembra e muito o robô ED- 209 de Robocop: Um Policial do Futuro. Se não há tanta violência, ao menos se aposta no especulativo e um pouco no massa veio.

Há claro muitos problemas de conveniência na essência da ideia e na exposição do protótipo. Lá atrás Gemma proibia os auxiliares de fotografar e de falar de M3gan nas redes, mas não tem receio de passear com ela o tempo inteiro. Suas regras valem para todos, menos para ela e a lição que ela tira só ocorre de fato próximo do final, quando já é quase tarde para mudar.

A versão de M3gan Unrated não traz muitas discussões a mais que o corte para cinema, tampouco faz jus a ânsia dos fãs de horror trash por um gore absurdo. Evidente que ter um filme com uma máquina robótica fatiando gente seria sensacional, mas na filmografia de Wan dificilmente se vê algo tão agressivo e visceral. Isso não é visto desde Jogos Mortais não ocorre algo do tipo, tirando um ou outro momento, como a cena de prisão em Maligno.

Ainda assim, se pavimentou um início de franquia, cuja saga tem tudo para exagerar cada vez em sua exploração e fórmula, a saber como serão feitos os próximos filmes, já que Jogos Mortais, Sobrenatural, e o Invocaverso não são franquias conhecidas por terem grande qualidade em seus textos.

Ainda assim, pelo absurdo, certamente M3gan tem tudo para ser mais violento, nervoso e sanguinário em sequencias, eventualmente até mais transgressor que seus pares. Ao menos, é o que se espera das sequências futuras.

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